“A aldeia serrana (…) é assim mesmo: barulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos e instintos que constituem o empedrado da comuna antiga. (…) Ali roda o velho carro visigótico nos caminhos romanos, mais velhos que eles.” Assim escrevia Aquilino Ribeiro, em 1918, na carta que acompanha o início do romance “Terras do Demo”. Percorrer a Beira Interior é entrar no imaginário de Aquilino, é experimentar o isolamento de serras agrestes, de distâncias que se vencem com o tempo, de topografias dramáticas…
Geograficamente, esta região portuguesa faz fronteira, a norte, com Trás-os-Montes e Alto Douro, com serras dos vales do Douro e do Côa. A este, a linha de separação com a Beira Litoral faz-se no desenho dos rios Mondego e Zêzere, e das serras do Açor, Gardunha e Lousã. A oeste, entramos em terras espanholas. Aqui, as fronteiras são os rios Águeda e Erges. Para fechar a delimitação da Beira Interior temos, a sul, o rio Tejo. Nesta área, a paisagem começa a mudar e entramos no Alentejo.
A Beira Interior é uma zona de relevo bastante acidentado, com várias formações montanhosas a ditar o estilo da paisagem e com áreas imensas de planalto. Serras como a da Estrela, da Gardunha, da Marofa ou da Malcata seriam certamente as imagens de Aquilino ao evocar as “terras do demo”, “aldeias montesinhas que moram nos picotos da Beira (…) O vale, que as explora, trata-as despicientemente por Terras do Demo. Sem dúvida, nunca Cristo ali rompeu as sandálias, passou el-rei a caçar (…)”. Em “Geografia Sentimental”, de 1951, as suas palavras são igualmente cruas para estas terras “esquecidas de Deus”, “penedias, aldeias tristes e obtusas, pinhais, uma impressão de tormento telúrico ”.
Nas palavras de Orlando Ribeiro, a região oferece um dos mais vigorosos contrastes do solo português, entre as terras altas da Cordilheira Central e a entrada beirã da planície alentejana. Ainda segundo o geógrafo e autor, “a população encontra-se isolada pelo relevo e pelo impraticável dos caminhos”…
Em termos vitivinícolas, a região da Beira Interior foi criada em 1999, englobando três sub-regiões – Castelo Rodrigo, Pinhel e Cova da Beira. Situada no interior centro e norte de Portugal continental, tem uma área menor que a região administrativa com o mesmo nome (o Dão, por exemplo, localiza-se igualmente na Beira Interior). A sua história é riquíssima, sendo o cultivo da vinha um testemunho das origens milenares. A produção de vinho tem início com os romanos alguns anos antes do início da nossa era, assumindo desde cedo uma importância relevante, aculturando eremitas celtas e contribuindo para alguma humanização das “terras do demo”.
Mais tarde, na Idade Média (século XII), o esforço de povoamento do interior do país leva à construção de mosteiros e conventos, sendo de particular relevância a Ordem de Cister, pela divulgação e implementação de técnicas na vinha e na adega. De referir que esta é a ordem religiosa mais ligada à história e ao desenvolvimento do vinho – veja-se o exemplo da Borgonha.
Conforme já referimos, a Beira Interior é única. Estamos perante a região mais montanhosa de Portugal, que engloba as serras de maior altitude, o que vai permitir que encontremos vinhas a mais de 700 metros. Também pelo enquadramento geográfico é fácil perceber que estamos perante um clima continental, com grandes amplitudes térmicas anuais e diárias (as noites frescas, no verão, são um dos elementos chave na maturação e vindima, que diferencia estes vinhos). O clima é agreste, de invernos rigorosos, com temperaturas negativas e neve, e verões quentes e secos.
O granito dos solos é uma constante e encontramos também, com menor expressão, xisto e alguns solos arenosos. Existe uma enorme diversidade de castas. Nas brancas destacam-se a Síria, a Fonte Cal, a Malvasia e o Arinto, enquanto nas tintas predominam as variedades Rufete, Bastardo, Touriga Nacional, Tinta Roriz, Trincadeira.É nestas condições que vamos encontrar brancos aromáticos e minerais e tintos expressivos. E em todos encontramos uma personalidade vincada de frescura e delicadeza.
