Com a discrição, a elegância e a simplicidade que cabe apenas aos sábios e experientes, António Ventura assume-se como “alfaiate”, que faz vinhos por medida. Acompanhamos o enólogo num percurso por quatro décadas de carreira, que coincidiu com a revolução dos vinhos em Portugal, da qual foi intérprete e guionista.
A oportunidade para fazer reportagem com alguém que celebra 40 anos de enologia é boa demais para se perder. Sobretudo, quando esse alguém é António Ventura, um dos mais prolíficos e conhecedores técnicos portugueses, cujo percurso, feito nas mais diversas regiões portuguesas, atravessou gerações, tendências, modas, técnicas, enfim… António Ventura é, por assim dizer, um fiel da balança, que viveu e foi protagonista cimeiro da revolução dos vinhos portugueses das últimas décadas e que, por esse motivo, está em posição privilegiada para dar o seu testemunho sobre essa mesma evolução.
Combinado o encontro na adega da Vidigal Wines, de onde sai um dos mais bem sucedidos ‘case studies’ da moderna vinicultura nacional, que dá pelo nome de Porta 6 (seis milhões de litros de tinto e um milhão de brancos, 90% dos quais para exportação, com destaque para o mercado britânico), António Ventura faz-se acompanhar de três jovens enólogos – Mauro Azóia, Carina Tavares e Vítor Sobreiro, este filho de Emanuel Sobreiro, sócio minoritário da Vidigal Wines, com António Mendes Lopes, há muito radicado na Escandinávia -, que com ele trabalham neste produtor que mudou de mãos recentemente (integra agora o universo Abegoaria) e antecipa desde logo uma das suas preocupações: a formação e, por que não dizê-lo, a educação das novas gerações de técnicos.
Talvez porque ressoe no seu próprio percurso, na formação que teve de perseguir no estrangeiro, mas também nas lições que recebeu daquele que indica como mestre: Octávio Pato, “um dos grandes enólogos portugueses”, refere. “Era impossível estagiar com ele durante um ano e não seguir enologia”, refere António Ventura que, depois de cursar Agronomia em Santarém e, mais tarde, em Évora, pensou seguir a via da horticultura e não da viticultura. “Eu era um miúdo e ele um homem com mais de 60 anos, mas criamos uma ligação de amizade que ficou para toda a vida”.
Voltando à formação: foi um aspeto fundamental na vida do enólogo que, já na época, optou pelo estrangeiro, com uma pós-graduação em Viticultura e Enologia, na Universidade de Geisenheim, na Alemanha (“uma grande escola de vinhos brancos”), seguida de uma outra na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica do Porto e, posteriormente, Austrália, onde obteve o Associate Diploma of Applied Science em Viticultura e Enologia, na Charles Sturt University. Esta visão global do mundo do vinho foi fulcral para António Ventura, que reconhece a evolução formativa nas últimas décadas: “Nos anos 70 e 80 havia duas formas de começar; ia-se para o ISA e fazia-se uma especialização, lá fora, porque aqui não havia nada”. Hoje é possível “fazer uma boa formação de base em Portugal, mas a maioria dos jovens enólogos viaja, o que não se passava no meu tempo. Quando chegam vêm com uma bagagem que, naquela altura, não era fácil” obter.
Um longo trajeto
O início da sua vida profissional, em 1981, aconteceu na região de Lisboa, com Octávio Pato, na Adega da Vermelha. “Mudou tudo em 40 anos”, enumera. “Quando comecei a trabalhar, o principal objetivo do enólogo era não deixar azedar o vinho – se o conseguisse era um grande enólogo. Hoje estamos focados em muito mais fatores, os meios tecnológicos são outros, mas na altura só nos preocupávamos com dois: pH e acidez volátil – e ainda assim pH era um conceito recente, desenvolvido pela família do meu mestre”. Desde que “os vinhos tivessem pH e acidez volátil baixos, nada mais interessava”. Hoje, “sendo fatores importantes, não são minimamente decisivos; o critério de decisão é distinto, o enólogo é multidisciplinar, na altura só se preocupava com a adega. Hoje tem que estar articulado com o marketing, a gestão, com tudo”.
“Naquela época, apreciava-se a cor e que não fosse demasiado tânico”. Aliás, “o grande sucesso da nova vaga de vinhos há 20 anos foi esse, mais suaves que a generalidade dos vinhos que vendiam então”. O Alentejo “conquistou o mercado interno com grande sucesso a partir daí”. O vinho “também é moda e, ao longo de 40 anos”, o enólogo acompanhou todas as tendências – “nessa altura, se os brancos não fossem amarelo topázio não eram bem recebidos, diziam que era água. Se, hoje, apresentar ao consumidor um vinho com essa cor, vai dizer que não serve”. António Ventura elabora vinhos para mais de 40 países, entre os quais “vinhos para mercados que pedem fruta, concentração e potência, e outros, frescos e mais minerais. Temos que estar preparados para o que nos pedem”, resume.
