Desfaz-se na boca de forma etérea e a textura aveludada configura-lhe o carácter. Isto para não falar do sabor, que nos leva aos céus. É assim o bacalhau espiritual, uma receita cujo ADN remonta, por incrível que pareça, a França, mais propriamente a Nîmes, mas o cunho português garantiu-lhe a identidade nacional.
Tal como uma pessoa, uma receita tem um genoma, uma história que a cria e identifica. Por isso, o receituário nacional é fonte de enésimas curiosidades que neste espaço lhe iremos contar, desfiando a origem e as peripécias daquilo que hoje comemos e contribuindo para o perfil identitário da cozinha nacional.
Se a brandade acaba por ser o “pai” do bacalhau espiritual, foi a condessa Almeida Araújo (nos anos 40 à frente do restaurante Cozinha Velha, do Palácio de Queluz) que recriou e batizou a receita nacional, inspirada nas viagens a França, tendo por objetivo arrecadar ideias para os pratos do seu restaurante de luxo.
O fito da condessa era, inicialmente, obter os ingredientes exatos e a receita da célebre “brandade de morue”, originária da Occitânia. Como não conseguiu, não desarmou. A partir da equação deste creme divinal, inventou uma nova receita que ficou para a história do receituário nacional. E o prato tem duas virtudes essenciais: um sabor e textura delicados e o facto de conseguir “economizar” (virtuosismo muito apreciado no Estado Novo), já que acaba por “esticar” a principal matéria-prima, o bacalhau, pois então.
A receita da “brandade chaude de morue” tem origem no século XVIII e acaba por ser uma subtil mistura que une, principalmente, dois ingredientes locais: o bacalhau (que era trocado por sal) e o azeite, fonte mediterrânea de grandes inspirações. Depois era emulsionado leite, sendo tudo bem batido num almofariz, de forma vigorosa e rítmica de forma a conseguir uma espécie de puré. Daí, a etimologia do nome “brandade”, que no dialeto de Languedoc significa bater ou agitar (brandir). Apesar do lado libidinoso do gesto, a “brandade” é o prato oficial da sexta-feira santa do Languedoc.
A condessa, para além das receitas portuguesas tradicionais, desejou acrescentar alguma sofisticação francesa ao menu, até porque a França continuava a ser a referência gastronómica por excelência, mesmo durante o Estado Novo. Muitos chefes de cozinha portugueses tinham essa escola, ao aprender a cozinhar com franceses nos restaurantes de luxo da época. O próprio João Ribeiro, um dos cozinheiros mais famosos da altura (Aviz), elegia os pratos da gastronomia francesa como os mais inspiradores e praticava-os habitualmente.
Um dos grandes problemas da cozinha nacional é, por vezes, esquecer as raízes de cada receita e deturpar a sua nomenclatura. Por isso, muitas vezes o “bacalhau espiritual” surge feito com batata, mas é um erro crasso. O bacalhau espiritual é feito apenas com miolo de pão, leite, cenoura ralada, cebola e, obviamente, o nosso peixe de eleição, rematado por molho branco.
A própria “brandade” francesa surge, algumas vezes, em ementas de restaurantes nacionais abusivamente feita com batata, outro duplo erro, já que se confundem as receitas. Daí ser tão importante que um chefe de cozinha leia e investigue para não ocorrerem barbaridades que se poderiam evitar, desvirtuando receitas.
Mesmo na França, querer apenas acrescentar alho à receita original criou grande celeuma, apesar de a sugestão ser do grande gastrónomo Grimod de la Reynière e integrada por Dumas no famoso dicionário de cozinha. Seja como for, a receita original terá sido criada no sul de França, por Charles Durand.
Mas voltemos à receita do Cozinha Velha, restaurante que, durante décadas, teve fama, não só pela cozinha como pelo local nobre onde foi instalado. Ainda hoje, o restaurante da Pousada de Queluz conserva o nome e o menu integra a receita.
Um dos principais segredos para conseguir um bom bacalhau espiritual será a qualidade da matéria-prima. Ou seja, lá porque o bacalhau é desfiado, não opte por partes menos nobres do gadídeo, pelo contrário.
Desfia-se o bacalhau já cozido, rala-se cenoura e pica-se cebola em percentagens iguais e depois, numa frigideira com excelente azeite, coloca-se a cebola, seguindo-se o bacalhau e a cenoura, mexendo bem. Acrescenta-se miolo de pão embebido em leite e água da cozedura do bacalhau. Faz-se um molho Bechamel e junta-se um pouco à massa anterior. Já num prato de ir ao forno, coloca-se o restante Bechamel, polvilhando, por fim, com queijo ralado (da Ilha, Grana Padano, parmesão).
A receita mais correta é a que se encontra no livro “Tesouros da Cozinha Tradicional Portuguesa”, de Maria Emília Cancella de Abreu, a principal bíblia da gastronomia portuguesa tão injustamente esquecida.
A conjugação das várias texturas suaves cria uma alquimia de sabor delicado, entre doce e salgado, numa suavidade cremosa que se evola na boca. Nada melhor para transcender o tangível e deixar-nos, literalmente, nas nuvens.
Receita
Ingredientes
1 kg. de bacalhau demolhado
1 lt. de Béchamel
750 gr. de cenouras
750 gr. cebolas grandes
2,5 dl. de azeite
2,5 dl. de leite
350 gr. miolo de pão de forma
sal q.b.
pimenta moída na altura q.b.
100 gr. queijo da Ilha ralado
Modo de preparação:
Coze-se o bacalhau, limpa-se de peles e espinhas e desfaz-se em lascas. Ralam-se as cenouras. Pica-se a cebola e o alho que se leva ao lume com azeite.
Quando a cebola fica translúcida acrescenta-se a cenoura e depois o bacalhau. Embebe-se o pão em leite e um pouco da água de cozer o bacalhau e, sem escorrer, junta-se à mistura. Junta-se um pouco de molho bechamel.
Finalmente, mistura-se tudo muito bem e leva-se ao forno 20 minutos a 200ºC num prato de pirex, colocando por cima molho bechamel e queijo ralado.