No próximo dia 27 de Fevereiro, no Algarve, realizar-se-á a gala do Guia Michelin Portugal 2024. Será a primeira vez que o país deixa de aparecer ao lado de Espanha e passa a ter um guia dedicado apenas aos seus restaurantes. Mas será mesmo um guia? E será que haverá mais estrelas ou outras vantagens para o país?
Fundado em 1910, em França, o Guia Michelin foi durante largas décadas uma publicação de restaurantes centrada na Europa e muito influenciada pela cozinha francesa. A forma de avaliação independente e anónima por parte dos seus inspetores, ainda que alvo de críticas, trouxe-lhe prestígio e credibilidade, tornando-se na principal referência de avaliação do sector, com uma repercussão que acabou mesmo por atravessar as fronteiras europeias.
Contudo, foi preciso chegar ao século XXI para o guia sair do velho continente e expandir-se a outros territórios, muitas vezes como uma ferramenta de imagem auxiliar ao negócio de pneumáticos da casa mãe. Mas tudo ia decorrendo de lentamente, porque a concorrência ou não existia ou estava a milhas: Nova Iorque (2006), Chicago, São Francisco , Tóquio (2007), Quioto, Singapura, Pequim, Xangai, Hong Kong e Macau, Rio e São Paulo foram alguns dos principais destinos abrangidos.
Porém, uma série de acontecimentos nos últimos 15/20 anos obrigaram a Michelin a movimentar-se para não perder a relevância. Por um lado, houve a mudança do papel para o digital e a quebra abrupta de vendas do guia impresso, além do ruído das redes sociais e dos sites que avaliam tudo e mais um queijo. Por outro lado, começou a aparecer concorrência a sério, nomeadamente, o The World 50 Best Restaurants, com a sua lista mais abrangente e desempoeirada de restaurantes, que começou a dar destaque a locais e cozinhas criativas de outros continentes.
Esta sequência de acontecimentos fez soar alarmes e levou o guia vermelho a rejuvenescer. Em termos de conteúdos começaram a dar maior relevância aos restaurantes que fazem parte dos guias, mas que não alcançam as tão desejadas estrelas, e, em termos de media, depois de algumas tentativas frustradas, conseguiram finalmente criar uma plataforma digital única para todos os guias, sólida, dinâmica e de acesso livre em várias línguas. É então no site Guide.Michelin.com que está agora toda a informação que constava nas publicações (que praticamente deixaram de existir em papel, ou existem em pequenas tiragens para restaurantes e colecionadores), junto com conteúdos de carácter mais jornalístico.
Porém, faltava uma estratégia mais agressiva para estancar a queda de receitas e os prejuízos nesta área. Sobretudo, porque o principal ativo do guia, aquilo que está na sua essência e que dá um valor único à marca, é bastante oneroso. De facto, manter uma equipa de mais de uma centena de inspetores anónimos a viajar pelo mundo inteiro, ao longo do ano, pagando refeições e alojamentos, não sai barato.
E é aí que entra a expansão para novas latitudes que, embora seja uma prática com mais de uma dezena de anos, nunca foi tão forte como atualmente. Só para se ter uma noção, em pouco mais de um ano, surgiram novas edições do guia vermelho, no Vietname, Colorado (EUA), Vancouver e Toronto (Canadá), Letónia, Argentina e Abu Dhabi. Todas com uma característica em comum: foram financiadas por entidades públicas locais (e também patrocinadores privados) que veem nessa aposta uma oportunidade de promover e aumentar o turismo gastronómico de qualidade nos seus países, regiões e/ou cidades. Esta é hoje a principal arma do Guia Michelin em termos de expansão, uma arma que também chega agora a Portugal.
A independência de Portugal no Guia Michelin
Durante mais de 100 anos – a primeira edição é de 1910, embora tenha sido interrompida entre 1940 e 1973 - a presença de Portugal nas edições anuais do guia vermelho fez-se em conjunto com Espanha. E na sombra, como todos sabemos. Afinal, apesar da evolução dos restaurantes portugueses nos últimos 20 anos, com especial incidência na última década, a dimensão e principalmente a afirmação do país vizinho como uma das principais potências gastronómicas mundiais, nunca foi muito grata nós, uma vez que na inevitável comparação do desempenho anual entre os dois países no guia (leia-se, novas estrelas), a disparidade a favor de Espanha foi sempre muito evidente, mesmo nos melhores anos para Portugal.
Como se não bastasse, ou fruto disso, a edição ibérica da publicação sempre se centrou em terras de ‘nuestros hermanos’, cuja sede é em Madrid: o staff e inspetores sempre foram quase todos espanhóis e, nos 15 anos de existência de cerimónias de entregas de prémios comuns, apenas uma se realizou entre nós, a de Lisboa, em 2018 (relativa ao guia de 2019), pela qual o governo português pagou na altura mais de 400 mil euros.
