Já discutimos neste espaço da Revista de Vinhos sobre a esplêndida harmonização das amêijoas-boas Ruditapes decussatus com brancos sem madeira, de boa alcoolicidade e mineralidade. Mas quando agregamos três maravilhosos ingredientes como o alho, o coentro e o limão, a clássica aliança portuguesa para as “amêijoas à Bulhão Pato”, o que muda na visão dos sommeliers?
Há amêijoas e amêijoas. Gostamos daquelas gordas, suculentas, que resistem à mordida na exata consistência e cujo contraponto entre a doçura típica dos bivalves e o salgado marinho é absurdamente perfeito, talvez sensual. Estamos a falar da amêijoa-boa ou “vongola verace” em Itália, que é tanto boa, como verdadeira. Essa ressalva é importante pelo facto de as parentes filipinas e japonesas, também da família de moluscos Veneridae, terem invadido o Mediterrâneo, a nossa costa e os nossos pratos. No mercado de peixe que frequento em Lisboa, vejo-as sempre lado a lado, com preços bem diferentes. Até num restaurante de peixe espetacular na lagoa de Veneza em Itália, uns anos atrás, o empregado teve a audácia de perguntar se queria o “spaghetti con le vongole” - aquele preparo típico e divinal com alho, piripiri seco no azeite, vinho branco e salsinha fresca - com amêijoas da própria lagoa, segundo ele uma “total raridade”, ou com amêijoas filipinas! Um inferno de Dante.
Aprendi com os erros e com o tempo, felizmente, que não é necessário ser nenhum biólogo marinho para reconhecer as diferenças anatómicas para separar o joio do trigo. Embora as cores das conchas sejam muito variáveis intraespécie, as amêijoas-boas costumam ser mais alongadas, anguladas e maiores. As Ruditapes philippinarum são, por sua vez, mais arredondadas e com as ranhuras radiais de crescimento mais marcadas. A maior diferença, e a mais relevante para nós, gastrónomos, está no interior das conchas, no aspeto e no sabor. As “boas” apresentam os dois sifões alongados e independentes, ao contrário dos sifões unidos das estrangeiras. A carne das nossas amêijoas autóctones é mais alva e tenra e tende a ficar mais suculenta com a cozedura no ponto certo. Para mim, isso acontece no primeiro segundo após a abertura das conchas! Por fim, o sabor a mar é mais refinado, o salgado menos agressivo e a “doçura” é superior. Sem falar no caldo que libertam ao abrirem, quando se rendem ao calor dos tachos, de inigualável equilíbrio e retrogosto menos marcado pelo sal.
UM MAR DE UMAMI
No que diz respeito às amêijoas em si, antes de encaixarem os acordes tónicos e aromáticos do alho e do coentro, e o solo estridente em frescura do limão, que compõem a melodia do Bulhão Pato, temos que estar atentos a quatro parâmetros fundamentais dos bivalves para fins de harmonização.
1. Um banho de mar. As amêijoas-boas orgulham-se de ter uma das maiores concentrações de iodo de todos os animais marinhos, até mesmo do que a do bacalhau (120 microgramas por 100 gramas aproximadamente, contra 110), onde é concentrado pelo processo de salga. Cartão vermelho para qualquer tinto na nossa partida enogastronómica, a não ser que alguém aprecie chupar moedas velhas como rebuçados. Essa alta carga de iodo pode metalizar inclusive os brancos e rosados mais fenólicos e mesmo os aportes de taninos elágicos provenientes do amadurecimento em carvalho. Vimos também no artigo sobre a harmonização com os ouriços-do-mar (Revista de Vinhos 344) que, para alimentos tão ricos em iodo, algumas castas como a Riesling, a Alvarinho e a Loureiro, ricas em alfa-pineno, ajudam a carregar os sabores marinhos iodados no retro-olfato.
2. Gordura boa para a saúde, péssima para os tintos. Em termos de gorduras totais, as amêijoas apresentam um baixíssimo conteúdo de aproximadamente 2gr. por 100gr., ainda que uma parte importante dessa gordura seja a poli-insaturada ómega-3, mais do que no salmão, por exemplo. Ótimo para a saúde, complicado para os vinhos que apresentem qualquer teor de ferro significativo, conforme vimos no artigo sobre os ouriços-do-mar. Estes óleos ganham contornos não muito convidativos de “lixo de mercado de peixe” quando encontram até pequenos traços de ferro, algo acima de 5 miligramas por litro, nos vinhos. E em quais? Sobretudo nos tintos - nos quais há o contato com engaços, cascas e sementes, e as uvas sofrem esmagamentos, macerações e prensagens mais agressivas, resultando em teores maiores de ferro - ou em vinhos de solos ricos em ferro, como em alguns padrões de solos vulcânicos, xistosos, etc.
