Portugal possui algumas das melhores carnes DOP do mundo e a maturação pode desempenhar um papel decisivo, elevando a complexidade organolética, sabor e textura. Numa altura em que cada vez mais se torna moda comer carne maturada, fomos falar com quem sabe da matéria, até porque se trata de um mundo tão atrativo quanto perigoso. Em Portugal, é o caos e são muito poucos os que verdadeiramente dominam a arte, ainda num vazio legal, com riscos acrescidos para a saúde pública. Mas com a arte de quem sabe, deixamo-nos conquistar com um naco marmoreado e suculento.
Comer carne evoca as forças mais recônditas da Natureza, a nossa ancestral função primeira de caçadores, desde o boi selvagem (auroque ou boi primigenius). Apesar das controvérsias, poucos resistem a um bom naco fumegante, rosado e húmido, mas caramelizado à superfície. Para a vianda se revelar verdadeiramente apelativa, deve ser marmoreada, macia, a puxar para o vermelho escuro. Exigirá sempre alguma sapiência no domínio da grelha, mas se for produto de gado criado ao ar livre e de uma raça autóctone de boa rês, será meio caminho andado para uma fonte de proteína com muito sabor.
Portugal possui algumas das melhores raças bovinas do mundo. Carne barrosã, arouquesa, cachena, maronesa, mirandesa, marinhoa, mertolenga, charneca, minhota, brava, gravonesa, jarmelista, açoriana ou vitela de Lafões são espécies DOP que o país deveria sempre salvaguardar. Porque são um tesourinho nacional. Os nossos bovinos autóctones, imersos nos pastos da montanha, no Gerês ou no Marão, em terras do Barroso ou de Arouca, têm muito que se lhe diga. São fonte da apetecível carne marmoreada (entremeada com gordura), ou seja, a melhor que há.
No entanto, muita gente prefere a carne sem gordura e branca. Ou seja, a pior. Não tem sabor. A tonalidade mais escura é a melhor porque mostra ser de pasto, ou seja, quando o gado anda à solta, tem uma alimentação diferente e natural que lhe dá sabor e consistência. É uma carne mais gorda e mais saborosa.
Subindo a fasquia, surge a arte de maturar carne – algo que nos últimos anos virou moda – que tem muito que se lhe diga e acarreta riscos para a saúde, caso não sejam cumpridos os rigorosos controlos bacteriológicos, o que é comum acontecer, pois em Portugal não há legislação que regule a matéria. Convém, deste modo, que os procedimentos sejam submetidos a apertadas regras de controlo de qualidade, de temperatura e de humidade. Caso contrário, o risco será grande, o que infelizmente sucede mais comummente do que deveria.
A família Jacinto é especializada na arte há várias gerações, aprimorando técnicas de maturação há 65 anos e são, igualmente, precursores nos primeiros passos para a sua certificação. “É imprescindível controlar de forma muito precisa a temperatura e humidade às quais as carnes são submetidas assim como os tempos de maturação e os controlos bacteriológicos”, explica-nos Sérgio Ribeiro, à frente da Lusocarne.
Tudo começa na seleção dos bovinos. Saber observar onde os animais nascem e crescem, de modo a comprovar que foram criados e alimentados da melhor forma, evitando assim a industrialização do setor da carne no qual os animais se produzem em série, é fundamental. A aposta nas raças autóctones é, assim fundamental para fazer a diferença e conseguir excelente matéria-prima. Galega Minhota, Marinhoa, Arouquesa, Barrosã, Mirandesa e Cachena fazem parte da seleção nacional da casa. “Sabemos que podemos contar com carne bem tratada e criada por gente antiga e com tradição, respeitando a identidade do animal”, diz. Por isso o selo “World Prime Beef” é chancela da marca. Dominam ainda os vários cortes, do tomahawk, ao T-bone, ribeye, entrecote, lombinho, picanha ou costeletão, ficando assim prontos a utilizar, pelo que fornecem alguns dos melhores restaurantes a nível nacional e internacional.
Nestas coisas de carne maturada, o melhor é ter estômago. Numa reportagem destas temos de estar preparados para ver carcaças penduradas, abrir câmaras frigoríficas e ver dissecar várias peças de carne. A técnica é apurada e o procedimento feito com perícia. Aqui não há sangue mas hemoglobina. A consistência, textura, o perfil organolético, a facilidade em desagregar as fibras musculares, o sabor, a gordura, a capacidade de retenção de água, tudo depende de enésimos fatores para que a carne seja tenra.
O fatiamento deve ser feito no sentido transversal à fibra seccionando-a, pois cortar a carne no sentido da fibra torna-a mais dura após a cocção. A gordura não deve se totalmente removida, pois tem efeito amaciante e confere sapidez.
