Carlos Dias: O epicurista do detalhe

Fotografia: Ricardo Garrido
José João Santos

José João Santos

Na primavera de 2009, quando concretiza a aquisição das Colinas de S. Lourenço, na Bairrada, Carlos Dias poderia ser já proprietário do Château Pedesclaux, em Pauillac, um 1855 de Bordéus. “Não me cheguei a enamorar”, admite, pelo que o telefonema do irmão Custódio a dar conta da oportunidade de aquisição de uma quinta na Bairrada teve tanto de inesperado como de oportuno.


Rapidamente percebeu, no entanto, que para fazer vinhos com a precisão com que fez fortuna e conquistou reputação nos relógios precisava de outros “terroirs”. Começou pelo Alentejo, região que particularmente aprecia, e visitou dezenas de herdades. Pascal Chatonnet, o enólogo consultor que o acompanha desde a primeira hora, aconselhou-o a desistir e a procurar novas terras, no Dão e no Minho, tendo por pressuposto o perfil de vinhos traçado por Carlos Dias. E assim surgiu o Paço da Palmeira, em Braga, a Quinta da Pedra e a Quinta dos Milagres (2010), em Monção, e a Quinta de Bella, 70 hectares no Dão. Pelo meio desistiria da possibilidade de adquirir propriedades no Douro e reforçou a presença na Bairrada, ao comprar a Quinta da Malandrona e a Quinta da Curia.

Na Quinta da Pedra construiu uma adega imponente a partir da que existia. Aproveitou ainda uma pequena parte da destilaria que lá estava para a reformular por completo e pensou uma linha de destilados super premium – que em breve conhecerá a luz do dia, (“talvez no próximo ano”) – com a consultoria do italiano Gianni Capovilla, grande referência na área. No total são 28 destilados, incluindo vínicos, bagaceiras e de fruta, alguns com muito tempo de envelhecimento. “Não conheço no mundo algo com essa aproximação”, garante-nos Carlos Dias.

Estamos em Braga, no Paço da Palmeira, para realizarmos esta reportagem. É uma das poucas que Carlos Dias aceita volvidos estes anos de aposta em Portugal. “Com os meus investimentos não vim para Portugal à procura de visibilidade ou notoriedade. Como investidor, tenho sido das pessoas mais discretas no país”, faz notar. 

Carlos Dias tem uma história de vida que mais parece uma epopeia. Nascido e com juventude passada em Portugal, há 46 anos vive fora. Emigrou para França e trabalhou na área da restauração. Foi ajudante de cozinha, acabou responsável de compras de cadeias hoteleiras. É nessa altura que toma contacto com os grandes vinhos do mundo. “Comecei por ser muito Bordéus, depois muito Borgonha”, recorda.

Em 1995, já na Suíça, funda a Manufacture Roger Dubuis. Um investimento de 600 mil euros, num projeto pensado para entrar no exclusivo segmento de luxo e que se iniciou com dois colaboradores. O sócio e amigo Roger Dubuis era o mestre relojoeiro. A qualidade dos relógios e todo o trabalho de interpretação do negócio atingiram tamanho sucesso que a marca haveria de entrar para o restrito lote das mais ambicionadas da relojoaria mundial. A avaliação como uma das 300 maiores fortunas da Suíça pela “Bilan”, revista especializada em economia, apenas reforçou o sucesso. Anos mais tarde, em 2008, Carlos Dias vende a empresa ao grupo de luxo Richemond, um negócio estimado em… 850 milhões de euros. “Não sou o homem dos relógios, não sou nem quero ser refém de um métier”, garante-nos. E a verdade é que possui diversos investimentos, espalhados por mais de 60 áreas de negócio e muitos países.

Radicou-se no Mónaco, esse pequeno grande lugar de excentricidades. Quando em 2009 cria a Ideal Drinks passa a viajar com mais frequência a Portugal, onde também tem outros investimentos, por exemplo no setor da saúde. “Se alguém me pedisse um conselho acerca de investir em Portugal, a minha resposta era capaz de ser negativa e talvez dissesse: ´Só se o senhor for maluco´. Mas, então essa pessoa poderia virar-se para mim e dizer: ´Então, o Carlos Dias é maluco´. Eu responderia: ´Não, sou português´”. Carlos Dias pode ser assim mesmo, desconcertante.

“Proudly produced in Portugal”


É fácil percebermos que poderia ter investido em vinho em qualquer parte do mundo, mas é o primeiro a reconhecer: “Inicialmente, o meu investimento no vinho é mais emocional que racional”. Porquê? “Amo profundamente o meu país”.
Optou, todavia, por fazer diferente. Quis desde logo ganhar dimensão e fugir do mais óbvio. Por exemplo, no Paço da Palmeira – propriedade murada de 52 hectares, que inclui um palacete de 1745 – já investiu muito na recuperação dos 28 hectares de vinha exclusivamente de Loureiro, casta que tem conseguido colocar num patamar de excelência, mostrando aos mais atentos o grande potencial desta variedade na região dos Vinhos Verdes.

