CARLOS LUCAS

O enólogo que se reinventou

 
Marc Barros

Marc Barros

Cinquenta anos e 25 vindimas volvidas, Carlos Lucas continua a assumir-se um enólogo do Dão. Após vários anos ligado a um gigante da região decidiu-se por um novo caminho, começando do zero um projeto pessoal que tem dado bons frutos… e bons vinhos. Nessa caminhada tem tido reencontros com o passado mas muitas outras ideias para agarrar o futuro e tentar o que sempre lhe deu maior gozo: fazer diferente.

 

Se pudesse, Carlos Lucas só elaborava vinhos brancos. O fascínio crescente por aquela ipologia de vinhos leva-o desde já a antecipar-nos um dos próximos investimentos: encontrar uma área de cerca de 10 hectares de castas brancas, no Dão, que estejam na base da produção de vinhos brancos de diferentes segmentos.

Essa como tantas outras ideias fervilham e a vontade de as concretizar levam-no sempre a ir  mais além. Quem, como ele, já conheceu altos e baixos e atingiu um determinado estatuto na enologia portuguesa poderia simplesmente deixar-se levar ou abrandar o ritmo. Mas tal como a adrenalina de quem percorre milhares de quilómetros em cima de uma moto, também o vinho e o querer empreender em nome próprio levam-no mais adiante. Um projeto, dois projetos… e por que não outro ainda?

As incursões do motard Carlos Lucas diminuíram, por manifesta falta de tempo e pelo receio crescente da alta velocidade, a duas rodas, no asfalto. Os 50 anos significam uma maturidade acrescida, pelo que a graça até acaba por ser maior ao volante de um Land Rover clássico, herança familiar, que aos poucos vai recuperando e com o qual vai passeando por entre parcelas de vinha própria.

Carlos Lucas nasceu em Coimbra, mas a ligação à Beira Alta é de infância. O avô viveu em Canas de Senhorim, a mãe também lá estudou. Mesmo quando se deu o regresso familiar a Coimbra, as incursões àquela localidade eram frequentes, sobretudo por alturas do Carnaval. 

O entrudo festeja-se de forma bem tradicional em Senhorim e ainda hoje a mãe gosta de vivenciar a festa. Fez engenharia agrícola em Coimbra. Estagiou em viticultura, seguindo-se o Centro de Estudos Vitivinícolas da Bairrada e Montpellier, França, onde se dedicou à enologia. Defende, por isso, que os vinhos devem ser sempre desenhados na vinha, que um enólogo deve dominar os princípios da viticultura, sobretudo antecipando a escolha clonal de castas que estarão na base do estilo de vinhos que se almeja.

Os primeiros passos profissionais a sério foram dados na Adega Cooperativa de Nelas, de início como enólogo residente, depois como consultor de enologia, já quando pelo entremeio havia abraçado a Dão Sul (atual Global Wines).

Era um Dão em agonia, aquele dos anos 90. Recorda-se de entrar, em 1992, na Adega de Nelas e deparar-se com depósitos cheios de vinho, pois os stocks teimavam em não encontrar mercado. Se vender vinho não era fácil, a verdade é que esse mesmo vinho parecia demasiado igual. Juntando o útil ao agradável, sempre que podia Carlos Lucas aliava o gosto pelas viagens ao estrangeiro para provar o maior número possível de vinhos de diferentes paragens, captando tendências. A cada regresso, trazia o sentimento reforçado do muito por fazer no Dão, em particular o fazer diferente.

Os anos mais recentes têm sido desafiantes. Carlos Lucas fora um dos impulsionadores da Dão Sul, que num relativo curto espaço de tempo se tornou um gigante no Dão e um operador importante noutras regiões, como a Bairrada, o Douro, o Alentejo, Lisboa, os Vinhos Verdes e o Vale de São Francisco, no nordeste do Brasil. Opta por sair da Dão Sul em 2011 e daí recomeça do zero. Nasce, no ano seguinte, a Magnum Carlos Lucas Vinhos.