Resgate do esquecimento
A Beira Interior é uma região que, até há alguns anos, parecia esquecida pelos enófilos. A interioridade e o isolamento, a par de toda a mentalidade associada a essas evidências físicas, com uma cultura de algum individualismo, de pequenas propriedades com a dimensão de “quintais” (se quisermos dar uma noção de escala), foram fatores determinantes para a história dos vinhos da região. Poucos eram os produtores, poucas as marcas comercializadas. No entanto, mesmo nessa longa era de adormecimento, a qualidade dos vinhos da Beira Interior sempre foi reconhecida, estando latentes na imagem que cada um construía desses (poucos) rótulos, frescura e elegância.
Hoje, estamos perante uma região em desenvolvimento, já com mais visibilidade, à qual não será alheio o aparecimento de novos produtores, de mudanças de atitude, de investimentos e adaptação ao mercado. A Beira Interior, com todo o seu potencial, tem certamente condições para continuar a alargar a sua oferta, sobretudo quando a tendência atual é para um gosto mais virado para vinhos de arquitetura depurada, com mais frescura, com menos excessos, mais originais e autênticos.
A Beira Interior tem uma paisagem natural que se desenha a partir de serras e escarpas, montes e vales, florestas e bosques, rios e ribeiras. A fauna e a flora são tão ricas que, só por si, justificam a viagem e a descoberta. Mas sendo este património natural de paisagens bucólicas, onde a neve é frequente, um atrativo único no nosso país, existe uma riqueza histórica e cultural imensa, também ela única. As marcas da presença humana ao longo dos tempos sucedem-se e uma viagem pela Beira Interior será uma aula viva da história de Portugal – pois não foi por aqui que andou Viriato na defesa da Lusitânia?
A arqueologia é uma disciplina científica que encontra, nesta região, particular dinamismo. A arte rupestre paleolítica do Côa é, talvez, a mais mediática, mas são várias as ofertas e os polos arqueológicos visitáveis, desde a já referida arte rupestre, passando por castros e lugares da Idade do Cobre e do Bronze, descobrindo sítios romanos e castelos medievais.
Uma reflexão sobre a Beira Interior não pode deixar de ter em conta a Rota das Aldeias Históricas. Qualquer que seja o percurso escolhido, o visitante irá inevitavelmente encontrar locais de interesse em aldeias preservadas, cujo esforço de dinamização resulta em núcleos vivos com oferta diversificada, quer em termos de património edificado e equipamentos culturais quer em termos de alojamento e gastronomia. E a gastronomia? A gastronomia da Beira Interior é muito rica e diversa, tendo sido as condições naturais a proporcionar os primeiros produtos consumidos na região. Com o desenvolvimento de vias de comunicação e fixação de povos distintos, outros alimentos foram sendo transacionados e introduzidos.
Mais do que uma história da alimentação, interessa-nos perceber o que condicionou e influenciou a cozinha da Beira Interior: granito, xisto, montanhas e vales férteis; abundância de água; influência continental mas também atlântica e mediterrânica; ocupação humana ancestral; predominância de gado miúdo, sobretudo ovicaprino; transumância; abundância de caça; divisão da terra em unidades familiares (hortas, quintas e campos); cereais - trigo, centeio, milho; grão, feijão e favas, usados como culturas de rotação com os cereais; batata (introduzida no séc. XVIII); vinhas e olivais (associadas à cultura romana-mediterrânica e que integram o processo de homogeneização de sul para norte dos costumes alimentares); peixe dos rios; rede de estradas (que permitiu a introdução de peixe de mar, fresco, salgado ou seco, sal, especiarias); fixação de ordens religiosas; economia de autoconsumo (durante muitos séculos).
