Cozinhar num berço de areia

Entre o sal do mar e o sabor da terra, a população da Beira Litoral aproveitou a areia da praia para tempero e “lume”

Fotografia: Jorge Matos
Redação

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Ser português passa também (e muito) por engendrar formas de cozinhar a partir das dádivas da Natureza. Entre o sal do mar e o sabor da terra, a população da Beira Litoral aproveitou a areia da praia para tempero e “lume”. Neste caso, da Praia da Tocha. As batatas que nascem ali bem perto são cozinhadas num berço de areia aquecida por uma fogueira e quem as prova não quer outra coisa. Para acompanhar, sardinha ou carapau na telha. Haverá petisco mais encantatório? 


 
É quase comovente a arte que o povo descortina para colocar alimento na mesa. Quantos exemplos dessa criatividade nata se multiplicam pelo território nacional. Do sável fumado - pescado e confecionado nos barcos rabelos, pelos tanoeiros - às caldeiradas, feitas nas fragatas, do lume de chão à salga e ao fumo: tanta poesia quanto a imaginação popular permite nestas práticas e expressões populares.

Neste caso, batatas. Sim, batatas cozinhadas na praia, na areia quente. A simplicidade é imbatível e uma das razões do sucesso desta equação: areia condutora, versátil e homogénea, abraçada pelo sal marítimo que nela se entranha. O resultado é uma sapidez única dos tubérculos. 

A pesca de arrasto com barcos saveiros, tipo meia-lua, bem como o sal das marinhas, a apanha de enguias e algas na Ria, a agricultura e o moliço que a bafeja, são formas diversas das populações locais da beira litoral engendrarem meios de subsistência a partir do que o território oferece para criar alimento. E, em paralelo, criam cultura e singularidade.

Na hora da sobrevivência, a imaginação escreve por linhas inspiradoras, numa espécie de tessitura com muitos fios manufaturados pela criatividade. A necessidade atiça a imaginação e traduz-se em poemas como as caldeiradas, o pitau de raia, os berbigões abertos na caruma, as caras e sames de bacalhau ou, claro, as sardinhas na telha com batatas assadas na areia. 

Neste caso, a tradição nasce em Gândara e na Praia da Tocha (Cantanhede), bem como em Mira (Coimbra), terras vivendo paredes-meias entre a enxada e a rede, com um pé na agricultura, outro no mar e sua faina piscatória xávega.

E é numa manhã que ameaça chuva, em pleno começo do verão, que colocamos os pés na imensidão de areia dourada que o mar abraça na Praia da Tocha, entre o cheiro a maresia e os gritos dos pescadores artesanais da xávega que ainda por aqui sobrevivem, ícones do nosso património cultural, resilientes como o dorso de um barco contra a intempérie e cujas vidas duras se adivinham nas mãos e no olhar.

Símbolos desse mesmo tesouro são os palheiros, estruturas palafíticas representativas da arte xávega que evocam a fixação de pescadores vindos de comunidades do Norte ou do Sul para a safra, a par dos gandarenses que, na altura de verão, trocavam os carros de bois e as enxadas pelas redes e pelas xávegas, fundando este núcleo, na origem da atual zona balnear. 

Estamos aqui exatamente para descortinar como surgiu a curiosa tradição de cozer as batatas na areia. Zé Maria, cuja pele tisnada fala a linguagem do mar, soa alto a sua voz de trovão e começa por fazer uma cova e uma fogueira na areia. À falta de fogão, é mesmo ali, na praia, que se faz tudo. Uma fogueira primitiva e pouco mais. 

Depois, vem a sapiência com que a experiência bafeja este homem do litoral, exemplo de sustentabilidade. A lenha dos pinheiros bravos apanhados na mata (que também serviam para aquecer nas noites de inverno) serve para atiçar a fogueira e no brasido que a escaldou ali se assam as batatinhas olho-de-perdiz (variedade também apelidada Picasso) que Zé Maria cultiva e que teremos a oportunidade de provar. Ele mesmo é o emblema dessa ligação entre terra e mar, pela sobrevivência, intercala o mau-humorcom um sorriso doce que nos desarma. Estes homens e mulheres são assim mesmo. Intempestivos como o Atlântico que quebra em ondulações gigantes aqui ao lado e exige coragem até ao tutâno para colocar pão na mesa.

Esta curiosa tradição inicia o seu ritual com uma cova na areia, onde se faz uma fogueira. “Fica assim durante cerca de uma hora e depois puxa-se o brasido para o lado, desloca-se a areia e deitam-se as batatas miúdas na cova”, enfatiza Zé Maria. De quando em quando, junta-se caruma e alinha-se o forno improvisado no chão.Tapam-se com a areia e deixa-se cozinhar cerca de meia hora para que o sal se impregne.