O centro operacional está localizado na Quinta do Ribeiro Santo, em Oliveira do Conde, freguesia de Carregal do Sal. Adega nova, equipada de forma singela, com armazém de expedição, laboratório, sala de receção e eventos, loja. Ao lado, uma área de 19 hectares de vinha. Desde início fez questão de assinar cada vinho de forma mais personalizada, não só potenciando o nome como que querendo transmitir uma ideia acrescida de compromisso total com o projeto.

Aquando da nossa visita, igualmente a pretexto da gravação de um episódio televisivo do programa “A Essência” (com autoria e produção EV-Essência do Vinho, exibido semanalmente na RTP3, no cabo e agora também em sinal aberto, com repetições no mesmo canal e na RTP Internacional), Carlos Lucas acentuou por diversas vezes que não pretende ter uma empresa de grande dimensão. A verdade é que já produz 600.000 garrafas/ano, mais de metade dirigida a mercados de exportação. Os vinhos têm designações curiosas, como E.T. (Encruzado e Touriga Nacional), Automático, Baton, Jardim da Estrela ou Flor de Maio (alguns apenas destinados à exportação). Garante não ter a ambição de ser um produtor com dimensão definida, antes um criador de grandes vinhos, que proporcionem prazer à mesa.

Faz questão de ser reconhecido como um enólogo do Dão, não só por se identificar bastante com a região como por todo o trabalho que ali tem desenvolvido, ainda que acumule experiências no Alentejo e no Douro, apenas para referir as atuais. Em jeito de provocação admite, ainda assim, que por vezes se sente um E.T.. A sensação não é nova; explica-a por considerar-se talvez demasiado extravagante para os cânones do Dão. Recorda, com alguma mágoa, os tempos de jovem enólogo, onde em sessões de prova com pares foi por diversas vezes ignorado. Apesar de nunca o terem feito sentir em casa, ele conquistou a casa.

E é no Dão que se sente como peixe na água. Elogia a possibilidade que a região ainda proporciona para quem quiser arriscar algo de novo, a par da manutenção de um perfil que todos reconhecemos aos vinhos do Dão: elegância, pouca extração de taninos e de cor, versatilidade de harmonização gastronómica.

Além da Quinta do Ribeiro Santo, Carlos Lucas adquiriu a Quinta da Alameda, no limite da freguesia de Santar com a de Vilar Seco, concelho de Nelas. É uma propriedade com historial, dado ter sido dos primeiros produtores engarrafadores do Dão, em 1985. A Quinta da Alameda deixou de produzir com marca própria em 2000 e, tratando-se de uma área privilegiada de 30 hectares, Carlos Lucas comprou-a, em 2012.

Na primeira vindima limitou-se a engarrafar apenas o que de uvas sãs conseguiu aproveitar, face a tamanho interregno de produção naquele local. De então para cá tem insistido na reconversão das vinhas, que vão sendo dispostas em socalcos, à exceção de uma área de vinhas velhas, com cepas de 80 anos, plantadas em patamares.

O cenário próximo está desenhado. Fazendo jus ao nome da propriedade, quem ali entrar irá percorrer uma alameda ladeada por vinhas novas, até chegar ao torreão – ruína que será recuperada.

Poderá depois seguir até à nova adega, que terá três lagares centrais de granito polido, uma zona de balseiros (para estagiar vinhos que não fiquem demasiado marcados por madeira) e uma terceira área vocacionada para o enoturismo. À face da estrada que permite a ligação Viseu /Nelas /Serra da Estrela, Carlos Lucas acredita estar a criar uma nova atração enoturística no Dão.

 

Dois vinhos "fora da caixa" e a parceria entre primos

 

Estamos à mesa, na Quinta do Ribeiro Santo. Ao almoço juntam-se a nós Joselito Lucas, Vítor Lucas e António Lucas, primos do cicerone. Pelo sobrenome é fácil depreender que estamos entre familiares, mas neste caso a ligação é também profissional.