A Beira Interior é uma zona de queijos de grande qualidade – de ovelha, de cabra ou de mistura. Impossível não referir o queijo da Serra da Estrela, obtido de leite cru de ovelha, cardo e sal. É um queijo de pasta mole, tido por muitos como o melhor queijo português, sendo a sua qualidade reconhecida ao longo dos séculos, quer como bem essencial da alimentação quer enquanto produto de troca, base de uma economia agro-pastoril que desde tempos imemoriais vingou na Serra da Estrela.
Pão, vinho, queijo, azeite, borrego, cabrito, porco, caça, leguminosas e verduras, mas também peixes, aves, cogumelos, doces e frutas – o receituário da Beira Interior é plural de produtos e cozeduras, é texturado, matizado e colorido. Fruto de uma “tenacidade teimosa (…) talvez indefensavelmente idealista dos camponeses da Beira”. Testemunho da “rija e obsessa alma beiroa” (Aquilino Ribeiro in “Andam Faunos pelos Bosques”). Como acontece um pouco por todas as regiões produtoras de vinho, e a Beira Interior não é exceção, o enoturismo tem vindo a desenvolver-se. As propostas poderiam ser tantas que optámos por dividir a nossa viagem nas três sub-regiões vitivinícolas. Em cada uma, visitámos um produtor e foi esse o ponto de partida que nos foi despertando os sentidos e, esperamos, desperte a curiosidade de quem decida aventurar-se pelas “terras do demo”. É o “impraticável dos caminhos” que nos vai levar por uma viagem de cenários fantásticos, vinhos e gastronomia.
Cova da Beira
A Cova da Beira é a sub-região que se localiza mais a sul, desde os contrafortes a leste da Serra da Estrela até ao vale do Tejo, a sul de Castelo Branco, sendo a que tem características naturais que mais se diferenciam das restantes. Engloba o Fundão e a Covilhã, continuando para norte até Belmonte e Sortelha. É precisamente em Belmonte, mais especificamente em Carvalhal Formoso, que vamos encontrar a Quinta do Termos. Com uma história enraizada na produção de vinho, esta propriedade tem uma área de cerca de 180 hectares, dos quais 60 são de vinha.
Quinta dos Termos, Pousada de Belmonte, H2otel
A Quinta dos Termos é um negócio familiar, com condições ótimas para a produção de vinho, numa paisagem de granito (solos pobres), que inclui área de montanha, terras de centeio, produção de mel e azeite. As vinhas, pela exposição a sul e declive meio acentuado, estão resguardadas dos ventos frios do norte e
devidamente ensolaradas.
Em 1945, a quinta foi adquirida por Alexandre Carvalho. Desde 1993 é o filho, João Carvalho, empresário têxtil de sucesso e engenheiro de formação, que assume os comandos e que, a par da mulher, Lurdes, nos recebeu num dia quente de verão.
As vinhas mais antigas, cerca de quatro hectares, datam de 1931, tendo a grande renovação, e respetiva expansão de área tido início em 1997. A Quinta dos Termos conta, desde 2001, com a consultoria enológica do professor Virgílio Loureiro, estando toda a área agrícola certificada em produção integrada. O objetivo será, a curto prazo, passar a produção biológica.
Durante o passeio pelas vinhas, João Carvalho pergunta-nos: “São bonitas as minhas vinhas, não são?”. A pergunta foi feita quase como se estivesse a falar consigo próprio, com uma ponta de emoção e orgulho. Tudo está impecavelmente cuidado, ordenado, “polido”. A originalidade destes vinhos assenta numa filosofia própria e numa prática de experimentalismo, com a investigação genética a assumir uma enorme importância. A Quinta dos Termos desenvolveu um campo de clones de videiras, laboratório vivo destinado à investigação de castas, sendo dezenas as variedades de uva que lá podemos encontrar. A Fonte Cal, por exemplo, variedade autóctone quase perdida, começou a ser recuperada em 1997, tendo a primeira vinificação acontecido em 2003. Esta casta é um dos mais importantes exemplos do papel da Quinta dos Termos enquanto centro de estudo, ensaio e resultados para toda a região.