Quando se retiram, a areia está tão quente que borbulha, fazendo pequenos estalidos que convidam a apreciar já o petisco que se adivinha. Este procedimento é, aliás, similar ao usado pelos vereres no deserto do Sahara para cozer o pão na areia. Depois de assadas, temperadas pelo sal impregnado no areal, as batatas são limpas com um saco de serapilheira ou sacudidas nas redes de pesca.  

Apesar de secular e grande tradição, não será fácil salvaguardar este prato, pois hoje é proibido fazer fogueiras na praia...mas a imaginação, mais uma vez, dá cartas e muda-se a areia de sítio. “A batata assada na areia é uma tradição muito antiga. Muitos homens vinham do Ribatejo e de outros lugares para trabalhar no verão na pesca na altura do S. João. Outros viviam nas Berlengas e na Tocha mas vinham para a pesca à procura de trabalho e viver nos palheiros”, conta-nos ainda António Moço, um dos proprietários da companha, a par de Judite, mulher de armas e cujos olhos azuis parecem ter mar dentro.

Dantes, estas batatas acompanhavam com bacalhau nas brasas, segundo nos conta o senhor Manuel que vai ser o cozinheiro de serviço, aos comandos na brasa. “Mais tarde é que começaram a fazer com outros peixes”, explica. 

 Artes do mar e da terra

Se, originalmente, era o bacalhau o acompanhamento destas batatas cozinhadas na praia, hoje vamos juntar a sazonal boa sardinha assada nas brasas e ainda outra forma típica local: torrada e assada no forno a lenha, na chamada telha de canudo, instrumento ali à mão, imaginado como fio condutor de calor. Uma tradição nesta zona. O mesmo procedimento se faz com o sável no Douro. Noutros tempos, a sardinha era embrulhada em folha de figueira, de novo o que se encontrava à mão na Natureza-mãe. Chamam-lhe torrada porque é envolvida em farinha de milho.

Peixe e sal por um lado, batatas, e grelos de nabo do outro: o resultado é um casamento gastronómico de truz, pela concentração de sabores.Agora é só fechar os olhos para saborear.

Numa mesa redonda partilha-se memórias e artes, saberes e sabores, rodando os petiscos entre os convivas cúmplices, celebrando esta língua do povo com o vinho do terroir bairradino, da Adega Cooperativa de Cantanhede, Marquês de Marialva Colheita Selecionada branco (um blend de Arito, Bical e Maria Gomes), tinto e espumante tinto Marquês de Marialva, a mostrarem ambos a raça da Baga e a harmonizar com este prato de forma impoluta. No final, a concluir, uma ode local que dá pelo nome Bolo de Ançã.

Saborear estas batatas com os pés na areia, num palheiro em cima da praia e com a boa vontade improvisada das gentes da terra, dos pescadores à câmara local, dos produtores de batata e vinho, tem outro encanto. 

Segundo consta da Carta Gastronómica de Coimbra - coordenada por Guida Cândido, investigadora na área de Patrimónios Alimentares – reitera-se que a receita “Sardinha Torrada na Telha com Batatas Assadas na Areia” remonta a tradições ligadas ao campo e ao mar. “Segundo reza a tradição, antigamente, no inverno, quando o rio Mondego inundava os campos em redor, as manadas de gado bravo que por ali pastavam deslocavam-se para outras regiões. Os homens que andavam atrás deste gado dirigiam-se a pé com pouquíssimos pertences. Quando se encontravam na zona da Praia da Tocha, estes pastores acompanhavam o peixe que por ali se pescava com algumas batatas que traziam nos alforges ou que adquiriam aos agricultores da zona. Com recurso às madeiras e lenhas que por ali apanhavam, preparavam um brasido e assavam as batatas em covas escavadas na areia e também o peixe que arranjavam, geralmente sardinhas ou carapaus”, lê-se no documento.

Segundo Jorge Reste, responsável pela área do Turismo da Câmara de Cantanhede, a Praia da Tocha era antigamente “um local ermo, sem nada, e os pescadores que só vinham na época da safra tinham de comer alguma coisa. O peixe que pescavam e umas batatas que traziam de casa eram a solução. Como não havia forno, havia que inventar um. E era a areia. Gândara é terra de areia e começa onde acaba a Bairrada, terra de barros. Em Gândara viviam da agricultura e do cultivo, mas quando era altura da safra iam pescar”.

Esta tradição será retomada, de novo, em Agosto, mais propriamente dia 19, pela Associação de Moradores da Praia da Tocha que tem por hábito realizar, anualmente, na Praia da Tocha, o Festival da sardinha assada na telha e das batatas assadas na areia. 

Depois de dois anos sem se poder organizar devido à pandemia, a vontade de retomar o evento gregário é muita, segundo Alberto Oliveira, que vê nesta iniciativa uma forma “de não deixar morrer esta tradição cultural”. “A sardinha era cozinhada na praia, inicialmente, mas mais tarde aproveitava-se o calor do forno de cozer o pão para a colocar na telha e cozinhar aí. No princípio era qualquer peixe grelhado na mesma braseira na praia. Depois é que passou a ser feita a sardinha no forno”.  

