Flor de Sal de Tavira

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

Só o nome já evoca uma cadeia de sensações. A flor de sal é uma espécie de mar em pó ou pólen marítimo, um creme cristalizado do oceano Atlântico destilado pela Natureza. Só com sol intenso ela “desabrocha”, sendo por isso chamada de flor, burilada por um aglomerado de cristais à superfície do mar. Quando falamos da flor de sal de Tavira, a única DOP portuguesa, esta joia natural ganha em dimensão pela pureza extrema, sendo considerada uma das melhores do mundo. Crocante e húmida, é também conhecida por ouro branco, produto de uma colheita artesanal que no Sotavento algarvio ganha configurações únicas.


O sol já vai a pique e uma brisa suavemente morna sopra nesta manhã que promete ser quente em Tavira. O berço perfeito para se formar uma fina rede de cristais à superfície da água do mar, à boca do Parque Natural da Ria Formosa. Os ínfimos aglomerados de cristais vão-se desenhando com a ajuda do sol intenso, o vento suave e as temperaturas que ajudam à concentração de minerais, algo que no Algarve demorou a surgir nesta Primavera tardia. As delicadas lamelas que se vão desagregando juntam-se com a brisa mais forte e formam uma rede que parece neve, brilhante e subtil. Espuma do mar concentrada, se quisermos. 
É hora de, nas salinas de argila de Tavira, se recolher manualmente a flor de sal à superfície da salmoura que flutua no leito dos rosados talhos. De seguida, seca ao sol, mas preservando a sua humidade natural.

Chamam-lhe caviar do sal marinho, nata do Atlântico, espécie de renda translúcida que requer cuidado e atenção constantes. A ação da pressão do ar e a evaporação da água, num ponto de equilíbrio perfeito, quase uma equação matemática (dependente da harmonia entre maré, temperatura, radiação solar e vento) faz com que se produzam estes flocos – cloreto de sódio e vários minerais. Para cada 80 quilos de sal é retirado um quilo de flor de sal, o que exibe a sua potencialidade. Estes cristais são verdadeiras formas de flores que contêm minerais e oligoelementos naturais preciosos (magnésio, potássio, cálcio, iodo, selénio) e micronutrientes, por isso tão apelativos para um chefe de cozinha. Recolhida por mãos de mestres com pás de madeira, até duas vezes por dia, se as condições estiverem adequadas à sua formação, é o produto mais raro e escasso de uma “marinha”.

Quando se fala com Rui Simeão, à frente da Flor de Sal de Tavira, é notória a sua paixão e o saber acumulado na salicultura que lhe permitiu dar corpo a esta laboração artesanalmente perfeita e pura. A sua especificidade radica ainda no facto de esta ser uma empresa familiar que já vai na quinta geração (desde 1901), o que os torna num dos pioneiros em Portugal na produção de sal, sendo ainda a única flor de sal DOP. Resiliente e fervoroso, Rui Simeão tem “o sal no sangue”, já que provém de uma família de salineiros que foram passando o testemunho de forma geracional, um valor acrescido da marca. Aqui cresceu, entre marés, sal e maresia e isso traduz-se no seu olhar azul e combatente, de quem lutou de forma ímpar pela defesa da sua dama, a flor de sal, claro está. A partir destes recursos absolutamente naturais, esta é uma salina-modelo, não só devido à sua implantação no terreno numa zona sem poluentes como pelos processos utilizados na produção e colheita.

Inicialmente, os moinhos de maré serviam para moer cereais. Hoje, são 13 hectares com uma localização soberba: o Parque Natural da Ria Formosa, a cerca de 500 metros da barra de Tavira, produzindo anualmente entre 40 a 80 toneladas de flor de sal e entre 800 a 1200 toneladas de sal tradicional. Produzida de forma sustentável, traduzindo a Natureza em estado puro, no ato de recolha a flor de sal é depositada em caixas perfuradas para escorrer e secar na própria salina sendo seguidamente armazenada em armazém para acabar de escorrer.

O sal é extraído durante os meses de Junho a Setembro, pelos marnotos, seguindo os métodos tradicionais, que o vão colocando depois nas barachas das marinhas para secar sendo transportado para os armazéns onde ficará abrigado de intempéries ou poeiras, até ser devidamente embalado sem sofrer qualquer tipo de transformação, para que o consumidor obtenha um produto 100% natural. A ação do marnoto – mestres na arte de extrair sal - é essencial para conseguir a flor de sal (ou coalho, nome pelo qual era conhecida entre os salineiros) e respeitar procedimentos, algo que só a experiência dita, já que os cristais devem ser recolhidos pacientemente várias vezes por dia, de forma a evitar que fiquem pesados e vão ao fundo. É da sua mão-de-obra artesanal, árdua e feita sob o sol intenso, que se torna possível esta iguaria.
Também aqui, Rui Simeão empreendeu toda a sua mestria, criando um coador feito de madeira, rede e bambu “que até os franceses copiaram”.