Tudo começa com a vida e a morte do animal. Como vive, o que come e como morre é também essencial. A partir da rigidez cadavérica há ainda um espaço de tempo que obriga ao repouso da carne, ou mortificação, que pode durar dois dias e se houve grande stress no matadouro e consequente descarga de ácido lático, endurece a carne e de que maneira.
Desta forma, para uma boa carne, há uma infinitude de coisas a ter em conta que deve começar no matadouro. Por isso, Sérgio tem a ideia de um dia criar um espaço destinado a divulgar as várias espécies em pastos ao ar livre e inserir a cadeia de matadouro, para que os animais não sintam a violência do fim. Após o abate e a chamada rigidez pós-mortem, deverá haver um tempo de repouso para que as enzimas internas do músculo iniciem o seu processo que vai decompondo as fibras. É que, depois do abate, não há entrada de oxigénio nos tecidos, as reservas de ATP (adenosina trifosfato) diminuem e a rigidez cadavérica instala-se com o rigor mortis. Mas o processo bioquímico não pára depois do abate. Mesmo sem a presença de oxigénio, o músculo guarda reservas de energia em stock, nomeadamente sob a forma de glicogénio, produzindo acido lático que baixa o pH da carne de 7,2 para 5,5. Com estas reservas formam-se ligações transversais nas fibras e a carne torna-se rígida.
Numa segunda fase, a estrutura das fibras modifica-se sob influência de enzimas que atuam nas proteínas e a carne torna-se mais tenra. O tecido conjuntivo, não sofrendo nenhuma transformação, é essencial, pois da sua quantidade e qualidade depende a qualidade da carne. O lombo tem pouco tecido conjuntivo e só precisa de assar ou grelhar. Já as patas dianteiras são ricas em tecido conjuntivo - pois movimenta-se mais - que se transforma em gelatina mole depois de uma cozedura longa obtida a partir do colagénio, um dos tecidos conjuntivos dos animais, mais presente nas cartilagens e nos ligamentos.
Para o sabor da carne vários fatores entram em jogo. Tudo depende de características sensoriais como a maciez, cor e gosto, nutricionais, como as proteínas e ácidos gordos, gordura, sais minerais e vitaminas, condições higiénico-sanitárias e toxicológicas, pH, transformação, estabilidade, capacidade de ligação com a água, a espécie, a idade, o sexo, zonas de mais ou menor músculo, alimentação, ar livre ou não, transporte, abate e seu processo, refrigeração e preparação.
Para além de água, a carne é proteína (20%) e gordura (5%). Cerca de 70% a 75% do músculo é constituído de água. Em animais jovens essa proporção é maior, porque há menos gordura ainda. As moléculas de proteína encontram-se nas estruturas do músculo - tecido muscular e conjuntivos. As primeiras são fibras responsáveis pelo movimento, e as segundas suportam-nas efetuando a sua ligação com a ossatura.
Os animais que trabalham ganham mais músculo, por exemplo, e o tecido conjuntivo, ao envolver as fibras musculares, forma uma área que vai ser entremeada por gordura e contêm mais tecido conjuntivo e quanto maior a idade mais o tecido fica duro.
Daí ser tão importante saber o bilhete de identidade do animal. A idade de abate, o tipo de músculo, como vive, o que come, onde vive e como morre. O que come é dos aspetos mais importantes. Controlar todos estes estádios é meio-caminho andado para conseguir boa matéria-prima. É assim que a melhor carne é a marmoreada, com um bocadinho de gordura, porque é assim mais saborosa. Apesar de em Portugal a carne proveniente dos suínos ser a mais consumida, ultrapassando, “per capita”, os 44 quilos, logo seguido pela carne de animais de capoeira, em que cada português consome em média perto de 30 quilos anuais.
No último lugar do pódio está a carne de bovino, responsável por 18,4 quilos do consumo anual. Razões económicas prendem-se com estes números, obviamente.
Precursores na maturação
Sentimos alguns arrepios, porque estamos agora dentro de algumas das várias 12 câmaras de carne em maturação. Dentro de cada câmara frigorífica a temperatura oscila entre 0 e 2 graus e evola-se um odor acre, lácteo, que evoca iogurte ou “buttermilk”. A cada patamar de maturação, a carne vai ganhando tonalidades mais escuras e odores mais intensos, que evocam a complexidade. O mesmo se refletirá no sabor, mais terroso, amanteigado e amadeirado, muitas vezes evocando cogumelos ou queijo azul.
