Entrevista a Capoulas Santos, Ministro da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural.
Luís Capoulas Santos nasceu em Montemor-o-Novo, em 1951. Estudou na área de Sociologia, tendo completado a licenciatura na Escola Superior de Estudos Sociais e Económicos de Évora. Entre 1977 e 1991 desempenhou funções técnicas e dirigentes no Ministério da Agricultura. Em 1995 foi chamado a exercer funções de Secretário de Estado da Agricultura até 1998, ano em que assumiu a pasta como ministro até 2002. Em 2004 foi eleito para o Parlamento Europeu, onde foi relator das Reformas da Política Agrícola Comum (PAC) de 2008 e 2013.
RV: Como surge a sua longa e profunda ligação ao mundo da agricultura sendo um homem com formação em Sociologia?
CS: Em primeiro lugar, eu descendo de uma família de agricultores e sempre vivi numa região agrícola. E o que me levou a estudar sociologia foi precisamente a questão social do Alentejo, que eu vivi durante toda a minha vida, e sobretudo no que diz respeito às injustiças sociais, fruto de uma estratificação social profundamente desigual. Os meus companheiros de escola, ou parte deles, nunca tinham conhecido um par de sapatos! Assisti ainda à fase final da quase existência de um mercado de escravos no Alentejo, em que os patrões escolhiam os trabalhadores em função do seu aspeto e compleição física. Era uma sociedade profundamente injusta e desigual. Naturalmente, o meu enfoque estava voltado para sociologia rural.
Quando acabei o meu curso em pleno PREC [Processo Revolucionário em Curso], no verão de 1975, consegui entrar para o Ministério da Agricultura. Cheguei a ser o diretor do centro da reforma agrária e vivi por dentro toda a conflitualidade social dos anos da revolução e da pós-revolução. E no ministério sempre desempenhei funções ligadas aos aspetos sociais da agricultura, até enveredar pela política em 1991. Quando fui eleito deputado, fui obviamente para a comissão da agricultura. Mais tarde tornei-me porta-voz do PS para questões agrícolas. Com a vitória do PS em 1995, o engenheiro Guterres convidou-me para secretário de Estado, onde estive durante três anos. Depois houve uma remodelação na sequência da crise das “vacas loucas” e ocupei o lugar do ministro Gomes da Silva. E quando o PS saiu do governo voltei a ser deputado em 2002, onde voltei a ser o porta-voz do PS para a agricultura, até que em 2004 fui eleito deputado europeu e fui para a Comissão de Agricultura do PE e tive o privilégio de ter sido o relator das duas últimas reformas da PAC [Política Agrícola Comum]. Para além disso, vivo no campo. Acordo com os chocalhos. A agricultura faz parte de mim próprio e da minha vida.
RV: O setor dos vinhos é um setor com importância crescente no universo agrícola português, um setor que se modernizou imenso, desde logo ao nível da vinha graças ao programa Vitis…
CS: Sim, o programa Vitis de que sou criador e, digamos assim, o padrinho. A própria designação é da minha responsabilidade. Tenho muito orgulho – e não tenho qualquer dúvida sobre isso – por ser o programa comunitário de maior sucesso em todas as áreas, um programa que tem procedimentos muito mais simplificados que a generalidade das outras medidas do Quadro Comunitário de Apoio. Nestes últimos 17 anos, injetámos na reestruturação da vinha 670 milhões de euros e conseguimos reestruturar sensivelmente um terço da vinha nacional. E é por isso que queremos prolongar o Vitis. Já temos garantia da sua continuidade até 2023, mas está previsto – no contexto de negociação da nova PAC – que ele prossiga até 2027. Portanto, os viticultores portugueses poderão contar no futuro com este importante instrumento para a melhoria e reestruturação das nossas vinhas.
RV: Para além da ferramenta do Vitis por mais uma década, com que outras ferramentas podemos contar no setor do vinho português – e em que que contexto estratégico?
