São vinhos que estão “colados à pele” de alguns dos mais importantes enólogos portugueses, vinhos com assinatura e ADN muito peculiar, vinhos que marcam pela diferença e singularidade mas que não deixem de ser um cartão de identidade das regiões e “terroirs” de onde são originários.
A dezena e meia de vinhos de assinatura que reunimos nesta prova tão especial – e de algum modo inédita – são o rosto e a alma de 15 enólogos tão referenciados como Anselmo Mendes, António Maçanita, Carlos Lucas, Diogo Campilho, Filipa Pato, Hélder Cunha, João Mendes, Jorge Moreira, Jorge Serôdio Borges, Luís Cerdeira, Luís Duarte, Luís Patrão, Paulo Laureano, Rui Reguinga e Sandra Tavares da Silva.
Uma verdadeira seleção nacional de enólogos com vinhos de Norte a Sul do país, e também dos Açores, embora muitos outros nomes ilustres da enologia portuguesa pudessem integrar, naturalmente, esta prova “sui generis” que exprime bem – em patamares inquestionáveis de grande nível – “o estado da arte” do vinho em Portugal.
Foi, por isso, uma prova diferente do que é habitual fazer-se. Desde logo porque começou com uma consulta ao painel de provadores da Revista de Vinhos no sentido de indicarem os vinhos de cada enólogo que gostariam de ver representados nesta prova. Depois cruzaram-se as escolhas de cada um para traçar a bissetriz, ou seja, para encontrar as escolhas que reuniam maior consenso entre todos os provadores.
Aqui chegados, como sublinha Nuno Pires, diretor da revista e ele próprio membro do painel, “tínhamos reunidas as condições necessárias para fazer uma prova diferente, em vez da tradicional comparação ‘às cegas’ entre tintos ou entre brancos, ou então por faixas de preços, entre outras possibilidades. Neste caso temos vinhos de uma determinada parcela de vinha, ou de um terroir, ou vinhos feitos com recurso a práticas enológicas menos habituais e podemos então perceber, ou tentar perceber, o que os enólogos andam a fazer, a querer descobrir, a inovar, a definir um caminho. E alguns vinhos provados também são monocastas, o que permite, entre outras conclusões, identificar a expressão dessa casta num determinado local.” Acresce que “estão aqui representadas diferentes gerações de enólogos da maioria das regiões do país, enólogos que revolucionaram nos últimos anos a produção de vinho em Portugal”.
Pode dizer-se, de algum modo, que o tradicional papel crítico do painel de provas está neste caso secundarizado. Aqui, o mais importante é mesmo perceber que caminhos andam a ser trilhados por alguns dos mais importantes enólogos do país, sobretudo nas regiões demarcadas onde atuam preferencialmente. Sem surpresas (ou talvez não…), encontrámos vinhos que são o rosto genuíno dos seus locais de origem, embora com a impressão digital de quem os faz, mas também vinhos que fogem aos padrões dominantes na região – ou porque são verdadeiramente experimentais ou porque, pura e simplesmente, recuperam práticas vitícolas e enológicas quase caídas em desuso.
Provas como esta têm um lado pedagógico – desde logo para quem prova, mas também para quem nos lê, para os produtores e, inclusive, para os responsáveis das regiões demarcadas. Basta pensar nos vinhos “fora do baralho”, vinhos que procuram ir mais longe, que rasgam parâmetros pré-definidos, e que depois arriscam o chumbo nas câmaras de provadores.
Um terço dos vinhos com 18 valores
Numa prova em que cinco dos 15 vinhos provados alcançaram a classificação de 18 valores – precisamente um terço dos vinhos presentes –, o que não sendo o mais importante numa prova deste género dá a justa medida da excelência aqui reunida, esta fantástica viagem sensorial começou com o “Soalheiro Nature Pur Terroir 2017”, um Alvarinho de Melgaço, Vinhos Verdes, que o provador Manuel Moreira catalogou como “um vinho autêntico”, enquanto Guilherme Corrêa evidenciou o lado natural deste vinho, “a expressão sinuosa do granito”, um vinho que tem emoção, que tem um lado desafiador, “mas que não deixa de ser típico, não deixa de ser um Alvarinho, não deixa de ser Minho”.