Carcaças, partes lombares, dianteiras, pernas, as várias peças são dependuradas inicialmente e depois evoluem em vários estádios, sempre com rigoroso controlo bacteriológico. “O meu avô foi um percursor e muito provavelmente dos primeiros na Europa a maturar carne”, conta Sérgio. Isso permite-lhe hoje dominar esta técnica como ninguém. “É um jogo de controlo. Podemos ir até aos 150/200 dias. A peça mais antiga em maturação tem cinco anos, sempre com testes contínuos”.
A carne vai escurecendo e mingando, sendo um processo similar ao do presunto, mas feito sem fumo. A ideia é, no fundo, conseguir conservar, mas todo o processo tem de ser efetuado com muito cuidado e minúcia, arejando e purificando o ar das câmaras frigoríficas. Sérgio pretende ainda fazer uma incursão experimental tipo “cecina”, carne desidratada, mas acrescentar-lhe algum fumo. A maturação é fruto de um encadeamento químico onde as enzimas atuam nas proteínas, amaciando a carne em temperatura controlada, já que a putrefação tem de ser sempre seguida com cuidado, para evitar que o descontrolo de bactérias possa fazer das suas, já que as condições microbiológicas têm aqui um fator de risco. A necessidade de certificar a carne e o trabalho aturado com veterinários e a Universidade Católica para efetuar testes bacteriológicos pretende gerir de forma muito cuidadosa todo o processo, contribuindo para que haja legislação nesta área, ainda com vazio legal, como conta Sérgio. Esta situação de vazio legal causa “o caos” no que concerne à maturação de carne em Portugal, “colocando em risco a saúde pública”.
“Somos os únicos em Portugal a ter rigoroso controlo sanitário de veterinários e a alocar um caderno de encargos para certificação da carne que achamos imprescindível”, enfatiza. O problema é que a técnica de maturação de carne em Portugal ainda é feita sem regras e sem controlo, o que pode tornar-se num elevado risco sanitário. Muitos são os que ainda o fazem de forma clandestina, com acrescidos riscos para o consumidor.
É que a carne necessita de quatro a cinco semanas, pelo menos, numa câmara frigorífica. E o controlo de procedimentos deve ser feito com máxima destreza, o que na realidade não acontece na maioria dos sítios.
É uma iguaria porque o seu sabor intensifica-se, fica com odor e sabor mais forte. A carne tem de ser bastante gorda, caso contrário fica seca, e deve ter tido a alimentação ideal e alguma idade. A gordura é vital, porque como o processo microbiano vai desidratá-la, tem tendência a ficar mais seca e com sabor mais concentrado. Falando claramente, quanto mais tempo uma carne repousar depois do abate, mais macia fica. Ou seja, o verdadeiro bife com sabor deveria ter, pelo menos, uma semana de descanso depois de morto. Ao perder humidade, a carne concentra e intensifica sabor. O envelhecimento é similar ao de um queijo (por exemplo o Gorgonzola) ou um vinho que, com o tempo, ganha novas configurações. As moléculas sofrem mudanças químicas e intensificam componentes sápidas e aromáticas, criando, neste caso, ácidos láticos, mineralidade, sais e açúcares, no fundo glutamato monossódico. O tempo de maturação pode situar-se entre uma semana e um mês, mas seria urgente legislar em Portugal sobre este tema, até porque todos teríamos a ganhar. Apesar de não existir legislação específica que proíba o processo de carne maturada também não existe liberdade legal para o fazer.
O valor nutritivo da carne
Para além das raças autóctones, Sérgio trabalha ainda com Angus e Kobe, sendo que aquilo a que chamou “Kobegal” pretende seguir as mesmas técnicas e procedimentos aplicados às raças autóctones portuguesas. O objetivo é conseguir uma carne mais macia.
Em matéria de sexo, este é outro item que interessa. A carne das fêmeas é mais tenra e menos ácida. E uma vaca velha tem mais sabor, mas não tanto como de um boi castrado. Tal como o capão, o boi a quem foi retirada a possibilidade de procriação tem um sabor excelente. De uma maneira geral, a carne dos machos é mais rija e seca, apesar de ter mais rendibilidade. Um boi nacional criado ao ar livre chega a ter 25 quilos de gordura e um estrangeiro apenas cinco quilos, só para aquilatarmos a diferença.
