Uva e cacau. Uma gosta dos sítios temperados outra dos tropicais, mas ambas possuem castas e clones, refletem as características do local de plantio e, depois de fermentadas e trabalhadas pela genialidade humana, saciam o nosso espírito com o vinho e o chocolate. Prová-los lado a lado é uma indulgência que pode ser memorável, desde que atentemos alguns pormenores.
O chocolate é um alimento desafiador no aspecto visual, reconfortante e complexo nos aromas, voluptuoso na textura, viciante na bondade. Originário da fermentação e torrefação das amêndoas do cacau, acrescido por vezes de açúcar, leite e baunilha, os principais ingredientes do chocolate moderno, desenvolve uma paleta de aromas impressionante, na qual podem fazer parte cerca de 1.500 compostos olfativos. Dependendo do “terroir” e da casta do cacau, além do processo de feitura, os descritores podem transitar entre os frutados do mirtilo ou os citrinos da toranja ou, ainda, entre os frutos secos (figos, tâmaras e ameixas), frutos de casca rija, pelas especiarias várias, doces, pelas impressões amadeiradas de cedro ou pinho, florais de cravo e rosmaninho, de raízes como o alcaçuz ou de padaria e cereais, ou derivados da cana como o melaço, ou empireumáticos associados à torrefação, entre muitos e muitos outros.
A composição de um chocolate de leite padrão gira em torno de 50% de açúcares e 35% de gordura (melhor quando esta é da própria manteiga de cacau), tornando-o uma fonte assertiva de energia e arrebatadora no “mouthfeel” – a presença de boca. Logicamente, os chocolates negros possuem um percentual maior de licor de cacau – não o licor alcoólico, mas uma pasta espessa obtida da moagem da carne das amêndoas do cacau (nibs) – e podem variar de pouco amargo (35% a 50% de licor de cacau) a muito amargo (75 a 85%, por vezes ainda mais).
Toda esta riqueza aromática, de doçura e de capacidade de revestir o palato com gordura fundente, impõe uma conduta na escolha do vinho a harmonizar com o chocolate, independentemente das mais variadas modalidades e possibilidades de preparo.
A escola de sommellerie ensina que o nível de estrutura de um vinho deve concordar com o nível de estrutura do prato, neste caso, poderosa. Também apregoa que o nível de doçura de um alimento deve encontrar respaldo no nível de doçura do vinho, para que aquele não desnude o lado da dureza deste e mantenha-se íntegro no equilíbrio. Que ambos os nubentes, vinho e alimento, sejam igualmente complexos e persistentes, com perfis olfativos em sintonia e que o amargor (sensação de dureza do chocolate) encontre aconchego na maciez doce-alcoólico-glicérica do vinho. Finalmente, que a principal gordura do chocolate, a manteiga de cacau, sólida na temperatura ambiente mas líquida na temperatura do corpo humano, tenha a opulente untuosidade enxuta por um teor alcoólico avantajado – ou taninos, ainda que estes possam chocar com o amargor do chocolate – do vinho que se escolha.
Para os portugueses, mais do que para qualquer outro povo, é fácil perceber qual o estilo de vinho assim intenso, poderoso, complexo, alcóolico, doce, macio e persistente…
Temos que evitar a todo custo vinhos secos e leves em corpo com o chocolate, para não infringirmos as seguintes regras de concordância da harmonização: dar estrutura à estrutura e doçura à doçura. Em termos de perfil aromático, os brancos normais, não-oxidativos, e os rosados não falam essa língua, que é mais negra também no espetro de aromas. A tipologia vencedora é, sem dúvida, a dos vinhos tintos ou dos vinhos assumidamente oxidativos, fortificados com álcool e dotados de açúcar residual. Algumas raras exceções serão discutidas adiante.
Chocolate negro
Quanto mais rico em concentração percentual da pasta obtida da moagem da carne das amêndoas do cacau, o licor de cacau, menos açúcar deverá conter o chocolate e também mais intensidade de sabor e amargor. Devemos então subir degraus na riqueza do vinho. Dentro do universo dos vinhos do Porto, por exemplo, poderíamos provar um Ruby Reserva com um chocolate 50% de cacau e propor um “upgrade” para um Late Bottled Vintage com um chocolate 75%. Aqui temos que ter cuidado com os chocolates acima de 75%, os quais podem ser muito concentrados e amargos e, ao mesmo tempo que clamam por concentração nos vinhos, a sensação gustativa de dureza “amargor” pode chocar com os taninos de um exemplar muito estruturado, como um Porto Vintage jovem.
