Nasci e vivi por mais de 30 anos no estado de Minas Gerais, no Brasil. Desde a descoberta do ouro nos aluviões dos seus rios, nos finais do séc. XVII, que esta linda região colinar no interior do país passou a atrair os colonizadores portugueses, os bandeirantes - filhos de portugueses, outros povos europeus e índios - e os primeiros núcleos de povoamento rapidamente começaram a desenvolver-se. A ligação com a colónia em Minas sempre foi muito forte, para além da questão económica estratégica. Não é por acaso que a região apresenta, muito possivelmente, a mais portuguesa das cozinhas regionais do Brasil, sem de forma alguma menosprezar as influências indígena, africana e dos ingredientes únicos da terra, a amalgamarem-se nas tradições lusas e a contribuírem para sabores e perfumes muito vincados e particulares.
Na minha família cheia de cozinheiras mineiras de mão cheia, as reuniões eram sempre à volta da mesa e dos pratos típicos. Ainda que na altura não fosse um dos meus pratos preferidos, o frango ao molho pardo perfumava as nossas casas e lembro-me com grande emoção da casa histórica do meu avô na vila barroca de Sabará, com a família numerosa a partilhar essa versão da cabidela portuguesa servida com arroz branco à parte e angu fumegante, preparado com farinha ou fubá de milho. O grande diferencial do nosso molho pardo, em comparação com a cabidela, está no uso muito comedido do vinagre, apenas para evitar a coagulação do sangue do animal, não como nota dissonante no acorde do prato.
O vinho, contudo, não fazia ainda parte do nosso “modus vivendi”. O brasileiro e os mineiros bebiam cerveja e cachaça - as melhores aguardentes de suco de cana fresco são do terroir de Minas Gerais. Foi a partir da década de 90 que o vinho virou uma obsessão nacional, pelo menos para os que podem pagar por ele.
Atualmente, o frango ao molho pardo é deliciado com vinhos tintos estruturados e, pela ligação histórica com Portugal, vejo muitos conterrâneos a preferirem um rico exemplar alentejano, dotado de fruta potente e alguma complexidade especiada. Com o surgimento dos primeiros vinhos nascidos em Minas, nas suas serras mais ao sul, nota-se um interesse por estes na escolta dos pratos típicos, o que faz total sentido.
De Minas para a Toscana
Saí das colinas históricas do interior do Brasil e fui estudar vinho e gastronomia nas colinas históricas do centro de Itália, na formidável Toscana, terra da família da minha esposa. O meu sogro Memmo Biadi foi um chefe de cozinha - ou “un cuoco, non un chef” -, como ele gostava de dizer, que teve grande sucesso com os restaurantes em Minas Gerais. A tradição famíiiar na restauração, na província de Pistóia na Toscana, remonta a 1890, e com ele aprendi muito sobre a fantástica culinária da região mais linda de Itália, cujas influências na construção da culinária francesa, através dos cozinheiros levados por Catarina de Médici à corte parisiense, aquando do seu casamento com o rei francês Henrique II, são irrefutáveis.
Enquanto fiz a minha formação profissional em vinhos na cidade de Prato, na Associazione Italiana Sommeliers, achei que seria de inestimável valor estudar cozinha em Florença, uma das capitais mundiais do bem comer (e beber) há muitos séculos. Na antiga Scuola di Arte Culinaria Cordon Bleu, além das técnicas básicas de cozinha, aprendi algumas receitas absolutamente incríveis da cozinha toscana e italiana. Entre elas, e talvez por ser um aficionado por carne de caça, a do “civet”. As preparações em salmì ou civet partem de uma ideia comum de quebrar a dureza das carnes de caça, de pluma ou pelo e enaltecer o forte sabor, com uma vinha-d’alhos de uma noite, que leva, além do vinho tinto, especiarias como o zimbro, pimenta preta, louro e ervas como o alecrim. No dia seguinte os pedaços de faisão, ou lebre, javali, cervo ou cabrito-montês, entre outras maravilhas, são aloirados no azeite e cozinhados em lume baixo, com o acréscimo da perfumadíssima marinada aos poucos. A grande diferença entre o salmì e o civet, é que este último leva no final do cozimento o sangue do próprio bicho para adensar aquele molhinho extraordinário. O sangue era guardado pelos caçadores no fresco, sempre com um pouco de vinagre.
