Os ingleses deram à receita o nome de beefsteak, mas os lisboetas podem considerar-se os coautores. Os milhares de turistas que todos os anos visitam a capital portuguesa, atraídos pela hospitalidade, lugares históricos, feitiços naturais e uma gastronomia prodigiosa em tradição e modernidade, mal encontram tempo para conhecer uma riqueza da mesa lisboeta que teve o ápice no século XIX. Referimo-nos aos imperdíveis bifes de carne bovina surgidos nos cafés e cervejarias da cidade.
São tão apetitosos quanto os petiscos, caracóis, peixinhos da horta, favas, ameijoas, pregos, cozidos, sardinhas assadas, caldeiradas de peixe, polvos, bacalhaus, miúdos de galinha e de porco e pastéis de nata que tanto seduzem os forasteiros. Mas já não recebem os mesmos louvores do passado, embora continuem a merecê-los. Os bifes também continuam bons em cidades como o Porto, por exemplo, mas a capital portuguesa sempre se destacou no preparo.
Pela simplicidade da receita, vários povos estiveram em condições de desenvolvê-la, sem que um influenciasse o outro. Entretanto, a autoria costuma ser atribuída aos ingleses. Pelo menos a palavra veio da língua que eles falam. Segundo a enciclopédia gastronómica “The Oxford Companion to Food” (Oxford University Press, Londres, 1999) deriva de beefsteak. No século XIX, o romancista e gastrónomo francês Alexandre Dumas, pai, avalizou a origem britânica.
Também afirmou que o bife se instalou em Paris no final de 1815, após a derrota militar de Napoleão Bonaparte em Waterloo, quando os ingleses permaneceram dois ou três anos na capital do país. “Todavia, existe sempre uma diferença que separa o bife inglês do francês”, completou Dumas, pai, no “Grande Dicionário de Culinária”, de 1870. “Fizemos o nosso bife com um pedaço de vazia, enquanto os nossos vizinhos lhe destinam o miolo da alcatra”.
O facto é que os portugueses têm o direito, no mínimo, à coautoria do bife. A receita mais antiga encontra-se no livro “A Arte da Cozinha”, lançado em Lisboa, no ano de 1680. Trata-se do mais antigo manual lusitano de culinária. O autor, Domingos Rodrigues, foi cozinheiro do rei D. Pedro II. Eis a receita de bife: “Tomarão um lombo e o farão em talhas muito delgadas e as frigirão em toucinho, meio fritas e, depois, pimenta, uma pequena colher de farinha torrada, quatro gemas de ovo, de sorte que engrosse o caldo, o qual há de ser de duas colheres; vai à mesa sobre fatias”.
A capital do bife, Lisboa, até hoje aprecia o prato, do qual coleciona receitas. Duas foram exportadas para os países de colonização portuguesa, como o Brasil: o bife de cebolada, batizado de bife acebolado na terra descoberta por Pedro Alvares Cabral; e o bife com ovos a cavalo, que naquele país lusófono se denomina bife a cavalo, embora o nome original faça mais sentido. Quem na verdade se encontra a cavalo no prato não é o bife, mas os ovos. Outra receita lisboeta difundida no além-mar é o Bife à Marrare.
José Quitério, no saboroso “Livro de Bem Comer” (Assírio & Alvim, Lisboa, 1987), traça a genealogia do prato. Um napolitano chamado António Marrare desembarcou em Lisboa e começou a trabalhar como copeiro para o Marquês de Nisa. Prosperando, virou dono de cafés. Fundou quatro: o Marrare São Carlos, em 1801, o Marrare das Sete Portas, em 1804, o Marrare do Cais do Sodré, em 1809, e o Marrare do Polimento, em 1819. Os cafés eram estabelecimentos frequentados por escritores, poetas, artistas e boémios em geral, para tertúlias, discussões culturais e conversa fiada. Obviamente, serviam a bebida que os batizava. Mas as comidas fortes eram torradas e petiscos. Atendendo aos clamores dos estômagos dos clientes mais famintos, passaram a fritar bifes.
