Das tripas coração

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Quem não se perde por uns suculentos folhinhos, imersos em sucos cremosos e untuosos? A maioria dos portuenses, decerto, mas este é um prato que já conquistou uma imensa maioria. De refeição popular que nasce com o fito do aproveitamento, como a grande parte do receituário nacional, as “Tripas à moda do Porto” adquiriram o patamar de especialidade com todo o mérito. Os que as estranham deixam-se seduzir depois de algumas tentativas algo receosas. Facto é que os tripeiros ganharam fama com elas.  

 

 

Há muitas lendas e mitos em torno deste prato. Mas o facto é que os suevos, já no século I a.C., comiam tripa de vaca (aliás, na atual região checa e antiga Suábia, ainda hoje se comem, as “drzky”). E eles passaram pela Península Ibérica, como se sabe. Igualmente na Galiza, nas Astúrias e em França, as tripas integram pratos célebres. Os “callos” galegos ou asturianos são uma referência. Os “callos” galegos são praticamente iguais, exceto no grã de bico. De facto, muitas das tabernas dos galegos serviam dobrada, com grão-de-bico, mas no Porto o feijão granjeou adeptos até configurar uma receita única. Daí a menção “à moda do Porto”, pois o grão-de-bico dos “callos” dá lugar ao feijão entre nós. Depois existem várias versões. Na França, as tripas de Caen acrescentam Calvados, em Roma, integra-se o queijo pecorino local, no sul de Espanha a hortelã, nas Astúrias a morcela asturiana e na Catalunha e Galiza o grão-de-bico. Igualmente as carnes vão variando e as leguminosas também, conforme as localidades.


Mas certo é que se trata de um prato económico e substancial que nasce como forma de aproveitamento entre a classe popular para passar depois à categoria de “especialidade”.


Nasce com a função de aproveitamento e como forma de alimentar com poucos recursos e muita imaginação de quem tem fome. A sustentabilidade é, aliás, uma vertente sempre presente na cozinha portuguesa, utilizando até ao último reduto um animal, até porque o povo não podia abrir os cordões à bolsa para comer carne. O sangue, entranhas e miúdos, o pão e o feijão surgem, da mesma forma, para esticar e encher. Se o podemos fazer com sabor, mais um motivo para as consumir. 
No caso das “tripas à moda do Porto”, os cominhos surgem a conferir aquele toque de exotismo que as configuram de forma sui generis, tal como no prato galego de “callos”. No Porto, no século XIX, eram consideradas “um prato de galegos”, aliás. E na Galiza um tripeiro é sinónimo de “comilão”. Sabendo que os galegos emigraram em força desde a Idade Média para Portugal, sobretudo entre o século XVIIII e XIX, podem muito bem ter sido eles a influenciar-nos no seu uso.


Fialho de Almeida queixa-se n’ “Os Gatos” de, numa incursão ao Porto, ter pedido tripas e o criado do restaurante lhe ter respondido “que era um prato de galegos”. Um prato conotado não só com a origem galega como com pobreza e símbolo do povo. Mais uma vez verificamos que seria muito provavelmente da Galiza este prato, apenas alterado pela identidade portuense. Claro que há quem diga que surgiu na altura dos Descobrimentos ou durante o Cerco do Porto. A mais realista é a de que os portuenses decidiram entregar toda a carne das rezes à armada que partiu à conquista de Ceuta e ficou com as tripas para sobreviver. Provas não existem, mas o cognome “tripeiros” fica bem a quem sofre pelo amor à pátria. Da lenda à realidade ainda há um longo percurso.


Em Espanha, é já no século XVII que surge a primeira receita de “manjar blanco de callos” pelo cozinheiro Domingo H. Maceras, apesar de na “Arte cisoria” de Enrique de Villena já se falar deste manjar. Ou seja,o receituário das tripas não é originário do Porto, apenas foi abraçado de forma especial pelos portuenses, seus acérrimos defensores, de tal forma que delas fazemos coração e por isso nos batizamos com o cognome de “tripeiros”. O facto é que virou sinónimo de “corajoso”, “arreigado”, liberal e defensor da pátria. E, claro, de “comilão” também.

Folhinhos, favos e pregas

Mas vamos às “Tripas à Moda do Porto” que já se faz tarde e confecionar este petisco tem muito que se lhe diga. Uma das mecas no Porto para comer este prato é o Restaurante Líder, onde agora estamos. Expoente da cozinha tradicional portuguesa, foi fundado por Manuel Moura e entrar aqui é como sentar numa casa de família. Também mentor e presidente da Confraria das Tripas à Moda do Porto, podemos dizer que estamos em boas mãos para saborear este prato. 
Manuel Moura deixou há 30 anos a sua aldeia, nas imediações de Amarante, e rumou à cidade do Porto onde ganhou prestígio e por aqui pode saborear as iguarias da cozinha tradicional e ser tratado à altura.


Na cozinha, é a Tia Lola que executa o prato há mais de 40 anos. Para Manuel Moura “a matéria-prima é fundamental. Conseguir uma boa tripa de gado nacional, bem preparada, é meio-caminho andado. A estrangeira é lavada com lixívia e chega desidratada. Mas em Portugal ainda temos bons nichos de mercado e bons talhos onde se pode comprar produto nacional, o mais indicado. O mesmo se aplica à mão de vaca, essencial para a criação da gelatina que confere paladar”.