Atualmente, as sardinhas, envolvidas em farinha de milho, são assadas, sobre uma telha de barro coberta com uma folha de horto (couve), em forno de lenha, aproveitando o calor de cozer o pão e as batatas são assadas na areia da praia. “Quando se cozia a broa no forno de lenha, aproveitava-se o calor do forno para assar também o peixe, no caso a sardinha, para acompanhar a broa quente. O peixe era assado em telhas, que eram utilizadas para o efeito. Trata-se, pois, de um prato comum nos hábitos das gentes remediadas”, lê-se ainda na Carta Gastronómica de Coimbra. 

Ou seja, pescadores artesanais e camponeses são os autores desta receita, disseminada entre mar e terra, tal como os sabores finais. Desenvolveram, deste modo, a técnica imaginativa para fazerem uma fogueira no areal e o resultado é um petisco muito saboroso. Ainda mais se as batatas forem novas e o peixe acabado de pescar. 

A resiliência da arte xávega

Ainda hoje, esta pesca artesanal e sazonal se pratica na Praia da Tocha. A ancestral arte xávega, que remonta ao século XVII, ainda sobrevive por aqui (e em Espinho, Ovar, no Furadouro, Mira, Torreira, Vieira, Pedrógão, Costa da Caparica e Sesimbra, aliás). Na arte xávega, as redes são colocadas em alto mar e um dos cabos fica em terra, a chamada “mão de terra”e, em semi-círculo, os pescadores trazem depois a outra ponta da rede para a praia.

Noutros tempos, procede-se à separação do peixe capturado para ser leiloado publicamente, não sem que antes todos os participantes na árdua tarefa tivessem recebido a sua parte, ou “quinhão”, e parte era partilhada enquanto se grelhava o peixe e assavam as batatas na areia. 

A faina dantes começava bem cedo pela manhã ao som do búzio que anunciava a saída das campanhas, cada uma com cerca de seis ou sete homens.
Hoje, já não se escuta este som, mas a pesca artesanal continua. Os barcos afastam-se a cerca de três milhas da costa e depois, já em terra, puxam-se as cordas que prendem as redes, arrastando-as para a praia. Um espetáculo que se aconselha a assistir e continua, apesar de se considerar uma arte em extinção. 

António Patrão, arrais, conta-nos que hoje existem dois barcos com sete homens na Praia da Tocha, resistentes ao que o mar deixa. “O mar é que manda”, confessa. Hoje há lulas, sardinhas e carapaus na rede. Normalmente é a raia, o biqueirão ou o ruivo que surgem por aqui. Estes homens parecem ter a paixão pela arte e pela memória e lutam para manter viva a tradição, enfrentando o mar duas vezes por dia. De manhã e de tarde, simbolizando a resiliência.

Tal como os palheiros da Tocha, símbolo da arquitetura popular, que marcaram uma época e integram o património local, servindo noutros tempos para abrigo dos pescadores e para guardar o material da faina, mas hoje recuperados e transformados em casas de férias. Estas casinhas situam-se na parte norte, abrigadas dos ventos marinhos pelo cordão dunar e serviam de habitação aos homens que vinham trabalhar na safra, sendo feitos com recurso à madeira de pinho das matas próximas. Suspensos em estacas de madeira e telhado de duas águas, que era revestido a colmo, inicialmente. Os palheiros estão a ser classificados como património de interesse municipal pela Câmara de Cantanhede que já adquiriu dois, de modo a preservar a história do que simbolizam e porque são marca identitária local inconfundível. 

Patrimónios culturais que nos enriquecem e que estão a ser salvaguardados pela Câmara de Cantanhede para evitar que se perca a sua memória e expressividade. Porque eles falam e contam estórias que todos, um dia, vão querer ouvir. E provar.
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Receitas

BATATAS NA AREIA 

Preparação:
1.Faz-se uma cova na areia da praia e aí uma fogueira com lenha num diâmetro de dois metros e cerca de 30 centímetros de fundo.
2.Retira-se as brasas para o lado e coloca-se as batatas, que deverão ser olho-de-perdiz, vulgo Picasso, cobrindo com areia já quente.
3.Deixa-se assar cerca de meia hora.
4.Colocam-se numa rede ou saco de sarapilheira e sacodem-se.
5.Não é necessário temperar porque a areia já é salgada per si.

SARDINHA TORRADA NA TELHA 

Ingredientes:
2 kgs. de sardinhas
Sal grosso 
Farinha de milho 
Grelos de nabo
Telha de barro
Folhas de papel vegetal ou folhas de couve (lavadas e bem secas)  
Batatas pequenas (preferencialmente batatas novas) 

Preparação:
1. Arranje as sardinhas e tempere com sal grosso.
2. Passe-as em farinha de milho e coloque numa telha de canudo.
3. Asse as sardinhas no forno (de preferência a lenha) até ficarem douradas.
4. Pode ainda preparar grelos de nabo, fritando em azeite com louro e alho, para acompanhar.