Nessa primeira vindima de 1981, António Ventura sofreu um baptismo de fogo: “Vinificamos 33 milhões de kgs., dos quais 90% de uvas brancas e 10% de uvas tintas, de uma vindima que não foi fácil”, recorda. Aliás, o enólogo tem presente todas as 40 vindimas em que participou e consegue separar as de boa e má memória. Ainda nos anos 80, Octávio Pato teve um problema de saúde e António Ventura ficou, como se diz na gíria, a “aguentar o barco” sozinho. Isso deu-lhe “endurance e experiência”. Mais tarde, foi convidado para fazer consultoria ainda em Lisboa mas, pouco depois, “a primeira consultoria foi nos Vinhos Verdes”; “daí venho para o Alentejo, onde ainda trabalho muito, tal como em Lisboa, mas passei por quase todas as regiões, desde as Beiras ao Douro, Trás-os-Montes, ou Tejo. Hoje diversificamos a nossa atividade de consultoria pela maior parte das regiões portuguesas”.
A entrada de Portugal na CEE, em 1986, veio alterar o panorama vitivinícola nacional, porque permitiu aceder a fundos para infraestruturas e renovação do panorama vitícola. “Acompanhei esse processo”, recorda o enólogo – “estive envolvido nos primeiros projetos a nível de vinificação e lembro-me dos célebres programas 866 e 355 (para investimento e modernização tecnológica). Começamos a fazer e a renovar adegas e depois a preocuparmo-nos com a viticultura; veio o programa Vitis, que permitiu renovar vinhas que, na grande maioria, eram desadequadas, vocacionadas apenas para a produção de volume”; por outro lado, “é certo que se arrancaram vinhas aptas a produzir vinhos de grande qualidade”. António Ventura reflete que “foi esta renovação na viticultura e a melhoria das infraestruturas nas adegas que vieram permitir a evolução qualitativa dos vinhos portugueses – fizemos um percurso notável e toda a gente na fileira trabalhou de forma exemplar”. Um trabalho “global”, em que inclui “as organizações setoriais”.
Com 62 milhões de litros vinificados em 2021, António Ventura consegue dizer exatamente tudo o que foi feito em cada ano, as castas que melhor se comportaram e quanto produziram. A vindima mais difícil da sua carreira terá sido 1983, ano “em que as uvas chegavam à adega completamente podres, numa nuvem de poeira de botrytis”. Também 2014 “não foi fácil mas, devido aos meios tecnológicos disponíveis, conseguiu-se ultrapassar as dificuldades”. Por outro lado, “a vindima de 2020 foi de boa memória, e mesmo a de 2021, apesar dos dias de chuva, promete muito, com vinhos equilibrados, maturação fenólica bem feita, brancos com grande equilíbrio e frescura”.
Amor à Castelão
Apesar da evolução registada a todos os níveis, António Ventura faz saber a sua preocupação com a perda de património vitícola de grande mais valia enológica; “em Lisboa, por exemplo, a Vital esteve em risco de desaparecer - há quem diga que era demasiado produtiva, mas se for devidamente dirigida pode originar vinhos de grande qualidade. Mas posso falar de outras – Castelão ou Tinta Miúda, casta da região de Lisboa onde teve grande implantação, que desapareceu mesmo”, resume.
“Somos um pequeno país com enorme diversidade de solos e microclimas, terroirs - Alentejo não é apenas um, são vários”. E considera não fazer sentido a distinção castas nacionais vs. internacionais: “Há grandes castas e castas razoáveis, sejam nacionais ou internacionais”. Na sua perspectiva, “faz sentido ter castas internacionais em algumas regiões, onde se adaptam bem: por exemplo, em Lisboa, porque são uma mais valia enológica. Agora, também é verdade que Alvarinho e Arinto fazem vinhos tão bons ou melhores que Sauvignon Blanc. A Touriga Nacional faz coisas melhores nalgumas regiões que noutras. Mas, sempre que possível, trabalhar as castas nacionais” é preferível. E elege algumas castas: “Touriga Nacional, Tinto Cão no Douro, Touriga Franca nas Beiras, Castelão onde ele é bom, como Palmela, e alguns terroirs do Tejo e Lisboa – não podemos deixar banalizar o Castelão”, casta que assume adorar, sublinha. Nas brancas, “Arinto é uma das castas brancas de eleição, Viosinho e Gouveio dão origem a vinhos extraordinários em Lisboa”.
Na Quinta de Valverde, a 15 kms do mar em linha reta, na direção da Foz do Arelho, ficam 30ha de vinha dos 50ha que a casa agrícola da qual António Ventura é proprietário, plantadas com algumas castas nacionais e estrangeiras. Esta propriedade possui uma forte componente florestal, com sobreiro, eucalipto e uma pequena componente de pinheiro manso.