Agora dono do próprio nariz e inserido numa família com queda para o empreendedorismo, Carlos Lucas lançou o repto aos primos que com ele, em Coimbra, partilharam vários momentos de infância e juventude – aliar esforços e promover vinhos (Carlos), bacalhau (Joselito e Vítor), congelados e semifrios (António). Primos, amigos e empresários começaram a participar em eventos internacionais em conjunto, a lançar ações promocionais em Portugal em parceria.

Trocam-se experiências, abrem-se novas portas, perspetivam-se novas oportunidades de  negócio. Mas, voltemos à mesa. Para início de almoço, dois brancos. O Ribeiro Santo Encruzado 2015, de cor limão, bastante cítrico e fresco, e o Ribeiro Santo Vinha da Neve 2013, cor limão mais carregada, aromas abaunilhados do estágio de cinco meses em barrica, com acidez equilibrada e uma componente cítrica que ainda se nota. Próximo capítulo, os tintos.

O Ribeiro Santo Automático 2014 é a abordagem de Carlos Lucas aos vinhos naturais, “sem radicalismos”. Após vindimadas e transportadas para a adega, apenas uma parte das uvas é desengaçada. Segue-se fermentação em inox, com as leveduras autóctones, seguindo-se uma ligeira filtração antes do engarrafamento. “Diria que é um vinho de lavrador, um vinho  autêntico”, acentua o autor, que diz dispensar alguns dos chavões da moda, como vinho biológico ou qualquer outro tipo de certificação.

A fechar, o E.T. 2013., abreviatura das duas castas que o compõem, Encruzado (branca) e Touriga Nacional (tinta). Símbolos maiores dos vinhos do Dão, as duas variedades foram emparelhadas por Carlos Lucas para elaborar um vinho “à moda antiga”. O enólogo recorda o Dão (e muitas outras regiões) de outra era, em que uvas brancas e tintas estavam misturadas nas vinhas (como ainda acontece em várias cepas de vinhas velhas) e assim davam entrada na adega. Este E.T. tem 15% de Encruzado e a fermentação dá-se em conjunto com a Touriga (a legislação permite a fermentação de castas brancas e tintas, o que proíbe é a mistura de vinho branco com vinho tinto). A cuba onde este E.T. fermentou está no centro da adega do Ribeiro Santo, tratando-se de um depósito pensado por Carlos Lucas e Carlos Rodrigues, o braço direito na enologia e viticultura. A cuba tem um formato igualmente “extraterrestre”, propositado para evitar a transmissão de demasiada intensidade corante.

No copo, o E.T. apresenta-se com uma cor rubi aberta e uma combinação aromática que combina fruta vermelha, chá e especiarias de barrica usada, onde estagiou durante 12 meses.

O prato principal do almoço foi uma interpretação do célebre bacalhau com todos. O bicharoco tão apreciado em Portugal foi capturado nas águas frias da Islândia, em 27 de fevereiro de 2015, tendo a particularidade de ter tido uma cura de 20 meses. Chegado a terra firme, esteve em sal durante sete meses. Depois foi seco e assim mantido em palete, durante um ano, nas instalações de Taveiro (Coimbra) da Lugrade, a empresa de Joselito e Vítor Lucas, que comercializa bacalhau.

Em setembro de 2016 foi embalado, tendo entrado em comercialização apenas em finais de novembro. É vendido num saco de sarapilheira, a lembrar outros tempos, mas vale pelo sabor intenso, pela invulgar cor palha e pelo facto de se desfazer em lascas finas no prato… e na boca.

Para sobremesa, uma montra de doces: tarte de amêndoa, semifrio de laranja, cheesecake americano, gelado de arroz doce e gelado de tarte. São propostas da Nutriva, empresa de António Lucas, que recentemente encetou uma parceria para algumas receitas com o chefe de cozinha Diogo Rocha.

Não saímos sem deter o olhar, uma vez mais, pela montra da receção e loja da Quinta do Ribeiro Santo. E face a tantos vinhos assinados por Carlos Lucas, uns do Dão, outros do Douro, outros ainda do Alentejo, uns quantos para Portugal, outros mais para exportação, percebemos facilmente que o enólogo se reinventou e não se ficará por 25 vindimas.