Quando entrou para a empresa da família em 1989, Ricardo Diogo Freitas, um dedicado professor de história, não tinha noção do que viria a acontecer. Apenas dois anos depois, a concretização da joint-venture com a família Kinoshita mudou não apenas o futuro da Barbeito. Mudaram também os caminhos e destinos de Ricardo Diogo e, por que não dizer, o do próprio Vinho Madeira.
A Barbeito vivia um momento complicado, em que as decisões precisavam de ser tomadas. Ricardo preparou a parceria com os japoneses mas não tinha certeza de que continuaria na empresa. Foi aí que entrou em cena Yasuhiro Kinoshita. Partiu do japonês o pedido para Ricardo não apenas ficasse na empresa mas que passasse a comandá-la. Começava ali o que se tornaria uma revolução nos vinhos da Madeira. Um dos primeiros atos de Ricardo foi acabar com a produção de vinho a granel. “Foi fácil tomar esta decisão. Sabíamos que iríamos precisar de alguns anos para recuperar a produção dos vinhos em canteiro. Mas sabíamos que era algo que precisava ser feito. A produção de vinhos a granel sacrificava a empresa e prejudicava a produção de vinhos de melhor qualidade. E essa foi a decisão chave”, lembra Ricardo.
Outras decisões e mudanças administrativas foram feitas ao longo dos primeiros anos. Era a chegada da modernização a Barbeito. “Não havia uma grande organização. Nos primeiros anos mudei algumas práticas que já não faziam sentido. Entre 1989 e 2001 fui aprendendo cada vez mais, experimentando mais. E esse processo correu em paralelo à reconstrução da nossa produção dos vinhos em canteiro”, afirma. “Fui mudando progressivamente as coisas, construindo uma equipa mais nova e dinâmica que nos permitiu todos os anos lançarmos coisas novas. Fizemos single casks, os lotes de 20 anos. Estávamos a renascer e a fazer coisas para pequenos nichos. E isso ajudou imenso. Claro que sofri muitas críticas. Mas quem não sofre críticas?”, conta Ricardo.
Mas não era o suficiente. Cheio de ideias, certezas e convicções, Ricardo tinha fome de mudanças. E sabia que o caminho a ser percorrido não seria livre de percalços. Mas nenhuma revolução se faz sem que paradigmas sejam quebrados. “Pode parecer injusto com a minha mãe, ou o meu avô, que muitos sacrifícios fizeram para aguentar a empresa. Mas eu não gostava nada dos vinhos que eles faziam. Eram muito doces, carregados na cor. E eu queria vinhos mais puros, com mais acidez, características que julgo essenciais para o Vinho Madeira”, lembra. “Então, em 2001, tomei a decisão de não mais adicionar caramelo para transformar a cor. Era uma tradição muito antiga, mas há tradições que podemos e devemos romper. As cores e aromas passaram a ser outras, os vinhos, mesmo os mais doces, ficaram mais secos e damos mais ênfase à acidez. E o Madeira é muito sobre acidez. Hoje em dia toda gente fala em acidez, mas naquela época nem se falava tanto nisso. Não foi simples”, garante Ricardo. Veja-se o Duas Pipas Bastardo agora apresentado. Estas vinhas foram plantadas em 2004, por Teófilo Cunha, em São Jorge. A primeira vindima de Ricardo Diogo foi em 2007. E a grande surpresa foi a rápida oxidação da Bastardo em canteiro. A partir daí, é tudo tentativa e erro - ou acerto.
O poder da teimosia
Mas a teimosia compensou e os vinhos foram dando que falar. “Ao frequentar feiras e provas, pude notar que, com esses vinhos mais secos, com mais acidez, mais elegantes e limpos na cor, ganhamos um público mais jovem. Quando comecei a mostrar esses vinhos ao consumidor mais clássico, mais velho, aquele senhor na faixa dos 60 anos, que estava acostumado ao vinho mais tradicional, não gostava nada daquilo. Podia ter desistido ali. Mas percebi que um público mais novo, diferente, ali pelos 30, 40 anos, gostava dos vinhos. Ganhei um público novo. E percebi também que o vinho dava-se bem na restauração. Por conta da acidez, de um vinho mais limpo, funcionava bem com comida. E isso foi fundamental para mim. Mercados como Estados Unidos, Japão ou países nórdicos começaram a pedir os nossos vinhos”, lembra.
Desistir não costuma fazer parte do léxico de Ricardo. !Às vezes dizem que sou teimoso. Em casa dizem-me sempre isso. Eu não sou teimoso. Ouço sempre o que me dizem. Mas no vinho talvez seja um pouquinho. Fui sempre em frente, seguindo as minhas ideias, indo pela minha cabeça. Diziam-me 'não faças isto, não faças aquilo', mas eu nunca ouvi nada disso, sempre fazia o que julgava o correto, fui persistente. Mas era uma teimosia positiva. Tanto que chegamos aqui. E ainda temos espaço, ideias e energia para fazer mais algumas coisas”, diverte-se Ricardo.
Hoje os vinhos da Barbeito gozam de enorme prestígio em todo o mundo. E a ascendência da casa coincide com a valorização do Vinho Madeira em todos os mercados. E é impossível dissociar uma coisa da outra. Goste-se ou não do estilo de Ricardo Diogo, o produtor desempenhou um papel crucial neste crescimento recente da região. Tanto que, para muitos, Ricardo chegou mesmo a promover uma revolução no Vinho Madeira. Hoje é cada vez maior o número de rótulos que primam pela elegância, pela acidez pungente e pela limpeza. Exatamente o ideal de vinhos que Ricardo tinha em mente há 30 anos, quando começou.
Mas, mesmo assim, apesar de reconhecido em todo o mundo como visionário capaz de modernizar uma região tão cheia de história e glória como a Madeira, Ricardo ainda carece de um reconhecimento maior justamente no quintal de casa. “Cheguei a tantas partes do mundo que até me surpreendo. Eu era um simples professor de história, não entendia nada daquilo. Mas empenhei-me em aprender, em melhorar, nunca tive medo de experimentar, de mostrar, de dar as caras. E até hoje emociono-me com o carinho com o qual sou tratado em todas o mundo. Talvez o lugar onde meu trabalho seja menos valorizado seja aqui na Ilha da Madeira. Mesmo em Portugal continental eu vejo um reconhecimento que na minha terra talvez não tenha tanto. Mas não me importo. Não faço as coisas em busca de reconhecimento. Quero apenas ter a tranquilidade para continuar a fazer coisas novas, com qualidade, e seguir em frente”, desabafa.
Ricardo Diogo anda a preparar homenagens a personagens que moldaram o seu carácter e personalidade ao longo dos anos. Aqui, o laureado é Yasuhiro Kinoshita, o homem que decidiu levar a Barbeito ao Japão. E, por outras vias, acabou por mudar a vida de Ricardo. Mais uma vez, a emoção deu voz a um vinho espetacular, superlativo, inesquecível. E seguir em frente, a fazer vinhos notáveis, carregados de alma, emoção e vibração é tudo o que se espera de Ricardo Diogo Freitas. Um ex-professor tornado revolucionário e que, de tanto gostar do assunto, acabou ele mesmo a fazer história.
TEXTO Alexandre Lalas, José João Santos, Nuno Guedes Vaz Pires