Comi o civet algumas vezes na Toscana e em outras regiões do centro e norte de Itália, acompanhado de polenta mole, acompanhado pelos grandes vinhos de estrutura das suas regiões: Brunello di Montalcino e Chianti Classico Riserva na Toscana, Barolo e Barbaresco no Piemonte, Amarone no Vêneto. Essa bomba de sabor de caça, vinho e especiarias, com um subtilíssimo toque de vinagre no fundo, de aparência negra e viscosa, pede vinhos muito ricos e complexos para uma harmonização nas alturas. Sem falar nas proteínas presentes no sangue, como a albumina do plasma, que amortece de forma eficaz os taninos destes tintos portentosos. Curiosamente, algumas pessoas acrescentam, sem irem para o inferno de Dante, cacau em pó ao invés de sangue na finalização do civet, para emular o aveludado negro e lustroso do sangue, e conferir um sabor menos selvagem, menos metálico (do aldeído trans-4,5-epoxi-(E)-2-decenal), mais adocicado e “domado” ao prato. Não era o caso do meu saudoso sogro, que executava um molho pardo mineiro ou um civet de lebre toscano, com igual maestria, muito sangue e paixão.
A cabidela do sangue e do vinagre
Habituado às referências de duas regiões apreciadoras do sangue no prato, confesso que fiquei um bocado assustado quando provei pela primeira vez a famosa cabidela portuguesa. Não que não tenha apreciado o prato, mas o choque do vinagre como um dos protagonistas foi uma surpresa que, de imediato, pôs-me a raciocinar sobre a sua relação com o vinho na harmonização.
Já discutimos algumas vezes neste espaço da Revista de Vinhos sobre a questão da acidez num prato ou alimento, e como ela pode interagir com a acidez do vinho. Para a esmagadora maioria das escolas de harmonização, mas não para a italiana, a acidez de um vinho deve ser igual ou superior à acidez de um prato. A ideia por trás deste axioma é de que, se um vinho é menos ácido que o prato, ele parecerá “mole”, sem brio, no seu confronto.
Ao contrário, a forte escola enogastronómica italiana, a primeira a desenvolver um método técnico-científico de harmonização, apregoa que os elementos de dureza de um prato: tendência ácida, tendência amarga e sapidez, devem ser contrapostos a elementos de maciez do vinho, com o fito de amortecer, ou dirimir, essa sensação de dureza, ou aplainar as arestas da aliança entre prato e vinho. Os elementos de maciez de um vinho estão ligados à sua composição alcoólica, glicérica, à riqueza da sua fruta, e, por último, à doçura propriamente dita em vinhos desta tipologia.
Em síntese, e voltando ao nosso caso da cabidela portuguesa, bastante marcada olfativamente pelo volátil ácido acético e, gustativamente, pelo sabor fundamental da sua acidez, é bem provável que, em qualquer livro ou opinião na internet que o leitor consulte sobre este casamento, a escolha recaia para um estridente Vinhão do Vinho Verde, não somente porque é a tradição destas terras de cabidela mas porque, tecnicamente, a acidez cortante do Vinhão está em níveis equivalentes ou ainda acima do prato. Se respeitarmos, por outro lado, os preceitos da escola italiana, vamos ter que pensar de uma forma diametralmente diferente, e escolher vinhos cujo equilíbrio pende para a maciez da fruta madura, do bom nível alcoólico, da untuosidade glicérica e, às vezes até, de um toque de doçura residual, para tamponar o assalto ácido da cabidela na boca.
Ao longo de 26 anos de carreira no vinho, fiz incontáveis vezes este teste de harmonização de pratos ácidos por concordância, como advoga a maioria das escolas, ou por contraposição, como defende a escola italiana. “Gostos não se discutem, mas aprendem-se”, reza a máxima. Se o objectivo é um casamento harmonioso, que complemente as virtudes do outro, o método italiano é o meu preferido: acidez no prato deve encontrar elementos de conforto no vinho. Ainda assim, e sempre aberto a novas perspectivas, fui para os testes do mês munido com alguns vinhos de dureza, e não somente de maciez, para enfrentar uma bela cabidela: ossos (ou sangue) do ofício.