As vantagens evidentes e os principais equívocos à volta do novo guia português
Com a mudança de estratégia da Michelin e com o interesse e financiamento das entidades públicas portuguesas ligadas ao turismo (bem como patrocínios privados) foi possível passar a ter um “guia”, uma gala, e mais recursos dedicados ao país, de modo a poder aumentar, também, os conteúdos sobre restaurantes lusos no site e com eles a promoção de Portugal enquanto destino gastronómico. Quanto a verbas, não é conhecido quanto custará a Portugal este acordo, mas pelos valores que se conhecem de outros lugares, certamente que não ficará abaixo dos 600 mil euros anuais.
Quando se falam em verbas deste nível é legítimo perguntar se valerá a pena o investimento. Acontece que, não sendo públicos os termos do acordo e tudo o que o envolve, é sempre difícil dizer taxativamente que sim. Porém, embora possa parecer elevada a verba em questão não será muito diferente da de outros eventos com um impacto do género. Depois, em termos de alcance, esperemos que haja algum tipo de relatório à posteriori, mas diria que para além da valorização de Portugal e dos restaurantes lusos, quer em termos de receita, quer em imagem, será bastante benéfica – até porque os resultados portugueses deixarão de ser abafados pelos de Espanha.
Outra questão que tenho ouvido é se finalmente passamos a ter inspetores portugueses a avaliar os nossos restaurantes ou se continuarão a ser sobretudo espanhóis. Não obstante o facto de muitos chefes dizerem que os inspetores que se apresentam atualmente são espanhóis, segundo a Michelin, os restaurantes passaram a ser avaliados por um corpo internacional de inspetores de diversas proveniências que anda pelos vários países do mundo onde o guia é editado.
Então, mas se acabaram o guia em papel continua a existir mesmo um guia?
Bom, no modo clássico e físico que o conhecemos, o de uma publicação em papel que é lançada todos os anos, não. Porém, sendo um guia digital em que os galardões associados – uma, duas, três estrelas, bem como bib gourmands e estrelas verdes - só são atribuídos anualmente, sim, mesmo que haja atualizações e novas entradas, sem distinções, durante esse período.
Uma pergunta igualmente recorrente que é colocada é se vamos ter mais estrelas e finalmente um três estrelas Michelin por termos agora um guia e uma gala só nossa. Hum... não necessariamente. A grande maioria dos guias de territórios de dimensão semelhante ao nosso (ou até maiores) não têm restaurantes com a distinção máxima e mesmo os que possuem duas estrelas, não abundam. Já para não falar do recentemente lançado guia da Letónia, (um dos tais pagos pelo turismo local) em que só houve um restaurante a ganhar uma estrela Michelin. Portanto, pagar para ter guia Michelin no país compra a possibilidade de haver mais recursos, eventualmente mais visitas e a mais restaurantes. Com isso, parece lógico que há possibilidade acrescida de haver maior número de estrelas atribuídas. Porém, apenas se esses lugares cumprirem os critérios. Ou seja: é só mesmo isso, uma possibilidade e não uma garantia.
Está bem, mas certamente que virão mais estrelas para Portugal. E quem serão?
Durante muito tempo o crescimento de lugares com estrelas foi muito lento. Porém, nos últimos anos, os inspetores têm sido um pouco mais generosos: de 2016 a 2023 passámos de 16 para 38 restaurantes com estrelas, sendo que sete têm duas. Se a tendência se vai manter, não sabemos, mas esperemos que sim, que haja vários motivos para festejar, no palco, ou após, durante o jantar volante coordenado por Dieter Koschina (Vila Joya) e Rui Silvestre (Vistas) - que envolve ainda um grupo de chefs do Algarve - no qual os convidados poderão desfrutar de alguns pratos e produtos emblemáticos da gastronomia portuguesa.
E candidatos às estrelas não faltam. Todavia, tentar adivinhar a quem caberão as comendas é sempre um exercício que envolve mais palpites embrulhados em “fala-se que...” e em desejos, do que propriamente em certezas.
Três estrelas para Ocean, Belcanto e Yeatman? E porque não para o Alma? E que tal duas para o Vista ou para o Vistas, uma vez que a saída de Martín Berasategui e Filipe Carvalho tirou praticamente essa possibilidade para já ao Fifty Seconds? E uma chuva delas (está bem, uma de cada vez) para o Marlene, Sála, Two Monkeys, Arkhe, Essencial, Prado, Cozinha das Flores, Gastro by Elemento, Kappo, Ó Balcão, ou um ou outro daqueles que nos esquecemos de elencar nestas listas ou que nunca adivinhamos?
Sim sim, até já estou a ouvir alguém na sede da Michelin em Madrid a dizer: ¿Todo eso, coño?! ¡Querías, papitas con enguilas!