A diversidade é transversal - desde castas tradicionais como Marufo, Rufete ou Síria, passando por clássicas portuguesas como a Touriga Nacional, Tinta Roriz ou Tinto Cão, chegando até à procura do virtuosismo das internacionais Riesling ou Sangiovese. O resultado são cerca de 25 vinhos comercializados, numa produção de mais de 600.000 garrafas por ano, com distribuição própria. Brancos, tintos, espumantes, rosés e um clarete preenchem o portefólio atual. Inúmeros prémios nacionais e internacionais distinguem estes vinhos. As pontuações da crítica especializada também reconhecem a sua qualidade, tendo a Revista de Vinhos atribuído 17 valores, quer ao Surpresa de Virgílio Loureiro Baga 2011 quer ao Reserva Vinhas Velhas 2011, e 16,5 ao Branco Reserva 2014.
Os vinhos da Quinta dos Termos seguem uma linha de qualidade e um caminho construído a partir da curiosidade e do ensaio consciente, com carácter vincado e diferenciado. Têm raça. São autênticos. Na quinta podem ser feitas visitas às vinhas e à adega, com provas e cursos de iniciação à prova de vinhos. A família Carvalho não pode ser mais simpática na arte de bem receber, expressão da dedicação que tem à Quinta dos Termos.
Ainda em Belmonte, terra de Álvares Cabral e historicamente ligada aos judeus que por aqui se fixaram no século XVIII, vamos encontrar a Pousada Convento de Belmonte, feita a partir das ruínas do convento de Nossa Senhora da Esperança. Trata-se de uma belíssima recuperação que transformou o edifício do séc. XIII num hotel que alia a estrutura e linguagem medievais a materiais e opções arquitetónicas contemporâneas.
A Pousada do Convento de Belmonte é, igualmente, uma ótima escolha para as refeições. O restaurante, que há muito se destaca pelo uso de cogumelos (abundantes nos bosques da região) e pela abordagem cuidada e moderna da cozinha beirã, tem também um bom serviço de vinhos.
Depois de Belmonte, uma paragem no Fundão dá-nos a oportunidade de experimentar uma refeição mais simples n’ “O Alambique de Ouro”. Este é um restaurante regional, com uma carta diversificada. Nas “especialidades” e “sugestões” encontramos várias propostas de bacalhau, cabrito, cordeiro e porco, havendo um capítulo dedicado apenas à carne mirandesa. Quanto à carta de vinhos, as referências de vinhos da Beira Interior têm o maior peso.
Em pleno Parque Natural da Serra da Estrela, em Unhais da Serra - Covilhã, deixamos uma outra sugestão para estadia, o H2otel. A estrada lembra-nos Sintra, muito verdejante, num sentimento de profundo romantismo. Já o edifício tem a ver com neve e montanha, em tudo remetendo para uma paisagem alpina. O hotel foi criado a partir da concessão das águas termais de Unhais da Serra as quais, nos tempos áureos do termalismo de finais do séc. XIX, início do séc. XX, constituíam um grande foco de atração. Unhais da Serra tinha hotel com casino, desenvolvendo-se um turismo de elite, com gostos modernos e um certo glamour. O H2otel, Congress and Medical SPA é um eco hotel certificado, criado em 2008, com 95 quartos. O complexo Aquadome/H2otel engloba também as termas - Aquatermas, uma área de wellness, com ginásio e salas de tratamento - Aquacorpus, um centro de fisioterapia - Aquafisio, uma clínica e uma enorme área lúdica, com piscinas exteriores e interiores, com circuito celta de sauna, banho turco e fonte de gelo - o Aqualudic.
Alquimia é o restaurante do hotel e conta com a criatividade do chefe brasileiro Valdir Lubave que, durante largos anos, esteve à frente da cozinha do Convento de Belmonte. A preocupação com a nutrição está naturalmente integrada em toda a filosofia do H2otel, podendo a orientação de tratamento estender-se às refeições durante a estadia.