A carne é um alimento que garante a produção de novos tecidos orgânicos e a regulação de processos fisiológicos, funções indispensáveis ao crescimento e à manutenção do corpo humano. É um alimento rico em proteínas de alto valor biológico e o seu teor em hidratos de carbono é baixo. Quanto ao teor de gordura, é variável. Mas do ponto de vista nutricional, os aminoácidos constituintes dos músculos, dos ácidos gordos e das vitaminas do complexo B presentes, bem como o teor de ferro, são boa matéria-prima. O valor energético da gordura da carne é da ordem de 8,5 cal/grama. A carne apresenta ainda todas as vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K), as hidrossolúveis do complexo B (tiamina, riboflavina, nicotinamida, piridoxina, ácido fólico, niacina, cobalamina e biotina) e um pouco de vitamina C, destacando-se a presença de ferro, fósforo, potássio, sódio, magnésio e zinco. Existem variações do ponto de vista da presença vitamínica em relação à idade dos animais. Os animais mais jovens revelam, por exemplo, níveis menores de B12. A carne apresenta-se como fonte expressiva de ferro, sendo que 40% a 60% desse elemento é altamente absorvível.
Apesar de não devermos exagerar no consumo de carnes vermelhas, pois toda a gente sabe que colesterol é igual a risco cardiovascular, um bom bife, oriundo de pastos verdejantes, não faz mal a ninguém, bem pelo contrário. A origem da carne é o seu maior segredo. E tem, obviamente, de ser de boa rês. Depois de tudo isto, apetece-nos ir comer isso mesmo. Um bom naco, suculento. E DOP, de preferência.
O “ponto” ideal
O sabor da carne - quando a preferimos não em tártaro mas cozinhada - surge da chamada cadeia Maillard, ou seja, o escurecimento enzimático e o facto dos aminoácidos das proteínas se associarem aos açúcares armazenados nas células musculares – que pode ir até às 500 associações. Isso ajuda a carne a tornar-se saborosa. Selar um bife pode parecer simples, mas é uma arte. Criar, a partir do aquecimento rápido, uma crosta impermeável que impeça o escape dos sucos da carne e deixá-la rósea e suculenta por dentro não é tão fácil como parece.
No ponto, médio ou mal passado, depende do gosto de cada um, mas o primeiro é o ideal. Os ingleses vão mais longe e têm diversos termos para nomear a cocção. “Rare” (mal passado), “medium rare” (um pouco mal passado, quase no ponto), “medium”: (no ponto), “medium well done” (no ponto, mas quase bem passado) e “well done”, ou seja, bem passado.
1. O sal deverá ser adicionado depois de alguma cocção, pois ele precipita a desidratação da peça. Apesar da impermeabilização criada pela crosta há sempre sucos que podem evaporar. Num simples bife, acrescentar logo sal e pimenta antes da cocção não fará grandes estragos, mas num pedaço ou naco tipo posta ou T-bone isso pode ser um inconveniente.
2. O procedimento ideal deve passar por envolver em azeite a peça e depois deixar ganhar cor e crosta. Ervas e especiarias podem tirar o sabor original da carne, pelo que depende do gosto de cada um. Sal e pimenta bastam.
3. O mesmo se refere às marinadas que têm por função tornar a carne mais tenra. As enzimas da carne amaciam a estrutura das proteínas, mas há outras substâncias que ajudam, como limão e vinagre, mas atuam só à superfície. Substâncias presentes em frutas como a papaia, o ananás e o figo possuem o mesmo efeito.
4. Quanto ao uso do martelo, esmaga as fibras, mas rompe as paredes das células e faz diminuir os sucos da carne, por isso evite o seu uso. A temperatura e a duração do processo de cocção são fundamentais para conseguir o máximo sabor.
5. Quanto menos tempo melhor, porque em causa está a degradação da proteína e perda de água, bem como outras substâncias voláteis. Assim, deve sempre evitar-se a perda dos sucos pois a suculência é consequência dos níveis de hidratação.
6. A carne maturada cozinha mais rápido porque a textura tem menos humidade. Deve ficar assim no ponto médio e depois deverá deixar repousar cerca de 30 minutos. Já a carne de animais jovens costuma ser suculenta no início, mas, pela falta de gordura, torna-se mais seca.
7. As temperaturas de cocção adequada para as carnes são, no ponto, de 60-70ºC e quando bem passada, entre os 70 – 80ºC. Já muito bem passada é de 80-90ºC. Para o chamado bife mal passado, é indicado o pojadouro ou jarrete (onde se dobra a perna traseira dos quadrúpedes ou musculatura superior da coxa), uma carne muito suculenta, ótima para bifes com molho, grelhar, estufar ou guisar.
8. Já quando as peças de carnes se destinam a assados, devem ser mantidas as gorduras, pois impedem a perda de sucos e intensificam o sabor.
Lusocarne
Zona Industrial da Gandra
Rua Dr. Francisco Sá Carneiro
Gandra 4740-473, Esposende
T. 253 96 81 48
E. geral@lusocarne.pt