Chocolate de leite
O chocolate de leite, por regra, deve conter no mínimo 14% de alguma forma de leite na composição: leite fresco, em pó, condensado, nata, manteiga ou matéria gorda láctea. A concentração de matéria seca de cacau é menor do que no chocolate negro e o conteúdo de açúcar deve ser maior. Menos rico aromaticamente e menos concentrado em cacau, ainda que decisivamente mais doce, esta forma mais consumida do chocolate elimina quase que totalmente os vinhos secos. Dentro das tipologias do Porto, podemos transitar entre o Ruby e o Tawny básicos e, nesta última família, chegar a um Tawny 10 Anos, quando o chocolate for mais intenso.
O não-chocolate branco
Tecnicamente, o chocolate branco não leva licor de cacau e, por isso, não apresenta mínimos legais de matéria seca de cacau. É elaborado a partir de manteiga de cacau, açúcar e no mínimo 14% de matéria seca de leite. Se não é propriamente um chocolate, as leis da harmonização aqui funcionam também de outra maneira. Mormente muito doces, essa versão “em negativo” do chocolate descarta qualquer vinho seco. Mas como não possui o perfil complexo e o espetro negro de aromas do chocolate verdadeiro, alguns vinhos brancos de colheita tardia, botrytisados, moscatéis tardios ou fortificados, Portos rosados ou mesmo espumantes da categoria “doux”, acima da “demi-sec” em doçura, podem funcionar. Um dos melhores colheitas tardias de Portugal, o excelente Casal Sta. Maria Petit Manseng, fica divinal com uma mousse de chocolate branco com ananás em compota, mas dificilmente teria um casamento de sonho com qualquer sobremesa à base de chocolate negro.
Nós, sommeliers, gostamos de criar regras facilitadoras para escolhermos vinhos para harmonização em momentos de pressa ou pressão, típicos do nosso ofício. Em termos de sobremesas à base de chocolate, uma facilitadora dicotomia é separá-las entre as que sublimam-se com vinhos fortificados semelhantes em expressão de frutas negras/vermelhas típicas de um Porto Ruby e as que dialogam melhor com fortificados mais oxidativos, madeirizados e com frutos secos como encontramos num Porto Tawny (ver caixas).
Outras opções?
E há alguma hipótese para os não fortificados?
Curiosamente, alguns profissionais da harmonização gostam e sugerem o casamento dos chocolates negros, por isso menos doces, com alguns tintos secos não fortificados, mas generosos no álcool e na maciez. Este sommelier mesmo já viveu algumas experiências positivas com um alcoólico Zinfandel norte-americano ou com um Pinot Noir estilo “bomba de fruta” do Novo Mundo, nada ácido ou austero nos taninos, ou ainda com um Primitivo com este perfil de equilíbrio orientado para maciez, da Apúlia italiana. Em Portugal, resultados similares podem ser logrados com alguns vinhos tintos alcoólicos, de fruta muito madura e notável maciez, da região de Setúbal.
Em algumas sobremesas à base de chocolate e frutas ou flores vermelhas, mas obrigatoriamente muito delicadas na estrutura, certos espumantes tintos aromáticos e doces podem surpreender, como um floral Brachetto d’Acqui ou um explosivamente frutado Lambrusco Reggiano Dolce, ambos italianos, e até mesmo um seco generoso na fruta como um Sparkling Shiraz australiano.
Vinhos da categoria passificados ou passiti, muito típicos da península italiana, também ostentam carácter vincado e força alcoólica para encarar sobremesas mais ricas de chocolate. Ótimos exemplos são os Recioto della Valpolicella da região do Veneto (sobremesas da família Ruby) e o Vin Santo Occhio di Pernice (sobremesas da família Tawny).
Mas, já que estamos no país campeão mundial na tipologia dos vinhos fortificados, porque não apostar na já consagrada união de corpo e alma destes vinhos riquíssimos em história e sabor com os inebriantes chocolates?