Aqui, os solos possuem “uma percentagem bastante elevada de calcário ativo”, dando origem a vinhos “com perfil diferenciador”. Além da casta Pinot Noir - “difícil, extremamente sensível a várias doenças e fungos mas recompensadora do ponto de vista qualitativo, porque este solo argilo-calcário, com declive que assegura a drenagem, permite obter uvas com enorme frescura – 8/9 gr. de acidez total e pH de 2.93” - existe uma parcela de 4 ha. de Castelão, “cujo potencial em Lisboa é elevado”; além destas, destaca a Viosinho, “casta típica do Douro mas que se adaptou muito bem”; Gouveio, “com produções pequenas mas qualidade muitíssimo interessante”; Arinto e Fernão Pires e as internacionais Chardonnay, Merlot, Syrah. Num outro núcleo, a cerca de 15 kms de distância, possui 20 ha. de vinha com Syrah – “sou amante de Syrah”-, Alicante Bouschet, “casta fantástica em termos de estrutura, dá sempre jeito ter à mão”; Sauvignon Blanc e Fernão Pires.
Atualmente, a atividade do enólogo divide-se em três áreas, centralizadas em Painho, Cadaval: a Provintage, empresa que presta consultoria enológica; a atividade agrícola, numa outra empresa, Vinhas do Zavial; e o laboratório que apoia e faz consultoria de análise um pouco por todo o país, designado Provinislab.
Alfaiate dos vinhos
Em 40 anos de enologia, foram muitos os produtores com quem colaborou: “Lembro-me de todos, a maioria dos quais ainda acompanho hoje e com quem mantenho excelentes relações de amizade”. Esta atividade, sublinha, “exige muita paciência, resiliência, é de gerações. Muita gente veio para este meio a pensar que era fácil, mas deu-se mal”.
À pergunta “é capaz de beber um vinho sem vestir o papel de técnico?”, António Ventura confessa ser-lhe “muito difícil beber um vinho sem ter sentido crítico, é um defeito que quase todos os enólogos têm, o de procurar os defeitos em vez de exaltar as virtudes”. Por isso, “quando me pedem um vinho, dedico-me a ele de corpo e alma; é evidente que uns dão mais prazer que outros: um vinho de 3.000 garrafas terá um determinado perfil e outro de 6 milhões de litros outro; uns dão mais prazer, outros mais trabalho, mas são igualmente preciosos”, resume.
Aqui, abrimos um parêntesis. Durante a visita à Vidigal Wines, António Ventura conduziu-nos a um recanto especial, onde vinifica os vinhos da marca Zavial. Nestes, exprime o seu gosto e visão pessoal, na elaboração de “vinhos com maior elegância, mais gastronómicos, acidez mais vincada, que dão mais prazer a beber”. Mas, quando trabalha para um produtor, deve fazer “o produtor pede – não somos enólogos, somos alfaiates e fazemos fatos por medida”, resume. “Já me pediram uma encomenda de 1 milhão de garrafas de vinho tinto com 30 gr. de açúcar para países de leste. Pessoalmente não o consigo beber, mas o importador considerou excelente”, exemplifica. Mas assume ter “meia dúzia de vinhos onde consegui atingir um nível qualitativo muito próximo do que desejava, em diversas regiões. É sempre o nosso desafio”.
O vinho começa na terra. Para António Ventura, “o conhecimento agronómico é importantíssimo e a primeira coisa que o enólogo tem que entender é a matéria-prima que tem em mãos”. Mas o técnico deve perceber “o que está por trás de tudo isso, a sanidade e estrutura das uvas, as maturações fenólica e de açúcar, pH e acidez e tudo o mais”. Por isso, “tem que estar preparador para ir ao laboratório fazer uma análise”.
Por essa razão, quando recebe um jovem enólogo para trabalhar junto de si, começa instruí-los no que designa como “as bases essenciais”. Desde logo, “o laboratório, que nos dá a ideia do que é a construção dos vinhos em termos de química. Depois, passam para a adega, para a prática essencial, lavar cubas, tirar curtimentas, fazer controlo de temperatura e densidades das fermentações”. E, logo ao fim do primeiro ano, “em função da resiliência que demonstram, porque a vindima não é fácil, conseguimos ver se temos enólogo”, resume. “Quando nos dizem: ‘Ontem saí à meia-noite, hoje vou sair outras vez às 22h00, isto não dá’, então é melhor arranjar uma profissão de escritório, porque esta profissão é muito absorvente”.
Por isso, o conselho que deixa aos jovens enólogos é simples: “Aconselho a ter muita resiliência e disponibilidade quase total, pois é uma profissão quase monástica. A nossa vida pessoal e familiar é muitas vezes afetada, porque temos que acompanhar um produtor numa apresentação, temos que ir a um jantar de vinhos ou a uma feira. Temos que nos articular com todos os agentes da fileira, temos que estar disponíveis para o que for preciso”, acrescenta. Incluindo percorrer cerca de 100.000 kms. por ano de automóvel. E diz-se preparado “para mais uma década e celebrar os 50 anos de carreira”. Até lá!