A carta do restaurante tem pratos diferenciados para propostas macrobióticas e ovolactovegetarianas. O recurso à riqueza dos produtos serranos está bem visível, a par do uso das ervas aromáticas e dos indispensáveis cogumelos. A oferta de vinhos é diversificada, abrangendo quase todas as regiões portuguesas. Tem algumas
referências estrangeiras e vinhos a copo. Como seria expectável, a entrada da carta faz-se com vinhos da Beira Interior, sendo o destaque (na altura da nossa visita) a Quinta dos Termos, com nove rótulos.
Castelo Rodrigo
A sub-região de Castelo Rodrigo está separada de Pinhel por picos montanhosos que ultrapassam os mil metros de altitude e por uma importante linha de água, o rio Côa. Situada na fronteira com Espanha, estende-se desde Figueira de Castelo Rodrigo (a norte), passando por Vermiosa e descendo até Almeida (mais a sul).
Quinta do Cardo
A Quinta do Cardo situa-se em Figueira de Castelo Rodrigo, aldeia histórica cujas muralhas medievais terão sido construídas a partir de um forte romano, no anfiteatro natural do planalto ibérico, envolvida pelos rios Douro, Côa e Águeda e pelas serras da Estrela, Marofa e Malcata. Percebemos a metáfora de Aquilino: só as “terras do demo” permitem que a Quinta do Cardo tenha todas as suas vinhas acima dos 700 metros, chegando a mais alta aos 763.
A história desta quinta é relativamente simples, tendo as primeiras cepas sido plantadas em 1932 por José António Maria. Em 1940, a quinta é comprada pela sobrinha, Esmeralda Maria. Desta data damos um salto até ao final dos anos 80, quando a propriedade é perdida no jogo, permitindo a aquisição por Maria Luíza Lima e marido. Após o divórcio do casal, a quinta fica com Maria Luíza e conhece um grande desenvolvimento das vinhas e do vinho que então se produz.
Atualmente, a Quinta do Cardo integra a Companhia das Quintas (presente em várias regiões portuguesas). Trata-se de uma propriedade de cerca de 180 hectares, na qual a vinha ocupa 69, com uma produção anual de 200.000 garrafas. Existe também montado de sobro e floresta espontânea. Os solos são maioritariamente graníticos, com alguma presença de xisto e argila, ácidos, pobres, pedregosos. O clima é a expressão máxima de tudo o que já dissemos sobre a Beira Interior - continental (com os invernos rigorosos e verões quentes e secos) e com noites tão frescas no verão que facilmente se regista uma amplitude térmica diária de 20 graus.
É neste terroir diferenciado que vamos encontrar as variedades tintas Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Alicante Bouschet e Merlot. Quanto às brancas destacam-se Síria, Arinto e Fonte Cal. O enólogo da Quinta do Cardo é Luís Leocádio. Por estar fora, a Revista de Vinhos foi recebida por Frederico Vilar Gomes (senior winemaker da Companhia das Quintas) e por José Menezes Barbosa (que, no Douro, trata da enologia da Quinta de Fronteira).
A manhã de verão estava maravilhosa e a visita às vinhas mostrou-nos a diferença e a filosofia que está a ser seguida. A Quinta do Cardo encontra-se em modo de produção biológica desde 2009, sendo encarada com muito rigor e absoluta confiança toda a mudança por que teve que passar.
As condições naturais indicam um imenso potencial para a produção de brancos, sendo impossível falar da Quinta do Cardo sem nos lembrarmos do Síria que desde há muito tem lugar cativo entre as originalidades portuguesas. Pois é exatamente o Síria 2014, com uma imagem inteiramente nova, que inaugura os vinhos biológicos da Quinta do Cardo, estando também a ser preparado o lançamento do Reserva Síria 2014 (50% estagiado em madeira). São brancos de grande frescura, muito originais, que não escondem a sua coluna vertebral de acidez.
Mas o universo da Quinta do Cardo estende-se para além dos brancos. O espumante rosé e os tintos completam o portefólio. No espumante de 2010 projetam-se os atributos de frescura, equilíbrio e de uma profundidade a que não serão alheios os três anos, em cave, com as leveduras. Os tintos são vinhos sem os exageros do calor ou de extrações excessivas, com desenho delicado. São vinhos com espessura… veja-se o Grande Escolha que, nesta edição da Revista de Vinhos, pontuámos com 17,5.