A presença natural de iodo, proporcionalmente incluído nos cristais deste sal, em quantidades benéficas, e de oligoelementos existentes na água do mar, assim como a ausência de lodos e/ou outras substâncias insolúveis contribuem para a qualidade deste sal. Posteriormente, é selecionado e colocado em embalagens, à mão, para o consumo, sem sofrer qualquer tipo de transformação. As embalagens são revestidas a pano branco cru ou juta, em saquinhos feitos também artesanalmente.

Estas salinas são constituídas por três divisões respetivamente dedicadas à armazenagem da água do mar, evaporação e consequente concentração, de 35 gr. para 280 gr, atingindo 28 º Baumé, bem como, finalmente, a ansiada cristalização e colheita.

Do equilíbrio das várias áreas na otimização da produção e colheita resulta a qualidade do produto, que não esquece ainda a importância do armazenamento e empacotamento, tendo em conta os avanços tecnológicos na pós-colheita, tendo-se procedido a melhorias no transporte e armazenamento avanços científicos mais recentes na qualidade do produto final. Para além da atribuição da Denominação de Origem Protegida (DOP) – pela qual Rui Simeão lutou de forma intensa até conseguir - esta flor de sal de Tavira (e simultaneamente o sal) recebeu pelo quinto ano consecutivo o prémio “Superior Taste Award” (“Sabor Superior”) de duas estrelas atribuído pelo Instituto Internacional de Sabor e Qualidade (iTQi, na sigla inglesa), com sede em Bruxelas, que reúne consagrados chefes de cozinha e escanções. 
É, assim, um dos 920 produtos de todo o mundo premiados pelo iTQi que trabalha em parceria com 12 prestigiadas instituições de culinária europeias e associações de escanções. A Academy of Culinary Arts, a Académie Culinaire of France, a Jeunes Restaurateurs d’Europe, e a Portuguese Chefs Association são algumas dessas instituições.

Detém ainda a certificação da Nature & Progress, em França, com caderno próprio de normas de preparação de salinas, de colheita, armazenagem e controlo de produto final e pela empresa portuguesa SATIVA. “Lats but not least”, recebeu também o prémio europeu AURUM, denominado “Europa – Excellence – Enogastronomic”, que reconhece a excelência do produto “Flor de sal” Tal como a flor de sal, igualmente o sal marinho é não refinado, não lavado após colheita e sem aditivos, apresentando características como grau de limpeza, brilho, humidade e a coloração dependente das condições atmosféricas.

Realçar o sabor natural e dar complexidade

Delicada, crocante, mas ligeiramente húmida, a flor de sal serve essencialmente para realçar o sabor dos alimentos e despertar o palato. A salinidade é um dos gostos básicos que a nossa língua deteta, pelo que adicionar flor de sal faz com que certas moléculas sejam mais facilmente libertadas no ar, o que favorece a sapidez, bem como o aroma dos alimentos. Além disso, o sal também ajuda a suprimir o sabor amargo, sendo também bom a equilibrar o sabor. Para manter a sua integridade, deverá ser utilizada após a confeção, antes de servir, para afinar o tempero e conseguir um sabor mais intenso e complexo.

É gloriosa a temperar saladas ou grelhados, vegetais ou queijos, mas devido à sua versatilidade torna-se também ideal em sobremesas, por exemplo. Caramelo e chocolate combinam na perfeição.
Ao mesmo tempo, a sua delicadeza e fácil dissolução ressalta não só os sabores naturais, como evita as chamadas “pedras” de sal, mais invasivas e menos suaves prolongando o paladar. Isto para além de ter microcristais que facilitam a digestão.

Tem ainda a vantagem de ser mais saudável, mais rica em nutrientes e minerais únicos, podendo ser usada em menor quantidade porque tem um sabor mais prolongado (continua a ter 94 a 98% de cloreto de sódio e também deve ser usada com moderação). Além do sabor, esta “espuma crocante” contém sódio e potássio, nutrientes indispensáveis ao nosso corpo, que contribuem para a regulação osmótica dos fluidos corporais e atuam na condução de estímulos nervosos e na contração muscular. Como os cristais da flor de sal possuem formato e tamanho bastante diferentes dos normais, são mais finos e contam com uma concentração muito maior de outros minerais, o que lhes garante propriedades físico-químicas e um comportamento bastante diferente do sal normal ao entrar em contacto com os alimentos.