CS: Vamos ver o que vai decorrer desta negociação. Como sabe, existiam aqueles que queriam controlar o crescimento do setor para evitar um aumento exponencial da produção e um aviltamento dos preços. E havia outros que queriam a sua total liberalização. Eu, na altura, coloquei-me numa posição intermédia, porque penso que o bom senso está normalmente na bissetriz entre duas posições radicais. Assim, acabámos com o fim dos direitos de plantação, mas não liberalizámos a plantação de vinha. Portanto, cada Estado-membro ficou autorizado, voluntariamente – e assim será até 2021 – a aumentar anualmente até 1 por cento da sua área de vinha. O que quer dizer que, para Portugal, isso dá pouco menos de 2000 hectares por ano, ainda que a apetência seja muitíssimo maior. Este ano pusemos a concurso esse 1 por cento, cerca de 1900 hectares, e apareceram 35 mil hectares de candidaturas! O que quer dizer que se a cultura da vinha estivesse liberalizada, teríamos no ano passado mais 35 mil hectares de vinha plantada, o que acho que seria perigosíssimo para o rendimento dos agricultores. Uma oferta com esta dimensão iria provocar uma enorme pressão em baixa dos preços e, muito provavelmente, obrigaria muitos dos atuais produtores a terem de abandonar a atividade por inviabilidade económica.
“É notável o que o sector fez em Portugal”
RV: Mesmo assim, e apesar das melhorias significativas dos últimos anos, o setor do vinho não é um “El Dorado” como muita gente pode pensar no conforto urbano de Lisboa ou Porto…
CS: É por isso que temos de criar as melhores condições para a reestruturação do setor e para a modernização da agroindústria – e o apoio à modernização das adegas tem sido fundamental. Também temos medidas prioritárias para a fusão, particularmente no setor cooperativo, de modo a que haja dimensão que garanta competitividade. Este é um setor, como todos os outros na agricultura, que funcionam no mercado global, muito competitivo, sobretudo quando temos de competir com regiões onde a quantidade prevalece e em que as produções estão totalmente liberalizadas, como é o caso do Novo Mundo. Isso leva a que a nossa estratégia seja a estratégia da diferenciação, quer pela qualidade quer pela especificidade. Desse ponto de vista temos a sorte, contrariamente ao que aconteceu noutros países – por exemplo do antigo bloco soviético, Roménia ou Bulgária – onde praticamente todas as castas autóctones desapareceram, países que passaram a utilizar as castas francesas numa produção que não é diferenciada. Ora nós conseguimos manter as nossas castas. E é pela diferenciação e pela valorização do produto que Portugal pode ser competitivo no mercado global.
RV: Em Portugal, o preço médio do vinho ainda é muito baixo, o que tem reflexos negativos em toda a fileira. Esse é um problema central deste setor? O que é que o Governo tem feito nesta matéria?
CS: No sistema económico em que vivemos, quem fixa o preço é o mercado. E o mercado fixa o preço em função da procura dos consumidores. E os consumidores procuram tanto mais o produto quanto ele vai de encontro aos seus interesses, ao seu gosto, e é esse trabalho fantástico que os enólogos portugueses têm feito, aproveitando as nossas castas e o seu “mix” com algumas castas que não são nacionais, por vezes também de forma valorizar o preço. Não estamos num sistema fechado ou corporativista que possa tabelar os preços. O percurso dos nossos vinhos demonstra que os agricultores e os enólogos têm feito muito bem esse trabalho. Repare: passámos de uma situação em que fora de Portugal os vinhos eram considerados de segunda e terceira qualidade, exportados a granel, frequentemente adulterados no destino, e a imagem do vinho português era associada a baixa qualidade. Inverter essa imagem num tão curto espaço de tempo só foi possível pelo esforço que foi feito ao nível dos produtores e pelo extraordinário esforço que está a ser feito também pelo Governo, estimulando a criação da Viniportugal e de todas as entidades que concorrem para a valorização e promoção dos produtos interna e externamente. Os vinhos portugueses hoje já são associados a produtos de qualidade. Mas em termos da sua valorização de mercado ainda estão muito longe de chegar ao patamar dos vinhos franceses, por exemplo. Por isso não temos alternativa: sucesso é continuarmos a trilhar o rumo que temos vindo traçando.