3. Bomba atómica de umami. Com base no altíssimo conteúdo de glutamato das amêijoas, podemos afirmar que os apetitosos bivalves são uma explosão de umami, o quinto sabor essencial. São 210mg. em 100gr. (mais do que nos camarões e o dobro dos ouriços-do-mar). Conforme discutimos previamente na harmonização de vinhos com atum (Revista de Vinhos 345), a presença de umami deixa os vinhos mais amargos, duros e secantes, atenuando a sua fruta e eventual doçura. Realça dessa forma o lado da dureza dos vinhos e atenua o lado da maciez. Por isso, devemos escolher vinhos mais frutados, generosos no álcool e na maciez, e menos tânicos e ácidos com as amêijoas-boas recheadas naturalmente de umami.
4. Uma boa pitada de sal. A sapidez é a sensação proporcionada pelo sabor básico “salgado”, oriundo da presença de sal ou sais nos alimentos ou preparações (Revista de Vinhos 346). No caso das amêijoas e do seu indefetível caldinho de cozedura, estamos a tratar de uma sapidez endógena bem percetível. Para o método italiano de harmonização, no qual me apoio, a sapidez nos alimentos, ao lado da tendência ao amargor e da tendência ácida, deve ser entendida como uma sensação de dureza, contraposta aos elementos de maciez no vinho, a saber, a sua alcoolicidade, untuosidade dos poliálcoois, como a glicerina, e açúcares residuais, quando forem relevantes. A ideia é tamponar o assalto da dureza do sal das amêijoas com a maciez alcoólica ou glicérica do vinho.
Em conclusão, precisamos de lavar a suculência natural das amêijoas-boas e a suculência/untuosidade que normalmente envolve a preparação com o álcool do vinho, nunca com os taninos. Como esse precioso bivalve é riquíssimo em iodo, gorduras poli-insaturadas e umami, qualquer presença fenólica no copo será imediatamente realçada fora do equilíbrio, mesmo que proveniente apenas do amadurecimento em madeira. Procuramos vinhos brancos com boa alcoolicidade, sem carvalho ou, no máximo, com madeira neutra de diversos usos, para não ser denunciada na boca, sem maceração pelicular de preferência, e saber que todos os seus elementos do lado da dureza - acidez, sapidez, mineralidade - serão evidenciados pelas amêijoas na harmonização.
BULHÃO PATO
Para fins de harmonização, ao subir na escala de aromas do prato, também temos que galgar uns degraus acima na escala de aromas do vinho. Castas mais perfumadas, e vinificações que o acentuem, fazem sentido a princípio. Como o alho é refogado, perde a sua capacidade de complicar as harmonizações com qualquer vinho que não seja um rosé muito leve, o que acontece quando é cru. O limão traz também um agradável cariz citrino ao prato, que pode ser ecoado na escolha do vinho; e a sua acidez equilibrada, quando o prato é bem executado, reforçando a necessidade de elementos de maciez no vinho, para seu amortecimento, quando o método da contraposição-concordância da escola italiana estiver em campo. Mas, e quanto aos coentros?
COENTRO, AMADO E ODIADO
Um dos ingredientes mais polarizadores é o coentro. As folhas do Coriandrum sativum, particularmente, despertam sensações totalmente idiossincráticas nas pessoas e mesmo em povos diferentes. Esse facto relaciona-se não somente com a exposição diária ao coentro nas respetivas cozinhas típicas, mas até nos nossos genes. Enquanto alguns adoram as notas verdes, terrosas, amadeiradas e de citrinos das folhas de coentro, outros recebem informações nos seus recetores que associam o aldeído E-(2)-Decenal ao aroma de sabão ou, pior ainda, ao repugnante cheiro de percevejo pisado. Numa pesquisa realizada no Departamento de Nutrição na Universidade de Toronto por Lilli Mauer e Ahmed El-Sohemy, a taxa de aversão ao coentro pode chegar a 17% no grupo étnico caucasiano e 21% nos leste-asiáticos, enquanto que nos hispânicos é de apenas 3%. E este detestar o coentro é hereditário, ainda por cima. Em países como Portugal, Espanha, México, Vietname, Índia ou Brasil, ou mesmo regiões específicas deles, como no Alentejo ou em Espírito Santo, no Brasil, além da familiaridade e exposição constante do coentro às pessoas, os fatores genéticos explicam o seu maior apreço.
Em comparação com a salsa, Niki Segnet, no delicioso “The Flavour Thesaurus: Pairings, recipes and ideias for the creative cook”, brinda-nos com a analogia de que aquela sabe ao verde, à chuva fria, enquanto que o coentro evoca as monções, com terrosidade quente e casca de fruta citrina. De volta às nossas amêijoas à Bulhão Pato, a aromaticidade do coentro para quem o ama (o meu caso com certeza), traz um lado herbáceo quente e terroso, convidativo, que alia muito bem com brancos igualmente dotados de impressões de ervas, especiarias orientais, da própria semente do coentro, e citrinos e telúricos.