A broa de Avintes dava um case study. Morena, secular e emblemática, com mais de mil anos, não há muitos que resistam a este pão de milho com côdea esquadraçada e cor de âmbar, cozida, noutros tempos, em folhas de couve e polvilhada de farinha no seu topo. Húmida, sápida e macia, com um ligeiro toque agridoce, associa-se à figura feminina da padeira de Avintes, mulher formosa, e muitas vezes também barqueira, que a trazia da margem esquerda do Douro para o Porto.
Não será por acaso que tem mais de dez séculos e faz parte da nossa identidade. Podia ser de qualquer ponto junto à margem do rio, do Areiinho à ribeira d’Arnelas. A padeira vinha de barca à cidade, remando com uma mulher barqueira, até ao Cais da Ribeira e, para além da broa com formato de cilindro convexo, trazia biscoitos morenos e crocantes ou pão loiro de mistura. Por vezes, era a própria padeira que remava de pé e com longa pá, nos barcos valboeiros, cantando uma toada lenta que embalava quem a ouvia. Marinheira de água doce, esbelta, à proa do pangaio, a barqueira e a padeira de Avintes ganharam fama e não era só por todas estas qualidades.
É que a broa que trazia sob o pano ebúrneo de linho tinha muito sabor e bela consistência. De tal forma que, ao longo dos séculos, a sua fama foi recrudescendo e ainda hoje é símbolo de sucesso e tradição. Originária do norte do país, a broa é uma mistura de milho branco e centeio, de cor escura, e quase não possui côdea, sendo um alimento democrático que nasce “de todos para todos”. O seu sabor é muito particular e não se consegue parar de comer, apesar de ser bastante consistente e compacta. O seu formato é, desde logo, uma afirmação de personalidade e matou a fome de muita gente.
É do alto da Rua das Presas, onde estamos, a avistar lá ao fundo o Douro plúmbleo, numa suave manhã outonal, que a broa se faz da mesma forma há séculos. Na Padaria Neto, local com história em Avintes, o ritual é o mesmo, passado de geração em geração.
Tudo começa às três horas da madrugada, quando se acende o forno a lenha e aquece, ao mesmo tempo, a caldeira para ter água quente. De seguida, começam-se a misturar as farinhas de centeio e milho, com água e massa-mãe, o também chamado isco, e um pouco de malte, enquanto as brasas vão crepitando. Amassa-se duas horas e depois as broas são tendidas à mão e com a ajuda de uma pequena tigela que vai dando forma cilíndrica ao pão. Depois, varrem-se as brasas, quando o calor está no ponto, e ala com elas.
À frente do negócio, há 44 anos, está Arminda Neto, herdeira da tradição familiar, por parte do marido que, com a ajuda de duas padeiras (Maria de Lurdes e Susana, ali há um quarto de século a fazer broa), vê o pão levedar e superintende no ritual. É, finalmente, a hora de meter as centenas de broas no forno com duas pás compridas, onde ficam a cozer durante três horas depois de selada a porta do forno com restos de massa.
Quem observa o pequeno exército de broinhas no forno incandescente parece estar numa pequena catedral povoada de muitas cabecinhas alinhadas, uma imagem impactante que explica por que razão estes procedimentos se aplicam há seculos. Quando a abóbada do forno começa a clarear, tal como o dia, é altura de retirar. Há um cheirinho sedutor no ar, tempo em que já está a fornada cozida e começam a aparecer os primeiros clientes, pela fresca da manhã. A primeira fornada deixa-nos estonteados com o aroma e, mesmo não sendo fãs, ficamos com vontade de a provar.