Ainda nos brancos, descemos até ao Alentejo, ao “terroir” muito particular da Vidigueira. Foi para aqui que Paulo Laureano trouxe o Verdelho da Madeira. E foi com essa casta que construiu o “Paulo Laureano Genus Generationes Maria Teresa Laureano 2017”, “um vinho muito cítrico, muito mineral, muito tenso na boca, com grande volume, que evidencia todo o talento do Paulo Laureano e mostra, sobretudo, como ele está a reposicionar-se enquanto produtor de vinhos, a procurar precisão e as melhores castas no terroir particular da Vidigueira”, observa Manuel Moreira, enquanto Guilherme Corrêa prefere evidenciar que para um provador internacional “é difícil colocar esse vinho no Alentejo, pois é um vinho com enorme precisão, austero, com um lado salgado e mineral, mais parece um branco de clima mais frio”.
De regresso ao Alto Minho e ao mundo dos Alvarinho, provou-se um vinho referencial de um dos mais reputados enólogos portugueses, Anselmo Mendes, com longa carreira desenvolvida em praticamente todas as regiões portuguesas mas protagonista de uma história muito particular nos Vinhos Verdes. Trata-se do “Parcela Única 2016”, um dos vinhos melhor pontuados nesta prova e que coroa uma longa trajetória iniciada por Anselmo Mendes há mais de 20 anos de experimentação com fermentação de Alvarinho em barricas. O preciosismo do “Parcela Única” é ser fermentado em madeira 100% nova, de uma única tanoaria e de uma única floresta, a de Bertranges – madeira que, todavia, não se deixa sentir nos aromas, apenas na textura. Notável.
Permanecendo na casta Alvarinho, mas fora do seu território original – por terras do Ribatejo – seguiu-se o “Hobby Alvarinho 2016”, um vinho de Diogo Campilho (com a parceria de Pedro Pinhão), um enólogo que tem marcado a história dos vinhos do Tejo na última década e que neste caso, com o seu despretencioso “Hobby”, parece ter alcançado uma referência de qualidade para a produção de Alvarinho na região.
Subindo de novo no mapa de Portugal, mas ainda no reino dos brancos, a próxima paragem foi na Bairrada para provar o “Post Quercus Bical 2015” de Filipa Pato (um vinho assinado também pelo seu marido, o “sommelier” William Wouters), que resulta da recuperação de métodos ancestrais de vinificação na procura de vinhos mais autênticos e marcantes. Daí o “Post Quercus” (traduzido à letra: “depois do carvalho”) que recorre a ânforas para a fermentação e estágio. “Um vinho para corações fortes”, como diz com graça Guilherme Corrêa, “um vinho desafiador e bem conseguido no seu estilo peculiar”. A prova dos brancos fecharia exemplarmente graças ao “Monte Cascas Malvasia 2014” de Hélder Cunha, um vinho contemporâneo e sofisticado que honra os pergaminhos dos velhos e prestigiados vinhos de Colares. O facto de Hélder Cunha conhecer muito bem os viticultores da região terá facilitado a empreitada de fazer este vinho extraordinário, que constitui em si mesmo “uma grande homenagem ao valor único e raro dos vinhos de Colares”, como sublinha Manuel Moreira.
Do Poeira Ímpar 2009 ao Quinta da Manoella Vinhas Velhas 2015
Nos tintos começámos logo em grande com o “Poeira Ímpar 2009”, lote de Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e Sousão, um grande vinho produzido no Douro com o qual Jorge Moreira assinalou as suas 20 vindimas e duas décadas de enologia. Este “Poeira Ímpar” tem origem numa vinha… ímpar da Quinta do Poeira, em Provesende, propriedade que o enólogo e produtor adquiriu em 2001. Vibrante e com uma “finesse” incrível, em que o seu autor modela as características estruturais do Douro com acidez, frescura, elegância e imensa complexidade.