José Quitério, no saboroso “Livro de Bem Comer” (Assírio & Alvim, Lisboa, 1987), traça a genealogia do prato. Um napolitano chamado António Marrare desembarcou em Lisboa e começou a trabalhar como copeiro para o Marquês de Nisa. Prosperando, virou dono de cafés. Fundou quatro: o Marrare São Carlos, em 1801, o Marrare das Sete Portas, em 1804, o Marrare do Cais do Sodré, em 1809, e o Marrare do Polimento, em 1819. Os cafés eram estabelecimentos frequentados por escritores, poetas, artistas e boémios em geral, para tertúlias, discussões culturais e conversa fiada. Obviamente, serviam a bebida que os batizava. Mas as comidas fortes eram torradas e petiscos. Atendendo aos clamores dos estômagos dos clientes mais famintos, passaram a fritar bifes.
A receita do Marrare das Sete Portas. “Fazia-se em frigideira de ferro onde, depois de bem aquecida, punha-se manteiga a derreter e logo o bife a fritar”, descreve Quitério. “Deixava-se tostar de um lado e, assim que tomava cor, voltava-se, em operação pouco demorada, para que a carne ficasse mal passada no interior, temperava-se com sal, escorria-se a frigideira da manteiga que tinha servido à fritura, punha-se nova manteiga fresca agitando o recipiente e baixando o lume. Juntavam-se então duas colheradas de natas para engrossar o molho formado pelo suco da carne. Deixava-se reduzir um pouco. Passava-se o bife para um prato de louça previamente aquecido e despejava-se por cima dele todo o molho”.
Outro bife antológico mereceu o nome de à Faustino. Incorporou ovo mexido colocado no interior de meio tomate passado na manteiga. Foi desenvolvido pelo cozinheiro e restaurador Faustino, pai do cronista Alfredo de Morais, uma espécie de Curnonsky, o crítico culinário e “príncipe dos gastrónomos” franceses. Também apareceu o Bife à Inglesa, que não é frito, mas grelhado na madeira de sobro, servido antigamente na famosa Taverna Inglesa; o Bife do Montanha, inventado por Manuel Nunes Ribeiro, dono de um restaurante aberto em 1860 e frequentado por franceses, belgas e suíços; o Bife à Jansen, frito em banha e toucinho picado, lançado pela Cervejaria Jansen; e o trivial Bife Com Batatas Fritas. Quitério ainda considera “genuinamente alfacinhas”, como diz, o bife à cortador, o bife de vaca enrolado à lisboeta, o bife de vaca na frigideira de barro e o bife de vaca com molho de queijo.
Um dos “tais” bifes
Um dos cafés mais típicos de Lisboa recebeu o nome de A Brasileira. Ainda hoje funciona no Largo do Chiado, ou seja, no bairro cujo nome sibilante se deveria ao ruído das rodas das carroças que outrora subiam as ladeiras. Do lado de fora, na calçada, encontra-se a bela escultura em bronze do genial poeta Fernando Pessoa, sentado à mesa, em tamanho natural, não por acaso um apreciador de bifes. Os visitantes tiram fotografias ao lado da obra do artista plástico Lagoa Henriques. Ao mesmo tempo, deslumbram-se com a fachada de A Brasileira, com três portas envidraçadas, belo projeto “art nouveau” do arquiteto Norte Júnior.
O encantamento estende-se ao café preparado no interior, servido em mesas de tampo de mármore e pés de ferro trabalhado. Entretanto, quem pedir um dos quatro bifes preparados ali vai ficar gratificado. O mais famoso usa lombo e tem o nome do estabelecimento. Trata-se de uma variação do bife à café, denominação que não se refere ao tipo de casa onde o elaboram, mas ao molho feito com a bebida à base da “preciosa rubiácea”.
O encantamento estende-se ao café preparado no interior, servido em mesas de tampo de mármore e pés de ferro trabalhado. Entretanto, quem pedir um dos quatro bifes preparados ali vai ficar gratificado. O mais famoso usa lombo e tem o nome do estabelecimento. Trata-se de uma variação do bife à café, denominação que não se refere ao tipo de casa onde o elaboram, mas ao molho feito com a bebida à base da “preciosa rubiácea”.
Os bifes lisboetas utilizam diferentes cortes bovinos: lombo, acém, entrecôte, alcatra, vazia, redondo, pojadouro etc. São partidos em porções de 150 a 200 gramas. Recebem sal instantes antes de fritar. Vão ao fogão habitualmente em frigideiras de material pesado, quase sempre ferro fundido. Os grandes apreciadores preferem a carne tostada por fora, com o interior rosado e suculento. O turista guloso que for a Lisboa e tiver a oportunidade de comer um desses bifes, nunca mais o esquecerá. Foi o que aconteceu connosco.
Artigo de opinião publicado no número 348, de Janeiro de 2018 | Revista de Vinhos
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