Diariamente, confecionam-se aqui cerca de 300 quilos, o que é obra. Outra das peculiariedades que confere sabor à broa de Avintes é o facto da farinha de milho e centeio serem moídas de forma hidráulica, de maneira a não perder as suas características naturais. “A minha sogra ainda amassava à mão, mas agora temos batedeira, porque é muita quantidade. Mas usamos massa-mãe, sem qualquer tipo de levedante”, conta Arminda Neto, enquanto nos explica a coreografia de como molda a massa. A azáfama cresce quando tem de se retirar, com as pás gigantes, as broinhas alinhadas. As duas padeiras, que quase parecem de Aljubarrota, revezam-se num movimento cénico que transpira calor e trabalho árduo.
Evocam-se, de novo, as padeiras que noutros séculos faziam tudo à mão e desciam até lá abaixo, à beira-rio, com os cestos e canastras à cabeça para embarcar e vender as broas no Porto, viajando até ao Cais da Ribeira, regressando de novo com a obrigação de trilhar uma subida íngreme no regresso a casa. “Era um trabalho árduo, tudo muito rústico, faziam tudo à mão e tinham roupas muito pesadas, depois da madrugada a fazer a broa, ainda tinham de as ir vender no Porto”, conta ainda Arminda.
Pão popular, bastante denso mas saboroso, está, contudo, envolto numa mística que vem já do século XIII, altura em que o chamado pão “escuro” era destinado aos mais desfavorecidos. O seu formato de torre sineira torna-o, igualmente, peculiar, tendo uma história de mais de mil anos. Noutros tempos, a broa era feita de forma artesanal, à mão, mas hoje em dia as quantidades não se coadunam com esse modus faciendi e usa-se a amassadeira, normalmente.
Havia um segredo pelo meio que ninguém parece querer contar. Quanto ao procedimento da sua manufatura é aparentemente simples: às farinhas bem doseadas, junta-se massa-mãe, água e sal, amassando-se, fazendo-se depois uma cruz para dividir em quatro. Coloca-se num sítio morno, abafa-se e deixa-se levedar durante algumas horas. Se tudo correr bem e crescer é enformada em escudelas ou tigelas e vai ao forno de lenha a cozer. O truque para a quase inexistência de côdea (apenas surge na parte superior) é cozê-las muito juntas. No final, assentavam sobre uma folha de couve galega e a magia fazia-se no forno, onde coze de forma lenta, durante cinco ou seis horas, o que contribui para lhe conferir, igualmente, muito sabor.
Origem remonta ao tempo de D. Dinis
Certo é que a figura mátria da mulher anda associada a este pão moreno, algo rústico e muito singular, um dos símbolos da nossa cultura, sobretudo a norte, onde uma escultura da padeira local hoje burila no tempo a sua memória. Reconhecida como Produto Tradicional Português, em 2001, a broa ou boroa, ambas com origem no castelhano borona, que significa “pão de milho”, tem raízes pré-romanas. Sozinha ou a acompanhar caldo verde e sardinhas, ou chouriço, será difícil resistir-lhe. Há ainda quem a frite, outro petisco de truz. Normalmente com dois tamanhos, consoante a massa é moldada numa tigela ou escudela, pode pesar oito quilos (com 30 cm de diâmetro e 15 de altura) ou um quilo (com 10 cm de diâmetro e 15 cm de altura).
A sua afirmação remonta ao século XIII, já que terá sido D. Dinis a proibir a cozedura do pão no Porto, estabelecendo que as “padeiras de trigo iriam para Valongo e as de milho para Avintes”. Tudo para que se reduzisse o número de incêndios provocados pelos enésimos fornos existentes na cidade que assim colocam em risco as populações citadinas, mais numerosas. Aproveitava-se também o facto de Avintes ficar numa zona de água, junto ao rio Febros, que assim podia ser essencial pela quantidade de moinhos aí existente.
No entanto, apenas um alvará datado de 1563 cita, pela primeira vez, a “broa de Avintes” onde se diz que as padeiras locais eram “obrigadas a dar o pão cozido necessário ao povo; e do preço e peso da postura que para isso fizessem, principalmente de pão de milho e centeio”.
