A magia do tremoço de Cadima

Quem é que não se deixa seduzir por uma cerveja gelada com tremoços, mal o verão dá um ar da sua graça?

Fotografia: Jorge Matos
Fátima Iken

Fátima Iken

Quem é que não se deixa seduzir por uma cerveja gelada com tremoços, mal o verão dá um ar da sua graça? Uma dupla imbatível de borbulhas refrescantes a enlear-se na salinidade da leguminosa que exige perícia na hora de descascar e muito labor. A sua produção artesanal é feita por mulheres, em Cadima (Cantanhede), e obriga a uma verdadeira odisseia antes de chegar ao prato. Mas é um rico petisco. Difícil é parar.

 

Quando nos sentamos tranquilamente numa esplanada, acompanhados de uma “loira” efervescente e um prato de tremoços dourados, mal imaginamos a trabalheira necessária, nos bastidores, para os ter à mesa. Sobretudos se curados de forma artesanal, cozidos em fogo de lenha e lavados na água do rio.
Para percebermos os passos necessários à obtenção final da iguaria, fomos até Cadima, em Cantanhede, terra onde a tradição singular da “tremoceira” é preservada. Situada entre a praia e o pinhal, onde as cigarras parecem gritar num silêncio ensurdecedor, Cadima embala-se entre tremocilha, vinha, olivais e pinheiros. A imaginação dita estratégias para sobreviver na labuta do quotidiano. 

De facto, a vertente feminina na preparação do tremoço radica num antigo costume que aproveita da melhor forma uma leguminosa produzida pelos lavradores locais. As tremoceiras são autênticas protagonistas de uma complicada coreografia necessária para a operação da curtição do tremoço. 

Para o testemunharmos, estamos em casa da pioneira D. Lurdes, com 75 anos, que ainda faz tudo sozinha. A idade não parece ser empecilho para esta mulher de armas que conhece desde criança as voltas que é preciso dar para conseguir este petisco, crocante, dourado e de sapidez única.

A fogueira feita por si já está a crepitar e o cheiro a lenha invade a casa. Os grandes tachos com água começam agora a borbulhar, e depois da demolha do tremoço, em gigantes alguidares, é hora de os deitar a cozer. Para estas mulheres acaba por ser uma forma de aumentar o orçamento familiar, normalmente com tempo dedicado à agricultura. “O meu tremoço é só dos lavradores daqui. Vem seco, mas é preciso demolhar. Incha e fica mais graúdo com a água. Põe-se um dia de molho em grandes baldes com água e ele fica já bom. Depois é preciso lavar e colocar a panela a cozer em lume de lenha. Faço tudo sozinha, já estou habituada. Mas faço tudo de forma natural. Há quem ponha cinza, mas eu não uso nada disso, só sal no final”. 

Se crus são tóxicos (contêm uma substância alcalóide, a lupanina), obrigam a demolha e a uma cozedura em grandes tachos com água, em lume de chão, depois de passados por várias águas antes e depois, numa trabalho exaustivo.

As águas das nascentes dos Olhos da Fervença, em Cadima, Cantanhede, acabam por “lavar” e purificar de forma especial estes tremoços, conferindo-lhe um sabor peculiar. Lurdes começou com cinco anos a apanhar, madrugada dentro, os tremoços com a mãe, por isso esta história é antiga para ela. “Íamos descalças às 5h da manhã pelos pinhais para apanhar e trazíamos em ceirões nos burros. Tinha de ser apanhado de madrugada para não estalar. Depois a burrita às vezes atolava nos açafates. Foram anos de sacrifícios”, conta.

As grandes panelas ao lume já começam a ferver em cachão e agora é só esperar, ir atiçando o lume para não deixar morrer a fogueira e controlar a cozedura que dura cerca de meia hora. “Chama-se a isto o marisco dos pobres porque era aquilo a que se conseguia chegar. Sempre foi um petisco que aparecia nos casamentos, nas romarias e nas festas. É uma tradição, apesar do trabalho que dá”. Não se consegue parar de comer, mas não sacia. “Dantes havia sete ou oito tremoceiras, ia-se de burro. Hoje já vamos de trator ou motorizada, que não se aguenta com o peso disto. Somos poucas já e poucas pessoas da geração nova se interessam, só a minha sobrinha”.

