Miguel Almeida é enólogo de formação e de profissão mas não sabe explicar porquê. Não nasceu numa família de produtores de vinho, ninguém que lhe era próximo na infância está ligado ao setor e mesmo assim, Miguel, 40 anos, a viver no Brasil há década e meia, é um orgulhoso enólogo. A única explicação que lhe ocorre é o local de nascimento – Viseu, coração do Dão – e o sítio onde viveu a partir dos três anos até a maioridade – Lamego, coração do Douro. De lá fez-se ao caminho até Lisboa, onde no Instituto Superior de Agronomia (ISA) da Universidade de Lisboa se formou em Engenharia Agroindustrial, com especialização em Enologia.
A partir daí, qual monge que se dedica à vida monástica, Miguel tornou-se um abnegado pelo vinho. “Neste momento, por exemplo, estou em plena vindima aqui no Vale do São Francisco, no nordeste brasileiro. Durante dois meses farei uma vindima enorme, com 300 mil kg de uvas. Durante estes dois meses ignoro a minha existência. Viro um elemento do vinho, como uma levedura ou uma bomba de remontagem”, assegura Almeida. Essa dedicação nasceu logo depois do final do curso. Em 2002 fez a primeira vindima, no Castelinho, na Régua, e entretanto já conta 23. Por terras do Brasil, a contagem corre em passo apressado, com duas vindimas por ano.
2004: um ano decisivo
Dois anos depois dessa vindima, Miguel Almeida saiu de Portugal. Foi bolseiro do programa Leonardo da Vinci e fez uma vindima no Brasil. Uns meses depois aterrou na Alemanha, onde terminou o ano a fazer outra vindima. Duas experiências internacionais no mesmo ano. Da primeira ficou a curiosidade de descobrir mais. “Não sabia nada sobre o Brasil. Sabia que produziam umas frutas tropicais deliciosas e pouco mais. Sobre uvas, nada”, recorda Miguel. Apesar desse desconhecimento, a curiosidade foi crescendo e o enólogo rapidamente aprendeu sobre o Brasil produtor de vinho. Entrou na Miolo Wine Group, um gigante da produção vitícola, e com apenas 28 anos assumiu a Quinta do Seival – um gigante dentro de outro gigante. O Seival tem 200 ha de vinhas que representam um terço do grupo. “São vinhas fantásticas. Tenho um carinho muito grande por aqueles hectares, sobretudo porque tem lá castas portuguesas plantadas: Touriga Nacional, Tinta Roriz (no Brasil conhecido comercialmente por Tempranillo) e Alvarinho. É a vinha brasileira com a maior área de Touriga Nacional”, conta com orgulho.
“Não sou enólogo de camisa branca”
O enólogo, a vindimar por alturas desta entrevista, transpira orgulho no trabalho que faz apesar de confessar que está numa zona de desconforto. “Estou num país sem tradição vitícola. Aqui tudo é novo. A folha está em branco. Mas adoro estar aqui. Tenho disponibilidade total, faço aquilo que gosto e no final do dia estou cansado. Durmo muito bem e no dia a seguir acordo com as mãos doridas. Porque o meu vinho é feito por mim. Não sou um enólogo de camisa branca. As minhas mãos na vindima não são uma coisa bonita de se ver”, assegura Miguel (e nós confirmámos).
Brasileiro não bebe vinho
A “folha em branco” de que Miguel Almeida fala é não só na vinha como também no copo, isto é, nos hábitos de consumo internos. Apesar de se estar a assistir a um ligeiro processo de mudança, os brasileiros são consumidores muito regrados de vinho. Se em Portugal, por exemplo, cada português bebe em média 51 litros de vinho por ano (dados da OIV – Organização Internacional da Vinha e do Vinhos), os brasileiros apenas 1,7 lts. “Temos de trabalhar em soluções domésticas para conseguirmos alcançar a confiança dos consumidores brasileiros, sobretudo no vinho que é produzido no próprio país”, comenta Miguel. Não será pela qualidade dos vinhos que o consumo não aumenta. O enólogo tem uma confiança grande nas referências da Miolo, assim como nas de outros grupos da concorrência. “O nosso Touriga Nacional da Quinta do Seival é muito bom. Não tenho medo de o colocar às cegas com Tourigas feitos em Portugal. Talvez não fique na frente dos bichões mas não vai fazer feio, não”, assegura, num registo linguístico de um português abrasileirado, com tanto de confiança como de desafio.
Vindima e poda de inverno no mesmo dia
A diversidade brasileira que tem segurado Miguel Almeida no Brasil é tão grande que o melhor exemplo para ilustrar a realidade é este: “A nossa vinha no Vale do São Francisco, no nordeste brasileiro, é tão diversa que temos em simultâneo a poda de inverno e a vindima. É de loucos! Duas operações separadas por seis meses em Portugal e aqui fazemo-las no mesmo dia!”, conta o enólogo, ele próprio ainda surpreendido com esta realidade.
O potencial de um país vitícola ainda por desenhar parece ser tremendo. “Em Portugal, quem vai de Lamego a Anadia atravessa três regiões demarcadas. E não faz mais de 150 km. Imaginam-se quantos terroirs, quantas regiões vitícolas poderão existir no Brasil?”, questiona Almeida.
Cartas a um jovem enólogo e um eventual regresso
Numa altura em que pela primeira vez a Universidade de Évora anunciou uma licenciatura em Enologia, juntando-se assim à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, surge o pretexto para perguntar a Miguel Almeida que conselhos daria a um jovem enólogo. “Seriam os mesmos que dou às minhas equipas. Pôr tudo o que somos no mínimo que fazemos, com entrega, humildade e atenção. E com isso garante-se o espaço que sempre haverá para pessoas competentes, abnegadas e que gostam de correr riscos”, aconselha Miguel, que após ter arriscado uma vida no Brasil imagina-se um dia a regressar a Portugal.
TEXTO Luís Alves