RV: Apesar do crescimento muito positivo nas exportações de vinhos portugueses – sobretudo se comparado com o de outros subsetores agrícolas – há regiões europeias como Cava, na vizinha Espanha, por exemplo, com valores impressionantes de exportação que ultrapassam os 4 mil milhões de euros! Perante estes números avassaladores voltamos a ficar pequeninos…
CS: É verdade. Mas perdemos muitos anos. Quando entrámos na União Europeia, Portugal era o país com a agricultura mais atrasada de todos os países membros. E o esforço que foi feito em três décadas é um esforço notável. Não há alternativa: temos de investir na tecnologia, no conhecimento, na organização, na agroindústria, na promoção. É isso que temos estado a fazer. E temos estado a fazer com sucesso. Em tão curto espaço de tempo é notável o que o sector fez em Portugal. Isso deve-se fundamentalmente aos nossos produtores, que veem cada vez mais premiado o seu esforço com o reconhecimento internacional dos seus vinhos.
RV: Voltando um pouco atrás, o que que quis dizer quando fala em “medidas prioritárias para a fusão no setor cooperativo”?
CS: Hoje em dia, numa atividade tão competitiva e que opera no mercado global, a eficiência, a redução de custos e a profissionalização são fatores essenciais para garantir preços competitivos que sejam ao mesmo tempo remuneradores dos produtores. Sabemos que a pequena escala e a falta de gestão profissional de muitas das pequenas adegas tornam a sua viabilidade económica extremamente difícil. A forma de ganhar escala é através da fusão, ultrapassando muitas vezes bairrismos ancestrais. A opção é a falência ou o salto qualitativo por esta via. E é nesse sentido que, nos apoios ao investimento, privilegiamos as fusões. Se surgirem duas ou três – ou até mais – adegas cooperativas que queiram criar uma unidade de maior valor acrescentado, de mais tecnologia, com mais profissionalismo, nós damos prioridade a esse investimento em detrimento do investimento individual numa unidade semelhante.
A exceção duriense
RV: Se o modelo de certificação, proteção e promoção dos vinhos portugueses assenta nas Denominações de Origem – tendo o ministério sustentado esse modelo nos Institutos e nas Comissões Vitivinícolas Regionais – e se atendermos a que quase 60% do valor total de vinhos com DO e IGP resulta das vendas de Vinho do Porto, haverá espaço para pensar uma reforma institucional?
CS: Permita-me a imodéstia: acho que o setor funciona bem. Eu fui responsável, há mais de 15 anos, pela retirada do Estado das CVR [Comissões Vitivinícolas Regionais]. Foi uma opção bem-sucedida porque responsabilizou mais o setor, pois colocou na mão dos produtores a liderança das CVR, conferindo mais legitimidade e mais representatividade ao importante papel que as CVR desempenham. À exceção do Douro. Aqui, por força das circunstâncias, teremos que muito rapidamente encontrar a entidade que receberá o património excedentário da antiga Casa do Douro depois de saldadas todas as suas dívidas.
Em muito pouco tempo foi possível tirar a Casa do Douro de uma situação de total abandono, com salários em atraso e fornecedores com dívidas por pagar. Conseguimos regularizar todas essas situações e garantir penhoras a favor do Estado na ordem de muitas dezenas de milhões de euros. Sei que vai haver um remanescente positivo. E o que a legislação diz é que, uma vez findo este processo, até fevereiro do próximo ano, esse remanescente deverá ser entregue a uma entidade a designar. Ora, eu gostaria que essa entidade fosse criada com o consenso do sector e fosse verdadeiramente representativa. E que os recursos financeiros que vai receber, que eram pertença dos viticultores, possam ser revertidos em benefício da região, na formação dos viticultores e na promoção dos vinhos do Douro.
RV: Mas este processo poderá ter reflexos na própria estrutura do IVDP [Instituto dos Vinhos do Douro e Porto]?
CS: Vamos ver, vamos ver. Não queremos lançar nenhuma perturbação numa região que está pacificada, que está a trabalhar bem, mas queremos encontrar uma solução para este problema que é a entrega de um conjunto de recursos financeiros que não são despiciendos em benefício daqueles que foram quem os criou – e que, por isso, devem ser atribuídos e rentabilizados por uma entidade representativa dos viticultores do Douro.