A Quinta do Cardo recebe quem a quiser visitar e, se tiver a sorte de um bom dia de calor, encontra o enorme prazer de beber um copo de espumante no final do percurso pela vinha.
Pinhal
A sub-região de Pinhel desenvolve-se desde Mêda e Marialva, a norte, passando por Celorico da Beira, e continuando para sul, até à Guarda. A nossa paragem faz-se em Marialva, cujo recorte do castelo surge na paisagem como uma alegoria medieval, tão misteriosa quanto serena e silenciosa. Estamos em mais uma aldeia histórica da Beira Interior, cuja ocupação primitiva remonta a um castro de uma tribo de Lusitanos, tendo seguido o percurso da história com romanos, visigodos e muçulmanos. A estrutura inicial da muralha data do início da nacionalidade, quando D. Afonso Henriques passa carta de foral a Marialva, para incentivar o repovoamento.
Casas do Côro
Nesta freguesia do concelho de Mêda vamos conhecer as Casas do Côro. Somos recebidos por Paulo e Carmen Romão, cuja vida mudou quando decidiram comprar ruínas de casas da parte alta da aldeia e começar a reconstruí-las numa lógica alternativa ao que até então a região tinha para oferecer em termos hoteleiros. As obras iniciaram-se em 1998 e na Páscoa de 2000 abriam-se as portas do turismo rural Casas do Côro. Desde então não passou um ano que não tivessem obras a decorrer.
Após essas primeiras casas outras se sucederam, culminando com a inauguração, neste verão, de mais sete suites, uma nova receção e um spa. No total são 13 casas, com a hipótese de se reservar apenas uma suite ou quarto. A filosofia desta unidade hoteleira passa pelo regresso aos valores da terra, das origens e da história. Desta forma, os hóspedes experimentam viver numa verdadeira aldeia beirã, com uma oferta diversificada que passa por atividades como BTT, caça e pesca, cruzeiros no Douro, desportos náuticos ou caminhadas.
As Casas do Côro têm piscina exterior e, como já foi referido, o recém-inaugurado spa, que vem reforçar a oferta no âmbito dos serviços prestados aos hóspedes. Trata-se de um spa eco friendly, com salas de tratamento e de relaxamento, piscina interior com aqua fitness, sauna, turco e uma zona de estar. O spa é um edifício totalmente novo, com o enquadramento certo relativamente aos pontos de vista com a envolvente (nomeadamente o castelo) e rodeado por um jardim de oliveiras.
Quando receberam os primeiros hóspedes, há 15 anos, Paulo e Carmen não estavam preparados para responder à pergunta, “onde podemos jantar aqui perto?”. Não estavam preparados porque a resposta era difícil, senão inexistente. Carmen tratou imediatamente do assunto da forma que lhe pareceu mais óbvia até hoje: cozinhar ela. Assim, a partir do segundo dia de vida, as Casas do Côro têm jantares. Não se trata de um restaurante aberto a todos, mas sim preparado para as refeições dos hóspedes, no qual Carmen decide o menu dia a dia, tendo em conta os produtos da horta. Os comensais devem reservar lugar previamente e, quando o fazem, são informados quais os pratos para essa noite de forma a, se houver alguma restrição, ser possível uma alternativa. O vinho é escolhido por Paulo Romão, havendo sempre a hipótese de adquirir uma garrafa diferente na loja das Casas do Côro e servi-la durante o jantar.
Trata-se de uma fórmula muito bem aplicada, com todos os procedimentos devidamente articulados, parecendo ser um enorme jantar de família. E foi exatamente a este ambiente que assistimos na refeição que tivemos com Carmen e Paulo. Para amuse bouche, uma “tosta com Queijo da Serra, manjericão, sementes e mel”. Depois as entradas, com uma deliciosamente ácida “miga de tomate e ovo poché” e uma reconfortante “sopa de verduras”. O “rosbife” teve o enquadramento do tinto “Casas do Côro Family Harvested 2011”. As sobremesas são servidas em buffet, pelo que existe sempre um movimento que torna tudo ainda mais natural e familiar.