Testes
Incapaz de ir a Vila Verde, no Minho, o terroir do frango criado em casa, ou “pica no chão”, ainda assim consegui provar uma cabidela memorável no restaurante O Transmontano em Oeiras, com 30 anos de tradição e uma referência da boa cabidela na área metropolitana de Lisboa. Afinal, a D. Carminda, cozinheira há 40 anos, é de Vila Verde! Ressalto o ponto muito bem conseguido do arroz, do tipo carolino, conforme confidenciou o Sr. José. O frango era muito saboroso, do campo, e a cabidela estava impecavelmente aveludada pelo sangue, com o vinagre a marcar a tipicidade do prato, mas sem obliterar todo o resto da preparação.
Vinhos da Dureza
Vinhão Adega Ponte de Lima 2019 (Vinho Verde)
Um Vinhão muito típico e selvagem, com taninos adstringentes e acidez nas alturas. Essa é a harmonização clássica para a cabidela e percebo muito bem o porquê, pois o vinho “lava” completamente o palato revestido pelo aveludado da cabidela. Mas e o diálogo, a interação neste casamento? O vinho pareceu-me ainda mais ácido do que já era, pelo realce sinérgico de um elemento de dureza no prato e no vinho. Para mim foi a pior das harmonizações propostas, a pensar do lado técnico, embora compreenda muito o lado emocional deste casamento regional de dois elementos de feitio muito similar e explosivo.
Sou Zão Campolargo (Bairrada)
Trouxe esta versão um pouco menos monocórdica de Vinhão, um Sousão do emblemático produtor bairradino Campolargo, para ter certeza de que prefiro maciez do que dureza no vinho, quando temos pratos pendentes à acidez. Primeiro, adorei o vinho! Um Sousão selvagem, já com mais complexidade, taninos firmes, mas menos adstringentes, e, por incrível que pareça, com notas de sangue no olfato! Aqui o casamento foi mais interessante, não foi só “lavar a cabidela abaixo”, havia também um certo diálogo aromático, mas a acidez protuberante do vinho mais uma vez chocou de frente com o vinagre do prato e ambas saíram do equilíbrio. Porque será que as cervejas, bebidas de baixíssima acidez, resultam maravilhosas com pickles, rollmops e outras bombas ácidas da cozinha germânica?
Vinhos da Maciez
Fernão Pirão Quinta da Lapa 2019 (Tejo)
Um branco de curtimenta, à moda antiga, com o imenso carácter da Fernão Pires e um toque fenólico “à la orange wine”. Queria testar um branco, mas precisávamos, para um prato tão rico e negro como a cabidela, de um branco potente, de forte compleição, com uma acidez moderada, e algo de taninos para as proteínas do sangue. A ideia resultou muito bem. Não foi a harmonização campeã do teste, mas fiquei surpreso com a audácia do vinho perante a índole do prato. Finalmente, o equilíbrio do vinho mais à maciez ajudou a acolchoar o ataque ácido da nossa cabidela. A provar essa harmonização curiosa!
Conde de Vimioso Reserva 2017 (Tejo)
A opção vencedora para quem gosta de harmonizações tecnicamente imaculadas e mais clássicas no perfil. Um grande tinto do Tejo, de uma das vinhas mais lindas de Portugal, em solos de puro calhau rolado, com grande concentração, fruta de imensa qualidade e densidade, e um aveludado extraordinário dos seus nobres taninos. Uma maravilha com a cabidela, dos aromas aos sabores, sem falar na fusão de texturas e no perfeito acolhimento da acidez do prato pelo álcool de 14,5º gr./lt. do vinho. A maciez, em contraposição à pontiaguda dureza gustativa da cabidela, naquele “sweet spot” impecável.
Porto LBV Kopke 2013
Logo atrás, em segundo lugar, veio esse casamento “yin-yang” inesperado. Levei esta garrafa de improviso antes de sair para o restaurante, para ver o efeito que um grande LBV, com todos os elementos de maciez nas alturas, incluindo os açúcares de um Porto, ofereceria no altar ao lado de uma cabidela. Fiquei pasmo com o resultado. A acidez do prato foi tão aconchegada pela maciez do vinho que a cabidela parecia um molho pardo mineiro e o belo LBV, normalmente apreciado como um “after dinner” com queijos ou sobremesas, teve o seu imponente lado macio tão amenizado pelo prato, que parecia ser um tinto de mesa, não um vinho generoso. A prova cabal, para mim, de que a acidez é um elemento de dureza na mesa que agradece a contraposição da maciez dos vinhos.