Descendo até ao Dão provámos o “E.T. Ribeiro Santo 2013”, um clássico de Carlos Lucas, nome grande da região, um vinho que mistura Encruzado e Touriga Nacional, as castas branca e tinta que são rainhas do Dão, orgulhosamente autóctones e brilhantes no acerto conseguido pelo enólogo e produtor de Carregal do Sal. “O vinho está numa fase muito bonita. Muito cativante aromaticamente e com uma frescura espetacular que é apanágio dos vinhos do Dão. É um vinho com muito charme e que revela muito critério na utilização da madeira”, observa Manuel Moreira, enquanto Guilherme Corrêa enaltece “a fruta deslumbrante que mais parece de um Pinot Noir do Novo Mundo. É um vinho encantador, com taninos precisos, de um enólogo que encontrou um caminho muito interessante entre a tradição antiga de fazer vinhos em co-fermentação e a precisão moderna da enologia, sem perder a referência e características do Dão”.
No lado litoral do Dão fica a Bairrada, berço do “Grande Vadio 2013”, projeto pessoal de Luís Patrão, enólogo com nome feito na Herdade do Esporão, mas que é bairradino de nascimento. De vinhas com idade média de 60 anos, maioritariamente Baga, o jovem enólogo construiu um tinto cheio de personalidade e de caráter, simultaneamente elegante e concentrado, um hino à capacidade da Bairrada para originar vinhos longevos e sedutores. Do Alentejo provou-se o “Monte do Carrapatelo Reserva 2014”, vinho de Luís Duarte com a sua mulher Dora Simões, ele que foi percussor dos vinhos do Esporão e é o rosto da Herdade dos Grous, entre outros. Lote de Tinta Miúda, Alicante Bouschet e Touriga Nacional que estagiou 12 meses em barricas de carvalho francês, é um vinho com especiarias muito finas, taninos firmes e ótima acidez, um vinho muito bem conseguido e que fala do lugar onde nasceu – Reguengos de Monsaraz. A representar a região de Lisboa provou-se o “CH by Chocapalha 2015”, de Sandra Tavares da Silva, um Touriga Nacional de Vinhas Velhas que tem o gosto do lugar, o lado marítimo de Lisboa, com imensa vibração, um vinho de Lisboa que “tem tiques do Douro e tem tiques do Dão”, como bem observou Manuel Moreira.
O Algarve também esteve presente nesta prova com o “Alvor Reserva 2015”, um DOC Portimão da Quinta do Morgado da Torre, de João Mendes, percursor na crença de que o Algarve também pode fazer bons vinhos. Lote de Syrah, Touriga Nacional e Alicante Bouschet, um vinho “quente” e com boa madeira, reflete bem o esforço em prol da qualidade que é desiderato deste produtor. Mais acima no mapa provámos o “Tributo 2016” de Rui Reguinga, vinho do Tejo inspirado nas terras gaulesas do vale do Rhône, um lote essencialmente de Syrah completado com Grenache e Viognier.
Do meio do Atlântico, da ilha açoriana do Pico, chegou-nos um tinto do irreverente António Maçanita, certamente o vinho mais curioso desta prova. “A Proibida 2016” é de vinhas velhas misturadas mas remete-nos para a história e características dos “vinhos de cheiro” elaborados a partir da casta americana Isabela, o também denominado “morangueiro” que faz a festa – nas festas – do Divino Espírito Santo, mas que a União Europeia proibiu no espaço comunitário em 1995. Daí a “proibida” e o rótulo rasurado, como tendo passado pelo crivo da censura.
No fim desta viagem por vinhos emblemáticos de 15 enólogos de primeira linha, um vinho do Douro – o “Quinta da Manoella Vinhas Velhas 2015”, de Jorge Serôdio Borges, um comprovativo inequívoco de que a mineralidade existe nos vinhos. Um “belíssimo vinho que combina elegância, identidade, finesse, estrutura e robustez” (Manuel Moreira dixit). Ou, como diria Guilherme Corrêa: “Se eu tivesse de mostrar a alguém o que é um grande vinho do Douro, eu escolheria este vinho”. Não podíamos ter terminado de melhor maneira. Com chave de ouro.
Painel de provas: Guilherme Corrêa, Luís Costa, Manuel Moreira e Nuno Guedes Vaz Pires.
Trabalho originalmente publicado na edição nº 341 da Revista de Vinhos (Abril de 2018).