Depois, um bom feijão branco manteiga, um fumado, toucinho e chouriço de qualidade e deixar as tripas em água com limão, pelo menos três dias antes do seu uso, são outras dicas para concluir a receita com sucesso. Só em 2018, venderam-se no Líder quase 1.500 quilos deste prato. No Porto, a receita é mais profusa e integra as carnes de galinha, presunto, a mão de vitela, cabeça de porco, o chouriço de carne, salpicão, orelha de porco, entremeada e cenoura, para além de várias texturas de tripas, dos folhos aos favos. Ou seja, não só o estômago de vitela e tripa grossa, junta-se a tripa delgada.


As tripas são macias e consistentes. Folhinhos que parecem as folhas de um livro, ou em formato de favos de abelha, pequenas papilas pontiagudas, inúmeras texturas que são um regalo para quem gosta. E têm muito que se lhe diga. A zona do chamado pré-estômago possui pequenos sacos e colunas musculares, já que se movimenta de forma rítimica a cada minuto. Já as paredes internas do retículo funcionam como uma espécie de coador e revestem-se de uma membrana mucosa, com pregas e no formato dos tais favos. A parte do estômago propriamente dita possui pregas altas e longas.


Todas estas texturas da tripa ou bucho são interessantes para explorar na boca, devendo estar na cocção perfeita para evitar aquele desagradável efeito “chiclete” que por vezes surge em algumas confeções. Quando saboreamos este prato, nem nos lembramos porque diferentes texturas surgem. De facto, o estômago do boi (vaca ou vitela) tem quatro reservatórios ou ventrílocos, todos eles com nomes populares e curiosos. No primeiro, divide-se em rúmen, pança ou herbário. O segundo é o barreto, boné ou retículo, o terceiro é o folhoso e o quarto, o verdadeiro estômago, é o coagulador.


O que interessa é que se envolvam num molho cremoso, mas não muito, e estejam confecionadas com todos os matadores. E quanto às calorias não se preocupe. Um estudo realizado pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação, da Universidade do Porto, concluiu que um hambúrguer com batatas fritas tem muito mais calorias que este prato com ingredientes como orelheira, mão de vaca, salpicão, cenoura, cominhos e feijão. É que cada 100 gramas de tripas à moda do Porto equivalem a 234 quilocalorias, enquanto que o exemplo dado de “fast food” possui 850 calorias. 

Dobrada? “Tripas, tripas, tripas!”

Algumas das primeiras referências escritas ao prato, em livros de culinária, surgem no final do século XIX mas sempre falando de dobrada. No livro de cozinha “O Cozinheiro Indispensável” (1894) surge a “dobrada à moda do Porto” e João da Matta já fala da “dobrada guisada” e da “dobrada espanhola” (1870). A nomeação de dobrada é mais comum no sul. Também no Brasil, herança colonial, recebe o nome de “dobradinha”. Mas o escritor Arnaldo Leite, quando viu numa ementa de um restaurante “dobrada à portuense” deu um murro na mesa insurgindo-se contra a referência à dobrada. “Dobrada não! Nós somos dos dantes quebrar que torcer. Podemos partir, mas quebrar nunca! Sempre firmes, tesos e direitos! Tripas! Tripas! Tripas!”. As tripas surgem, assim, como uma bandeira regionalista, a diferenciar um modo de confeção singular, como especialidade apenas do Porto e não admite confusões. Por isso, de dobrada têm pouco, apesar de até Fernando Pessoa assim as chamar, só criticando que não se podem comer frias. Ramalho, ao abordar a gastronomia portuense, refere as tripas como emblema máximo já que do resto pouco se aproveitava, na sua opinião algo injusta.


E seria no restaurante Reimão, que integrava o Grande Hotel Reimão, que elas tinham a maior fama (por ele passou Camilo Castelo Branco, por exemplo, cliente assíduo). Através do editor Ernesto Chardron, um gastrónomo livreiro do século XIX, vemos que nomeia as “tripas decantadas, dobrada de estilo compósito” como um dos pratos eleitos que à mesa. E ele não reunia “senão com sábios compatriotas e raros literatos nacionaes arrancados à idolatria da tripa e da orelheira com feijão pela catequese do Café Anglais”, um restaurante parisiense.


A referência às tripas surge ainda no livro de Carlos Bento da Maia (1904) que lhe chama dobrada, acrescentando que a complexidade do prato acresce-se na maneira de confecionar portuense, “juntando-lhe cenouras e nabos picados, aproximando-se assim das Tripas à moda do Porto”. 
Arnaldo Leite, também no “Tripeiro”, realçava as tripas do restaurante Luso-Brasileiro em 1901, reiterando que a origem do prato não é propriamente nossa: “No Luso-Brasileiro as tripas, as nossas tripas (nossas é como quem diz!) e cada ração delas com quase meia-galinha”.


Para rematar, mais importante que todas as regras na confeção até, é que venham quentes para a mesa e sejam feitas com amor. Fernando Pessoa/Álvaro de Campos também assim o entendeu, lamentando terem-lhe servido o prato frio: “Mas, se eu pedi amor, por que é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio”. Pois não, ele tinha toda a razão do mundo. As tripas aquecem o coração, se feitas com amor. Mas têm de vir a fumegar para a mesa. Vamos a elas.