Portugal distingue-se na riqueza do receituário suíno e no domínio da execução do mesmo. E pela variedade de vinhos de todas as tipologias e estilos, do norte ao sul do país, para um encaixe perfeito com estes pratos.
Como profissional da enogastronomia há décadas, tive a prerrogativa de provar uma multiplicidade de carnes nas mais inimagináveis preparações que o génio glutão do homem veio a conceber. Mas cabe-me confessar que cada vez mais amo a “prosaica” carne do porco, do seu lombo à sua incomparável gordura, passando pelo seu focinho, orelha, pezinho, joelho, sangue, miolo, fígado e pulmão, em todas as suas formas de preparo.
Numa despretensiosa analogia com o vinho, parece que é nas condições edafoclimáticas marginais, ou no sofrimento da uva, que nascem os grandes brancos e tintos. A abundância de recursos como água, nutrientes, calor e luz solar originam vinhos sem grandes virtudes. Das adversidades nascem as maiores emoções.
Desde as primeiras civilizações o porco domesticado é um dos principais esteios da alimentação e base das suas sobrevivências, principalmente porque os suínos comem o que lhes dão, uma capacidade mágica de transformar restos e lixos em carne e gordura de altíssima qualidade. Pelo seu aspecto gordo e afeito à sujidade o porco foi injustamente condenado por alguns povos e religiões.
Para outros, a carne, os enchidos, os presuntos e tantas outras iguarias fabulosas são parte indissociável da sua cultura gastronómica e do porco aproveita-se absolutamente tudo. Um dos lugares onde vivi, onde as pessoas eram alucinadas com o porco e dominavam o seu preparo, foi na Toscana, em Itália. O fígado do porco envolto no seu redanho e confitado na própria gordura, depois assado e apreciado com um Chianti cheio de frescura e rusticidade, é um exemplo do aproveitamento total do porco (e do vinho local). Portugal é felizmente outro país que, para mim, distingue-se na riqueza do receituário suíno e no domínio da execução do mesmo.
É inconcebível para qualquer enogastrónomo que se preze passar por esta vida sem devorar atentamente um “leitão da Bairrada”, a perfeição da simplicidade. Ou mesmo conhecer as nossas alheiras, farinheiras, secretos de porco preto, presunto de porco preto, cabidela, cachola, pezinhos de porco de coentrada, carne de porco à alentejana com amêijoas e tantas outras maravilhas clássicas portuguesas. Afortunadamente há vinhos de todas as tipologias e estilos, do norte ao sul de Portugal, para um encaixe perfeito com estes pratos.
A porcaria das generalizações
“Este vinho combina com carne de porco”. Assim mesmo estava escrito no contrarrótulo de um tinto que abri outro dia. Se, por um lado, as generalizações, quando o assunto é harmonização, ajudam os leigos a não incorrerem em erros crassos, por outro vamos percebendo com o tempo que elas afastam-nos as harmonizações ideais, aquelas de arrancar suspiros e perpetuarem-se nas lembranças. De todas as carnes mais usuais, alegadamente é a suína que menos agradece as generalizações. Isto porque está no meio do espectro estrutural de sabor, o qual vai do muito delicado do peixe, como o linguado, até ao sabor explosivo da caça, como o veado. Ou seja, na zona central da escala de estrutura, à qual temos que buscar equivalência na estrutura do vinho, cada parte do animal, ou melhor ainda, a cada receita de porco, temos uma proposta de vinhos a considerar. Por exemplo, um lombo de porco branco grelhado, acompanhado por frutas assadas, fica delicioso com um branco volumoso e texturado, como um Viognier da região de Lisboa. Deslizando para cima na régua da estrutura até um lombo suculento de porco preto, alimentado no campo com bolotas, servido com um arroz de feijão, precisaremos de um tinto de estrutura, com bons taninos, força alcoólica e acidez, tal como um alentejano de Portalegre.
Embora seja vasto o leque de estrutura das preparações com a carne de porco, de modo geral o sabor da carne é marcado pela presença de lactonas, grupo de moléculas ativas de ésteres também presentes nas barricas de carvalho, ou em frutas como o coco e o alperce. Não é à toa que um porco assado seja tão bem escoltado por uma compota de alperce, ou por vinhos brancos ricos em aromas de drupas e de passagem em madeira, como o Viognier ou mesmo um Alvarinho fermentado em carvalho.
Mas o tema deste artigo são as preparações do porco à potência máxima. É necessário, então, procurar um perfil de vinho mais intenso e concentrado, ainda que não os tintos mais potentes do fim do espectro estrutural, os quais por sua vez alinham-se com as carnes de caça, borrego ou cabrito.
Os vinhos da “lavagem”
Para fazer frente a receitas literalmente viscerais de porco, como a cabidela da Bairrada ou a cachola alentejana, temos de subir alguns degraus de estrutura e passar dos vinhos brancos aos tintos. Esses pratos fabulosos, explosivos e profundos no sabor a sangue e vísceras de porco, a alho e especiarias, com uma textura gordurosa que emplastra o palato, pedem vinhos igualmente rústicos ou selvagens, marcados pela combinação de uma acidez revigorante, de taninos de uma certa aspereza, de sapidez mineral ou mesmo de efervescência. Em suma, vinhos que “lavem” a boca e deixem o conjunto menos pesado e cansativo.
Espumantes tintos - ou no mínimo rosados encorpados - resultam muito bem com estes pratos do dia da matança do porco e mesmo com a igualmente avassaladora feijoada brasileira. Um espumante tinto bruto das Caves São João da Bairrada, um Lambrusco seco de qualidade como o Concerto do produtor Medici Ermete, ou mesmo algum Sparkling Shiraz australiano, combinam os poderes de força, aspereza e vibração para comermos o dobro do que comeríamos sem um vinho detergente.
Outro vinho incontornável nesta proposta de lavar pratos ricos, neste caso sem o auxílio do gás carbónico, é um belo Vinhão ou Sousão do Minho ou do Douro. Neste caso, prefiro os mais crus, não polidos pela enologia moderna, como o Vinhão sem sulfitos da Quinta da Palmirinha. Perfeito com as lampreias à bordalesa, também não se faz de rogado quando convocado a encarar uma fumegante cachola de porco. Eis uma harmonização em que vinho e prato juntos engendram emoções maiores do que quando provados “per se”.
A lista destes vinhos que detergem é longa, para a felicidade dos glutões inveterados. Dos vinhos Baga mais simples da Bairrada, às vezes duros demais para uma bebida descomprometida, passando, do lado de lá da fronteira, para os vinhos pulsantes de Bierzo, ou os menos extraídos da Ribera Sacra, chegando aos incríveis vinhos da controversa região de Beaujolais em França, apenas para citar alguns campeões. Os crus de Beaujolais nas mãos dos seus produtores mais inspirados, Marcel Lapierre, Guy Breton, Jean-Paul Thevenet, Jean Foillard, Georges Descombes, Joseph Chamonard, Dominique Piron, entre outros, transbordam em fruta vibrante, verve, mineralidade granítica e gabam-se dos taninos deliciosamente rústicos da Gamay, por vezes menosprezados pelos partidários da Pinot Noir.
Recentemente fartei-me de comer a cabidela do Mugasa na Bairrada, ladeada pelos espumantes e tintos incríveis das Caves São João. Harmonização tão fascinante que pediria de presente nos meus anos. Também acompanhei com um Fleurie incrível do Yann Bertrand umas tirinhas de porco preto no churrasco com arroz de feijão, numa pequena tasca de Lisboa. Ode ao porco e à uva que, de tão pouco, podem suscitar tamanho prazer!