Apesar da preocupação material com o preço do pão, a broa é entendida na sua espiritualidade “como pão santo” “e bendito, símbolo de paz”, num ofício datado de 12 de dezembro de 1811.
É igualmente reconhecido, no mesmo documento, “como pioneiro da alegria, apóstolo do amor, criador e fomentador de civilizações”.
Quanto à receita, é segredo. Sabemos apenas que é feita de milho branco e centeio, este último para a tornar menos acre e mais adocicada, mas certa é a religiosidade associada ao ritual da confeção. Assim, a padeira, antes de barrar a porta do forno, faz o sinal da cruz e, empunhando a pá, afirma, seguindo o rito: “Deus te acrescente dentro do forno e fora do forno como pelo mundo todo”.
Apesar do nome de Avintes ainda hoje, passados quase mil anos, se associar automaticamente à broa, a atividade não é tão intensa como noutros tempos, altura em que detinha o quase monopólio da confeção. Ainda no século XVIII registavam-se cerca de 50 moinhos junto ao Febros e coziam-se semanalmente quase cem carros de broa, o que passou para 300 no século XIX. Certo é que se seguiria uma época de decadência, depois de se recusarem a vender a broa a peso, ainda no século XIX.
Ramalho Ortigão parecia apreciá-la mais até do que a doçaria. Elogia as “orelhas de abade” mas opina que “não chegam, porém à broa primorosa, de fina farinha de milho espoada, a broa que vela propícia pela nossa independência, a broa que tem o que quer que seja do feitio de uma seta, a broa que entre nós é tudo e vence tudo!”.
Segundo o mesmo autor conta em “As Farpas” até no Natal ela era uma iguaira requisitada. “Os jornais não anunciam no tempo do Natal outra coisa, e os confeiteiros estão à espera dos Reis para cair doentes da lida em que andam, entre os vapores que o carvão exala na frente da labareda, do fumo e das fornalhas, flanqueados de perigos, como o soldado entre as balas. A broa! A broa! A serpente não seduziu Eva com uma maçã, como se espalhou; - seduziu-a com uma broa.
Tem-se por aí inveja da sorte deles, e os poetas fazem reparo de ganhar menos com os poemas do que eles com as broas. Deve daí concluir-se que os confeiteiros têm mais talento do que os poetas? Não. Mas a gente não come a Paquita nem o D. Jaime ao passo que a broa...”. Vemos assim que a fama da broa vem de longe.
A história e cultura desta broa é celebrada anualmente com uma festa alusiva, na última semana de Agosto, desde 1989, e a Confraria da Broa de Avintes faz questão de preservar e divulgar a sua história, estando em processo de certificação oficial e internacionalização.
Para o caso de querer experimentar em casa, deixamos uma receita aproximada da original, mas o melhor mesmo seria dar uma saltada a Avintes, pouco depois das nove horas da manhã, quando sai, ainda quentinha, do forno a lenha. Não há igual.
Padaria Neto
R. Presas, 174
4430-890 Avintes
T. 227 829 051
Receita
Ingredientes:
1,5 kg. de farinha de milho branca
1,5 kg. de farinha de centeio
100 g. de farinha de malte
2,5 l. de água ( 45ºc)
50 g. de massa-mãe (ou de levedura)
Preparação:
1. Amassar as farinhas com água morna (cerca de 40ºC) até obter boa consistência para tender.
2. Acrescentar a levedura no final da amassadura e deixar durante cerca de 30 minutos até a massa "abrir".
3. Pesar unidades de 600 a 800 gramas, enrolar e tender em formato alongado, enfarinhando-as com centeio;
4. Colocar em tabuleiros com abas previamente forradas com folhas de couve galega;
5. Meter no forno a 260ºC durante cerca de uma hora (variando com o peso da massa), sendo que a cozedura em tabuleiro poderá prolongar-se por mais de duas horas;
6. Depois de cozidas, as broas devem ficar abafadas até arrefecer e deixa-se secar.