A maciez do pão lático abraçado por um véu doce e untuoso, o leve crocante do açúcar e o exotismo da canela, cantado num suave sussurro cítrico, deixam-nos literalmente sem defesas. Rabanada é colo, memória de infância, Natal e quase uma porta aberta a outra dimensão intangível. De sobremesa romana a iguaria para mulheres recuperarem do parto, a rabanada consegue ser, em simultâneo, um mistério divinal e guloso. Na Póvoa, tem outra garra.
Natal sem rabanadas não é Natal. Aquele cheirinho do pão embebido em leite, casca de limão, passado por ovos batidos a borbulhar na frigideira pode ressuscitar qualquer alma com vontades suicidas. É, simplesmente, o cheirinho a Natal. Então depois das fatias estarem douradas, ainda mornas, passá-las por açúcar com canela, colocá-las a descansar, e lentamente escorrer a calda sobre elas, evoca o nosso lado sagrado e pecaminoso em dueto.
Doce tão divinal quanto simples, tinha de se incluir no nosso receituário popularmente nobre, ligado às maiores emoções da época natalícia, claro. Porque cozinha é memória e casa, a rabanada é um dos nossos ícones e faz pulsar corações. Daí ser tão difícil conseguir “aquela rabanada”, aquela que a nossa mãe, irmã ou avó faziam. Nem nós mesmos o podemos reproduzir, simplesmente porque é inigualável.
Confecionada com pão de trigo (hoje, normalmente, cacete) cortado em fatias, há várias versões consoante o território.
Mas apesar de simples e de ter por base o aproveitamento de pão recesso, a receita tem que se lhe diga.
A qualidade do pão, a dose certa de tempo em leite (a matéria-prima aqui também interessa obviamente) e a atenção na fritura são essenciais. Mas, mais importante que tudo o resto, é ainda o cuidado com que se manufaturam.
Na Póvoa de Varzim, ganha ainda outras configurações, já que o pão de base escolhido é o chamado “bijou” e não o cacete, uma forma das populações menos favorecidas contornarem o seu uso, por ser mais caro, e poderem usar pão seco, como forma de aproveitamento.
O “bijou” é um pão mais pequeno que o normal molete, de trigo, fofo, denso, redondo e não oblongo, uma vez que é furado no local do corte antes de ser enfornado.
A célebre “Rabanada Poveira” nasce apenas na década de 50, fruto da invenção de um dono de restaurante que, ao procurar uma solução para as sobras do pão bijou no seu restaurante, decidiu aproveitá-las para fazer rabanadas, tendo como referência a habitual utilização pela comunidade piscatória deste tipo de pão.
Leonardo da Mata (seria descendente do célebre Mata cozinheiro?) fez várias tentativas até conseguir obter uma receita de sucesso, já que a procura era imensa, sendo usual o seu envio, até, para a outra banda do Atlântico.
O sucesso das “Rabanadas Poveiras” ou das “Rabanadas do Leonardo” levava a grande procura deste produto quer na Póvoa, quer na região, sendo frequente o envio para o Brasil. Uma invenção a partir de um clássico que veio para ficar, pois ainda hoje é um sucesso local. Aliás, todos os anos, o município poveiro organiza um concurso em que atribui prémios à melhor rabanada, de forma a incentivar a sua feitura.
Um dos locais vencedores com o primeiro lugar é a Pérola do Mercado (mesmo no mercado da Póvoa de Varzim), onde se fazem as rabanadas “de forma artesanal e com a promessa de amor”, dois ingredientes que conquistam qualquer um. Duas irmãs, Teresa, de 59 anos, e Lurdes, de 50, estão à frente do ranking e não têm mãos a medir para tanta encomenda.
E é isso mesmo que comprovamos num dia de chuva torrencial onde o melhor sítio para se estar era no calor morno da cozinha para observar, passo a passo, como se fazem as rabanadas poveiras.
Teresa, a autora, começa cedo a descascar o pão de forma a dar-lhe o formato de uma bolinha que, no final, até parece de Berlim. “Não pode ser pão fresco, senão esboroa-se, tem de ser seco, denso, e um bom bijou, sem a massa esburacada”, enfatiza.
De seguida, passa-as por ovo e leite, espreme bem entre as mãos e coloca-as a fritar antes de as banhar, de novo, em ovo batido, operação que demora uns bons 15 minutos, até ficarem douradinhas, pois é preciso virá-las lentamente.
Ao primeiro olhar, enquanto ganham tonalidade dourada no óleo a ferver, as rabanadas podiam ser sonhos, sendo que, por serem aresanais, são todas ligeiramente diferentes. Teresa aconselha óleo e não azeite de forma a ficarem mais leves.“Isto é tudo moldado à mão, não há máquinas. Apenas braços”, conta.
Depois de passadas por açúcar e canela, há que provar, até porque o aroma convida. Uma fina e crocante primeira camada enleia-se numa fofa massa de pão dourada e levemente húmida, parecendo viciante saboreá-la. Natal é mesmo quando alguén quer.
Todos os dias a Pérola do Mercado tem à venda esta delícia, mas no Natal são milhares os pedidos e Teresa vê-se aflita para os cumprir, mesmo que não durma. “Tenho de fazer diretas, é uma loucura”. No final, ainda pode escolher entre três tipos de acompanhamento: creme de ovo, calda com frutos secos, a mais clássica ou creme de limão.
Claro que há enésimas outras versões de rabanadas que pululam no país e fogem à tradicional. Em Braga, por exemplo, são feitas com calda espessa (confecionada com água, açúcar, pau de canela, casca de limão, manteiga, sal, mel e vinho do Porto) e no Algarve vão ao forno, ou seja, são assadas. Para além da versão com vinho há a mais comum: as que são acompanhadas de calda de açúcar e casca de limão ou laranja que ferve horas até ficar no ponto.