No fundo, é como usar água do mar concentrada. Devido ao seu belíssimo aspeto visual, pode e deve também servir de decoração num prato, até porque intocada é a melhor forma de a usar. Não deve, assim, ser levada ao fogo, porque perde a textura crocante e deverá utilizar-se em pouca quantidade devido à concentração. Completamente diferente do sal industrializado, a flor de sal é um produto 100% natural e todo o processo de produção é artesanal, o que faz com que conserve as suas propriedades nutritivas.

Não sofrendo nenhum tipo de processamento químico, nem adição de aditivos, possui aproximadamente 84 elementos que fazem muito bem à saúde, entre os quais iodo, magnésio, cálcio, enxofre, ferro, potássio, sódio, assim como plâncton, krill e restos de esqueletos de pequenos animais marinhos. 

O valor do sal: sema da palavra salário

Inicialmente, dizia-se que a flor de sal só deveria ser recolhida por mulheres, por ser tão delicada, já que o sexo feminino sabia, assim, melhor lidar com ela. Portugal, um país de sol, sempre teve bom sal, e até há bem pouco tempo não valorizava o que tinha de melhor. Mas a fama do sal português é ancestral.

No Algarve, ainda existem salgadeiros datados do tempo dos romanos, o que indica que, nessa altura, já havia produção de sal nessa região. Existem registos históricos desde 2000 anos aC (relativamente 4000 anos época fenícia) onde se constata que o método de colheita era semelhante ao atual.

Velhas salgas e salgadeiras marcam a importância que o sal tinha, não só como moeda de troca mas também para conservar alimentos. A par do azeite, do pão e do vinho, é uma das essências da gastronomia mediterrânica. Plínio já nomeia a flor de sal na sua História Natural e define-a como um bálsamo, atribuindo-lhe ainda qualidades purgativas. Não esqueçamos que um dos molhos mais preciosos na época romana era o garum e liquamen ou laser, aqui confecionado, feito com sal marinho retirado das nossas salinas.

A palavra salário (salarium argentum) significa pagamento em sal. Foi usado como moeda de troca por gregos e romanos, uma vez que os soldados eram pagos com este produto e foi um bem tão precioso que no séc. VI era negociado ao mesmo preço que o ouro. O chamado trajeto  “sal por ouro”, transportado pela Via Saliarium, era a mais importante rota para o império. Outra máxima latina que revela a importância do sal é: “Amicitia pactum salis” (“A amizade é um pacto de sal”), ou seja, um verdadeiro tesouro.
O documento mais antigo referente ao sal português data do ano 959 e trata da doação de terras e marinhas de sal de Aveiro, feita pela Condessa de Mumadona ao Mosteiro de S. Salvador que fundara em Guimarães. Contudo, há evidências de que a exploração salineira no nosso território é bem mais antiga.

Aliás, no reinado de D. João I, a quantidade produzida era tal, que o governo facilitava a exportação para o estrangeiro, como medida de grande conveniência económica e estava isento de qualquer imposto e de portagens, até porque o sal português era considerado de qualidade superior também fora de fronteiras. Em 1532, D. João III ordenou a construção de vinte e oito salinas na região de Tavira, o que dá perfeitamente para aquilatar a sua importância.
No Algarve, existem três áreas de produção de sal e flor de sal de modo artesanal. Para além de Tavira, também em Olhão e na Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António se aproveita sol, mar e as condições naturais para produzir este “ouro branco”. Em Tavira, o litoral tem uma frente de mar de 18 quilómetros e abarca o Parque Natural da Ria Formosa. Se é certo que os portugueses abusam do sal, também, infelizmente, fazem-no com sal refinado, pouco aconselhado, já que é um produto que consiste quase exclusivamente em cloreto de sódio, a que é adicionado dextrose (um tipo de açúcar) e produtos químicos que visam a sua estabilização, passando por altas temperaturas na sua recristalização que também degeneram a sua estrutura orgânica. Por isso, prefira o sal marinho integral, tradicional e artesanal ou a flor de sal, produzidos em pequenas salinas centenárias, utilizando métodos ancestrais. Isto porque é um procedimento 100% natural, sem qualquer processamento, ou uso de aditivos químicos, utilizando somente a água do mar, vento e energia solar.