Entre vinhos brancos e tintos, tem optado por fazer coabitar no mercado colheitas recentes e outras mais antigas, uma tentativa de alertar profissionais do vinho e consumidores para o grande potencial de envelhecimento de diferentes vinhos. Recordemos, a propósito, o Principal Grande Reserva 2011, um branco bairradino que este ano foi o mais bem classificado entre os vinhos brancos em prova no “TOP 10 Vinhos Portugueses”, realizado durante o evento Essência do Vinho – Porto, com participação de um júri internacional.

A Ideal Drinks colabora com 32 distribuidores em Portugal para posicionar os vinhos em restaurantes seleccionados e garrafeiras. Nos mercados externos, uma estratégia semelhante. Também aí, restauração de primeira linha 
“A Ideal Drinks agora é que vai nascer”, garante-nos Carlos Dias. E logo explica: “Houve uma dificuldade em aceitar o projeto da Ideal Drinks em Portugal. As pessoas viram da minha parte talvez um investimento agressivo. Isso, a determinado momento, criou-me algum desconforto. E abrandei.”

Para isso, tem procurado colocar a Ideal Drinks dentro da esfera familiar. Dois irmãos trabalham no grupo e o sobrinho e afilhado José Dias está a inteirar-se da gestão. A filha, na Suíça com os quatros netos de Carlos Dias, acompanha a evolução do projeto. Se existe exigência com a viticultura e a enologia, o cuidado com o packaging é notório. Algumas das garrafas dos vinhos de Carlos Dias não passam despercebidas e em todas há uma mensagem comum nos contrarrótulos: “Proudly produced in Portugal” (orgulhosamente produzido em Portugal). “O made in Portugal não é valorizado devidamente”, afirma. “Portugal sofre de um handicap grande na criação de marcas”, acrescenta.

Carlos Dias registou a marca. Mas não a quer só para ele. Explica que ficaria realizado se desse origem a um movimento concertado de produtores e empresas nacionais, de diferentes ramos de negócio, que percorresse o mundo a promover produtos portugueses, posicionando-os em qualidade e preço. “No mundo dos vinhos, Portugal só pode sair por cima se fizer qualidade”. E faz um paralelismo com outra realidade que conhece bem, a dos relógios: “A Suíça só produz 2% dos relógios do mundo, mas alcança 82% do turnover mundial da relojoaria”.

“Prefiro ter inteligência a ter dinheiro”

Ao conversarmos com Carlos Dias é difícil cingirmo-nos à esfera do vinho. O próprio faz questão de abordar vários outros temas, da economia à política, da realidade do presente aos ensinamentos do passado. Analisa que os dias de hoje são vorazes em termos de velocidade e acredita que o futuro próximo correrá ainda mais depressa. 

Chega a ser quase corrosivo nalgumas análises, mas a experiência de negócios e de mundos obriga-nos a refletir sobre o que diz. “O mundo nunca viveu tão bem, nunca teve tanto progresso, mas hoje somos globalmente assombrados por uma dose de mediocridade excessiva. E Portugal não foge à regra”, analisa. Garante estar cada vez mais indiferente ao diz que disse, que aqui e ali ainda se vai ouvindo nos bastidores do vinho. “Vim cá contribuir, modestamente, para a valorização do made in Portugal, para criar valor acrescentado”. Sem sombras, reconhece que o interesse por vinho começou nos tempos de emigrante na França. “A minha paixão pelo vinho não nasce quando era rico, nasce por uma coincidência de trabalho”.

Detalhista em tudo, admite que é exigente e procura que todos os que com ele trabalham continuem a manter patamares igualmente elevados de exigência. Quando concretiza algo, desde logo começa a pensar no que poderá fazer de distinto, no que poderá fazer ainda melhor.

Identifica quatro castas portuguesas que poderiam ser porta-estandartes dos vinhos nacionais pelo mundo – Alvarinho, Encruzado, Loureiro e Touriga Nacional. Encara a produção de vinho como uma paixão mas posiciona-a num patamar de primeira grandeza – “cada vez será mais um luxo beber um vinho de qualidade”. Confessa que já recebeu centenas de propostas para adquirir mais propriedades em Portugal, que tem recusado por não ter intenção de crescer em volume. E os vinhos, diz, “são um desafio pessoal”.

Fez fortuna no luxo, admite que gosta de luxos. Confessa-se um epicurista, que aprecia os prazeres da vida. Trabalha e pensa em trabalho compulsivamente e tem na arte um outro investimento difícil de explicar. “Compro arte espontaneamente, por impulso. Não sou um colecionador metódico”. E quando se fala em dinheiro e em fortunas, a ponte com o vinho é inevitável: “Para se fazer uma pequena fortuna no vinho em Portugal, o meu conselho é começar-se com uma grande fortuna”. Como criar algo que desperte vontade de aquisição, questionamos. “Há quatro ingredientes principais na criação de um produto: qualidade, singularidade visibilidade, notoriedade”.

Carlos Dias é um protagonista português com muitos mundos vividos, que hoje detalha a realidade portuguesa com a precisão de um relógio suíço. “Prefiro ter inteligência a ter dinheiro”, conclui.