Aqui, nesta região erma e agreste, no literário “tormento telúrico”, nos confins da Beira Interior, o nome “Casas do Côro” materializa um outro gosto do casal Romão - os vinhos. Pela localização, na linha de fronteira com o Douro, as Casas do Côro ocupam um lugar de alojamento de referência também no Douro Superior. Com o hotel inicia-se assim um conjunto de relações no mundo do vinho e as parcerias assumem uma importância cada vez maior no negócio.
O interesse foi crescendo e o ponto-chave desta história dá-se com Dirk Niepoort. Com um entusiasmo inato por vinhos de altitude e por vinhas velhas, Dirk incentiva Paulo Romão a aproveitar o potencial que existe em Marialva, sobretudo para vinhos brancos. Os primeiros vinhos nascem, assim, com uvas compradas a lavradores locais (assumindo também uma responsabilidade social, uma vez que estamos a falar de idosos, cujo trabalho na vinha começava a ser abandonado) e são feitos por Dirk Niepoort. Isto aconteceu há cerca de nove anos e, desde então, a procura não cessou.
Uma vinha velha com 1,5 hectares foi comprada em Marialva e Paulo Romão começa a comprar terra para plantar vinha. Neste momento são já 12 hectares no coração da aldeia, divididos em pequenas áreas localizadas em pontos estratégicos. O vinho aumenta a experiência dos hóspedes e a arquitetura da vinha adquire duas dimensões.
Por um lado, produz as uvas necessárias, por outro serve de lugar para estar, para parar, criado especificamente como uma parte do hotel. Como se lêssemos o território como um edifício… onde cada spot de vinha é uma “sala de estar” na enorme e complexa planta que projeta as Casas do Côro na própria aldeia de Marialva. Numa clareira, entre pedras e vinhas, com vista perfeita para o castelo, foi criado um lounge no qual é possível descansar, meditar, fazer um piquenique, ouvir o silêncio e até jantar, assistindo a um pôr-do-sol épico. A filosofia para estas vinhas é contrária a tudo o que estamos habituados e a pequena propriedade é vista com enormes vantagens.
As castas plantadas são Rabigato (em mais de 50% da área), Verdelho da Madeira, Alvarinho, Códega do Larinho, Viosinho, Donzelinho Branco, havendo o projeto para 1,5 hectares de Arinto. Quanto à Síria, é uma variedade comprada em Figueira de Castelo Rodrigo. Para os vinhos tintos, todas as uvas são provenientes de vinhas velhas, compradas localmente, conforme estratégia inicial.
Entretanto, Rui Madeira, a partir da sua adega na Vermiosa, junta-se ao projeto, sendo o atual enólogo. O entusiasmo pelo potencial da região, com vinhas a cotas médias de 580 metros, na transição do xisto para o granito, é enorme. Neste momento, a produção é de 30.000 garrafas, divididas entre quatro referências: um branco e três tintos. O reconhecimento não tardou - o Family Harvested 2011 ganhou o prémio de “Melhor Vinho da Beira Interior 2015” (no concurso organizado pela Comissão Vitivinícola da Beira Interior), tendo a classificação de 16,5 na Revista de Vinhos. O Casas do Côro branco 2013 (16 valores) é de uma frescura invejável e profundamente cristalino.
Os tintos, nos quais Rui Madeira usa vinhas velhas de solos graníticos e combinações de Alfrocheiro, Tinta Roriz, Jaen e Touriga Nacional de xisto, são vinhos poderosos, com um trabalho de barrica evidente, com longevidade e que mantêm o expectável caráter de frescura. Os vinhos podem ser adquiridos na loja das Casas do Côro e em pontos de venda da cadeia Pingo Doce. Claro que em Marialva temos o privilégio de conhecer a família Romão e experimentar o que verdadeiramente quer dizer a palavra hospitalidade e a expressão “projeto de família”.
TEXTO Célia Lourenço