Hora de deitar fora a água da cozedura que é venenosa, de seguida é altura de escorrê-los e colocá-los em grandes cestos de verga e passar novamente por várias águas. Depois metem-se em sacos com atilhos e colocam-se na água do rio, para retirar todo o amargor.

D. Lurdes vai sozinha na sua mota e leva os sacos no atrelado para os colocar a curtir na água pura da nascente. Mete-se no rio, de galochas, e empurra sozinha os sacos. O espaço é edénico, cheira a hortelã da ribeira e só as rãs a coachar parecem quebrar o silêncio. Depois, os tremoços ficam a purificar alguns dias na nascente. No final, é só retirar e colocar sal a gosto, apregoando “Olha o tremoço de Cadima”.

O facto de o tremoço ter produção local biológica e água de nascente onde é feita a curtição da leguminosa, asseguram, à partida, as condições ideais, ao natural e sem corantes ou conservantes. A prova é que só no evento da feira do tremoço, que ocorre em maio, se chegam a vender cerca de cinco mil litros de tremoços durante os três dias em que decorrer o encontro. Mas se quiser, todos os sábados, no Mercado de Cantanhede, está lá D. Lurdes a vender esta iguaria. Faz ainda broinhas doces no forno a lenha que dizem ser de comer e chorar por mais.

Para imitar o processo, só precisa de comprar os tremoços em cru, secos, numa mercearia, demolhá-los durante 24 horas e depois cozê-los, por 20 minutos, deixá-los arrefecer e colocar num alguidar com água limpa, mudando a água durante várias vezes durante cinco dias. No final, escorrer e adicionar sal, oregãos ou qualquer erva aromática.

Petisco viciante e saudável

Da mesma família que a fava, a lentilha ou a ervilha, o tremoço (Lupinus) tem a vantagem de ser saudável e ter poucas calorias. O único senão é o sal, mas pode ser retirado o excesso. Acaba, assim, por ser indicado para quem tem diabetes ou colesterol. Para os vegetarianos poderá ser uma excelente escolha (por isso aqui deixamos uma receita de húmus de tremoço). Possui ainda, do ponto de vista nutricional, três vezes mais proteína e o dobro do fósforo presente no leite, só para dar o exemplo, três vezes mais fibra que a aveia, vitaminas (E e do complexo B), potássio, ferro, fibras e gorduras insaturadas ómega 3 e 6 e pouco teor de amido. 

O tremoço possui 36 a 52% de proteína, 5 a 20% de ácido oleico e linoleico e 30 a 40% de fibra alimentar. Para além disso, têm, em média, apenas um quinto das calorias que outros aperitivos, como amendoins ou batatas fritas... e ainda propriedades antioxidantes e de renovação celular. Só vantagens. 

A nível da agricultura, não exige rega e quase não dá trabalho, sendo apenas necessários sachar e colher as vagens secas. Depois, é só malhar para retirar o grão e secar ao sol. Se noutros tempos o tremoço era semeado no outono, as alterações climáticas, nomeadamente as geadas primaveris, obrigam a semear em fevereiro e collher no verão. A flor é estonteante e de certeza que já a viu em manchas amarelas ou roxas por esses campos fora, só que não a consegue identificar, e serve na maioria das vezes para azotar os terrenos.

Os romanos já o consumiam e até papas e pão dele faziam. De facto, a farinha de tremoço pode ter múltiplas aplicações como pão, biscoitos ou bolos e até massas, servindo ainda para azotar solos e o mundo produz toneladas. Em Portugal, a produção está a decrescer e estamos pelas seis toneladas.

Se quiser optar pelo “do it yourself” também pode aventurar-se nesta odisseia. É só comprá-los numa mercearia e seguir os cinco passos que aqui deixamos.

1. Coloque os tremoços de molho durante 24 horas.
2. Lave por várias águas e coloque num tacho com água a cozer durante vinte minutos.
3. Após arrefecerem, transfira para um alguidar com água fresca que deve ser mudada, várias vezes ao dia, durante pelo menos cinco dias.
4. Experimente um para verificar que saiu qualquer travo de amargor.
5. Tempere-os com sal e guarde no frigorífico ou em vácuo. Pode ainda adicionar alho e/ou ervas aromáticas, como orégãos.