A nova casa da Fita Preta, em Évora, está longe de parecer um típico edifício alentejano. Fotografada por entre vinhas, com o edificado em fundo, lembraria facilmente uma propriedade algures em Itália ou até num país do centro europeu. Não, nunca no Alentejo.
Inquieto por natureza, a curiosidade pela agora casa e adega foi crescendo em António Maçanita à medida que acumulava quilómetros na auto-estrada A6. “Queria um local que representasse o que queremos fazer”, diz-nos. Encontrou os proprietários e, depois de persuasivas negociações, assinou a aquisição. “Foi em 22 de dezembro de 2016”, relembra a data. “Agora é a nossa casa”.
Os anteriores proprietários do Paço do Morgado da Oliveira mantêm 13% da herdade e o acordo para ali realizarem eventos familiares. Mas este bonito edifício, que ora lembra um palacete ora um mosteiro, com imperfeições bem visíveis e traços temporais que denotam diferentes intervenções desde a origem (século XIII), é hoje a casa de António, da mulher Alexandra e das filhas.
Por possuir dimensões muito generosas e vários espaços interiores, as obras de requalificação irão permitir o usufruto enoturístico, incluindo o alojamento. Passo a passo, sem pressas, com o cuidado de preservar o carisma que se nota quando percorremos o palacete, onde ainda há lugar para uma capela e para salas onde estagiam vinhos (inox e barricas).
Do lado sul do pátio murado, um novo edifício com desenho de Tiago Sobral tem exterior forrado a cortiça e, no interior, a produção, o armazenamento e ainda uma loja de vinhos. É o lado menos encantatório do vinho, é certo, embora arquitetonicamente contextualizado no quadro geral e, em termos funcionais, inspirado nos exemplos californianos e franceses.
De algum modo, eis que entramos na fase da maturidade da Fita Preta. Não significa isso, porém, que haja a tentação do conforto. Aliás, nunca como nestes anos o projeto conheceu tanto experimentalismo. António Maçanita persegue a tentativa de encontrar uma resposta à questão “O que é o Alentejo?”.
Percebe hoje que o Alentejo é muito mais complexo e diversificado do que aquele que encontrou na primeira década dos anos 2000. Chegado de experiências vividas na Califórnia, Austrália e Bordéus, António Maçanita chega à região aos 23 anos com o objetivo de fazer um vinho próprio, que agradasse de imediato ao consumidor e lhe permitisse, lá mais diante, pensar noutros voos. Conheceu David Booth, britânico especializado em viticultura que trabalhava como consultor em vários produtores alentejanos, de quem se tornou amigo e sócio e com quem aprendeu muito do que sabe. Surgiram os Sexy, nome feliz e de impacto imediato em termos de marketing, entretanto afirmados como uma espécie de classe à parte, tal é a força que a marca alcançou, dentro e fora do país. Os Preta estão num polo oposto, uma tentativa de alcançar o crème de la crème.
Neste último, percebe-se a evolução de pensamento. O Preta 2004, que conquistou o “Trophy Alentejo” no conceituado Internacional Wine Challenge, em Londres, começou por ser um lote 50/50 de Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon, configuração que se foi alterando à medida do crescendo de conhecimento, não tendo na mais recente edição (2017) nenhuma dessas variedades mas antes castas como Alicante Bouschet, Aragonez e Baga.
O encontrar de desafios permanentes
Maçanita encontra uma linha de fronteira temporal que ajuda a explicar a realidade atual da Fita Preta. Diz ter sido a partir de 2010 que se inicia a fase mais exploradora, mais experimentalista.
Percebemos o misto de inquietude e experimentação nas gamas Signature Series e Chão dos Eremitas, onde coexistem monocastas de variedades como o Alicante Branco, Alfrocheiro, Baga, Castelão, Touriga Nacional, Tinta Carvalha ou Trincadeira das Pratas (Tamarez), a par de vinificações menos usuais, como que o estabelecimento de um diálogo permanente entre o que foi o passado e o que poderá ser o futuro.
“Trazer Baga para o Alentejo foi um modernismo”, expõe António Maçanita. “Acho que o futuro dos vinhos passa muito pelas castas e locais de plantação do antigamente, solos muito mais profundos, onde exista água, os locais tradicionais de vinha, onde não é necessária rega – não sou contra a rega mas a vinha não deve precisar de rega para existir”, justifica.
O Morgado da Oliveira tem uma área total na ordem dos 100 hectares, 30 dos quais têm vinha. Em breve haverá novas plantações. No total, a Fita Preta elabora vinhos a partir de 70 hectares de videiras, entre vinhedos próprios e arrendados. Vinha da Nora, vinha Vale do Cepo e Chão dos Eremitas, no sopé da Serra d´Ossa, são terroirs de predileção. Esta espécie de xadrez permite jogar com solos de diferentes formações – graníticos, sobretudo, mas também xistosos, calcários e argilo-calcários.
O atentar no chão alentejano fica, aliás, bem evidente quando entramos no local de produção dos Fita Preta, onde está exposta a carta geológica de Arraiolos, que destaca as diferentes formações de solo. A vindima é decidida por pequenos blocos, apostando-se na zonagem. Nos tintos tentam evitar a sobrematuração e a opção tem sido a não inoculação. Tem-se ainda assistido a um aumento das propostas que não passam por barricas. “Os unoaked são uma interpretação redutiva nos tintos. Os vinhos cheios de fruta primária vão acabar por morrer”, advoga Maçanita.
Nos brancos, a opção tem sido eliminar o sulfuroso da fermentação para alcançar mais textura, ou seja, arriscar que haja mais microorganismo a trabalhar o mosto para, assim, obter um maior volume de boca – “Uma textura como nunca tive”, observa. Outro caminho tem sido a redução da bentonite, a argila que auxilia na clarificação dos vinhos. “Não usar ou usar pouco é criar uma nova geração de vinhos brancos, que cheiram a nós, ao local, a uma outra coisa, a um outro caminho”, defende Maçanita. No desfiar da conversa, abrimos aqui um outro ângulo de análise, tomando como exemplo o diferente comportamento de castas.
“Apesar de o Arinto funcionar muito bem, sinto que precisa das castas alentejanas, que cheiram a um sítio, que são oxidativas. Então, têm que ser pré-oxidadas. Por isso, eliminar o sulfuroso da receção nos brancos foi um passo grande, tornando os vinhos com menos fruta mas mais estáveis, como nos casos do Roupeiro, das Malvasias ou do Antão Vaz”, diz-nos.
Este tempo novo na Fita Preta, asseguram-nos, não pretende reescrever a história mas é evidente que está muito focado em redescobri-la para, a partir dela, tentar ir mais além. “Está por escrever o que é um tinto e um branco do Alentejo”, defende António Maçanita.
Neste visita ao “Produtor do Ano 2020”, a Revista de Vinhos provou dezenas de vinhos, por entre provas verticais e novos lançamentos. Partilhamos a seguir os apontamentos de alguns desses vinhos, que expõem um entendimento muito próprio de terroirs e de castas, dos muitos Alentejos que o Alentejo tem.
TEXTO: José João Santos e Nuno Guedes Vaz Pires