A adição de Vinho do Porto, vinhos tinto ou branco, água de flor de laranjeira ou de rosas, e especiarias como noz-moscada e essência de baunilha, adicionados ao leite, são ainda outras versões criativas, mas francamente não prescindimos da receita clássica.
Das rabanadas romanas “às fatias de parida”
Por incrível que pareça, a receita da rabanada já consta de um livro com mais de dois mil anos. O gastrónomo e cozinheiro Apício faz constar no seu livrinho a fórmula, pelo que é um doce mesmo antigo, como vemos. No seu livro “De Re Coquinaria” (Livro VII, XIII-3), dedicado às sobremesas caseiras, lá surge o “aliter dulcia” com as instruções de “cortar pedaços de pão de trigo fino, sem côdea, embeber em leite e fritá-los em azeite, com mel por cima”. Claro que depois o mel foi substituído por açúcar e se incorporou a canela, provavelmente no século XV ou XVI.
O açúcar era um luxo nesses séculos, por isso muitas vezes eram o mel ou o vinho (este último em vez de leite), que as envolvia. Daí o vinho (verde, tinto ou branco) surge ainda hoje em receituário minhoto para algumas versões diferentes das rabanadas. E se também pensava que este é um doce português desengane-se. Ele surge primeiro em Espanha, documentado no século XV, citado por Juan del Encina: “miel e muchos huevos para hacer revanadas”, iguaria que serviria para as mulheres recuperarem de partos. Daí surge o nome “fatias paridas”. Achavam, então, na época que seria um repasto recuperador para as parturientes ganharem força (pão, leite, ovos, açúcar) e poderem amamentar.
Talvez por isso mesmo, o sema natalício e a sua presença em épocas festivas, como o Natal ou a Quaresma.
Isto para não falar das “paridas torrijas de Menorca” (ou sopas de parteira) e na Galiza “torradas de parida” ou “as revanadas de parida” sefarditas.
Singular é, a este propósito, um retábulo do século XVII, no Museu de Pontevedra evocando o nascimento e a Virgem Maria, onde numa cena doméstica uma mulher tira leite do peito para colocar em fatias de pão...
Mais tarde, a receita surge no livro de cozinha de Domingo Hernandéz de Maceras (1607) e na "Arte de cozina, pastelería, vizcochería y conservería" de Francisco Martinéz (1611) como “torreja”. Já no século XX é um petisco muito típico em Madrid acompanhado de jarros de vinho.
O significado etimológico da palavra, segundo o Dicionário de Língua Portuguesa de Cândido Figueiredo, dita a rabanada como originária em “rebanar” ou cortar em fatias. Portanto, as famosas torrejas em Espanha são as nossas rabanadas. Se no Caderno do Refeitório ou no livro de Domingos Rodrigues elas não surgem (no primeiro há menção a “fatias de queijo” mas, tirando queijo, são feitas como as rabanadas, exceto que não usam leite mas águas e são fritas e polvilhadas com açúcar e canela) aparecem já no livro de Lucas Rigaud (1780), mas com outro nome: “Fatias albardadas à Portuguesa”. Feitas com pão, ou melhor, o miolo, passado por ovos e frito em manteiga (duas vezes), servido com canela e açúcar.
A mais próxima que encontramos é em Frei Manuel de Santa Teresa, denominada “Torrejas de pão ou fatias”, embebidas em leite, fritas depois de envoltas em ovos batidos e fritas novamente, sendo servidas com mel e açúcar, muito similar às “Torrijas de pan”, de Francisco Martínez Motiño.
Igualmente, a “Sopa dourada à Portuguesa” de Rigaud é miolo de pão frito em manteiga, envolvido em açúcar fervente, ao qual se adiciona gemas de ovos batidas e levado a cozer em lume brando, servindo-se com canela por cima. Seja como for, a receita viajou pelo mundo. Para o Brasil, pela mão dos portugueses e pela restante América Latina, pela mão dos espanhóis.
Certo é que as versões francesa do “pain perdu”, inglesa do “eggy bread”, americana do “french toast”, a alemã “arme richter” (cavaleiro pobre), a judaica rabanada com chalá, a indonésia “roti telur”, a marroquina “khobz belbid” ou a indiana “meetha andewala” mais não são mais do que versões da rabanada. De entre as próprias “torrijas” espanholas existem as versões basca, catalã, galega com as suas idiossincrasias.
As rabanadas são, de facto, a essência do Natal. São o remate perfeito de uma refeição que conforta e nos mima. Por isso, nada melhor que completarmos este artigo com a boa prosa de Ortigão descrevendo a ceia de Natal: “As fisionomias tomavam uma expressão de contentamento, de plenitude. Que diabo! Exigir mais seria pedir muito. Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava tudo aí reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita”. Não é tudo? Não. Faltam as rabanadas.
Pérola do Mercado
Largo Dr. David Alves 4490,
4490-442 Póvoa de Varzim
T. 918 951 380
Receita
Ingredientes:
500 ml. leite
125 gr. de açúcar
1 pau de canela
1 casca de limão
5 ovos
6 pães bijou
Canela em pó
Açúcar q.b.
Preparação:
1. Aparam-se os rebordos do pão bijou (que deve estar seco).
2. Aquece-se o leite com uma pitada de sal, casca de limão, um pau de canela e açúcar a gosto.
3. Demolha-se os pães no leite já morno a que se acrescentam dois ovos.
4. Espreme-se bem os pães e colocam-se num prato a repousar.
5. Em seguida, passam-se por ovos batidos, deixando absorver bem e fritam-se em óleo quente e abundante durante 10 a 15 minutos.
6. Retiram-se, escorrem-se e polvilham-se de açúcar misturado com canela.