Harmonização: Vinhos para a perdiz

Fotografia: Arquivo
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

As caças ligam maravilhosamente com o vinho. Muitas delas alimentam-se das uvas no campo, depois são marinadas no mosto fermentado destas uvas para serem preparadas na cozinha, e finalmente casam divinalmente com o vinho, sublimando-se na refeição.

 

Dia da caça, dia do caçador. Chega a temporada de regozijarmos com os sabores vincados, 
das espécies cinegéticas que habitam os nossos campos e bosques. Uma alegria para os enogastrónomos “hardcore”, que não abrem mão de acossar nos restaurantes especializados todos os bichos possíveis e pares ideais, entre brancos e tintos.
As caças ligam maravilhosamente com o vinho. Muitas delas alimentam-se das uvas no campo, depois são marinadas no mosto fermentado destas uvas para serem preparadas na cozinha, e finalmente casam divinalmente com o vinho, sublimando-se na refeição. Logicamente, cada caça é um caso, e para cada caso, uma proposta diferente de vinho.


Entre as diversas espécies de perdiz, a mais caçada e por conseguinte a mais presente nas cozinhas de Portugal é perdiz-vermelha ou perdiz-comum (Alectoris rufa). Inconfundível no aspecto galináceo arredondado e na linda plumagem com a garganta branca orlada de negro, o ventre ruivo, além do bico e das patas vermelhas. Vive em todo território nacional, embora sendo escassa nalgumas zonas litorais. Alimenta-se de sementes e plantas, insetos e até moluscos e outros invertebrados. O peso chega a atingir 700 gramas. Em termos de sabor, a perdiz brava ostenta um distinto paladar de caça, próximo ao do faisão nas notas florestais de cogumelo e castanhas, porém mais refinado que outras aves de carne mais escura que sabem a sangue e fígado (patos, pombos, rolas). Não estranhamente é alcunhada de “rainha das caças pequenas”. O sabor pode ser aguçado pelo processo de “faisandage” ou maturação “post mortem” sem remoção das penas. Muito comum na França e na Itália (frollatura), é levado a cabo para provocar uma degradação enzimática da carne das caças, amaciando-as e realçando-lhes o sabor. Sem fornecimento de oxigênio, o glicogénio presente na carne é transformado em ácido láctico, baixando então o pH e conferindo aquele típico toque acre. Outra característica da carne da perdiz é que o peito pode ressecar nalguns preparos culinários, menos na perdiz brava do que na perdiz de cativeiro.


A primeiríssima regra da harmonização vinho/alimento é escolher um vinho que esteja no mesmo nível de estrutura de um prato ou vice-versa. Parece simples, mas muitas vezes os casamentos falham pois há um monólogo na interação entre os lados. Inicialmente, temos que levar em consideração para regular a estrutura do vinho a clássica segmentação entre “caça de pena” e “caça de pelo”. De um modo geral, as caças de pena tendem a ter menor intensidade de sabor e estrutura do que as caças de pelo. Inclusive no preparo culinário. E entre as caças de pena, possivelmente as perdizes são as que apresentam o sabor mais delicado, ainda que decididamente mais rico que uma galinha do campo, por exemplo. Podemos dessa forma transitar entre os brancos encorpados, os rosados de refeição e os tintos de estrutura leve a mediana, com a perdiz. Tintos muito tânicos devem ser evitados a qualquer custo, não somente por questões estruturais, mas também para evitar um choque com uma carne que não prima pela suculência ou untuosidade, mormente na região peitoral. Em relação ao perfil olfativo dos vinhos aspirantes à harmonização, recomenda-se que tenham complexidade, mais “savoury” nas impressões de condimentos e cogumelos do que “direcionados à fruta” e, finalmente, que tragam as notas de chão de bosque no outono ou o famoso “sous-bois” dos franceses: as caças agradecem quando encontram no vinho o território. O envelhecimento em garrafa pode favorecer o desenvolvimento destes matizes outonais.
 
Os testes

Levei alguns vinhos com este perfil ao restaurante Sem Dúvida, em Lisboa, que nos esperava com a perdiz brava preparada de duas maneiras: de escabeche e estufada no tacho com castanhas, cogumelos silvestres e cebolinhas. O sommelier Manuel Moreira e outros amigos “experts” dividiram comigo a mesa e as discussões.


O Tapada do Chaves branco 2007, grande clássico de Portalegre, foi pensado pela notável estrutur, e por não ter uma acidez proeminente no equilíbrio, a qual chocaria com a acidez do escabeche. Os aromas eram maduros, com tostados, mel, casca de tangerina confitada e algo de cogumelos. Ficou absolutamente espetacular com o escabeche de perdiz. A boca governada pela maciez alcoólica-glicérica-frutada aconchegou a aresta ácida do prato, e o diálogo de aromas fluiu na perfeição, no mesmo nível estrutural.  Este grande branco ainda acompanhou com louvor a perdiz com castanhas no tacho, embora aí os tintos de “sous-bois” tenham estabelecido uma conversa de mais alto nível.
O Vosne-Romanée Domaine Méo-Camuzet 2009 é um belíssimo Borgonha de um prestigioso domaine, do solarengo ano de 2009. Revelava uma fruta contida, permeada por impressões telúricas, de cogumelos secos, especiarias picantes e caixa de incenso. Prova de que as regras da harmonização não podem ser negligenciadas, este grande vinho ficou devastado no confronto com o escabeche de perdiz. A acidez do prato roubou toda a maciez do vinho, que tornou-se subitamente angular, duro e amargo. No entanto, com os perfumes outonais do tacho de perdiz com castanhas, a untuosidade do molho para encaixar os taninos, a tendência ao doce das castanhas e cebolinhas para aconchegar a acidez, o Vosne-Romanée transfigurou-se em algo esplendoroso, engendrando um conúbio realmente divinal.


O Terrenus Amphorae Fermentado em Talha 201, um tinto alentejano de talha, certamente um dos melhores nesta proposta, foi pensado pela estrutura mediana, bons taninos e lado agradavelmente rústico e barroso. Dos tintos foi o único que não sucumbiu à acidez do escabeche. O equilíbrio pendente à maciez da fruta amainou o assalto ácido do prato, mas o perfil olfativo do vinho não propiciou uma conversa agradável, um casamento deveras harmónico. Se não perdeu, também não encantou. Com o tacho de perdiz, o Terrenus logrou outro casamento técnico sem maiores ressaltos, embora aqui a fruta a protagonizar o perfil aromático também não tenha sido congruente com o carácter visceral, outonal, “decadente” da caça. 
O Bairrada Reserva Quinta do Poço do Lobo 1995, um grande tinto da escola tradicional, telúrico, complexo na expressão de fruta negra, na madeira velha, nas especiarias, quina e tabaco. A austeridade gustativa foi fatal com o escabeche e sobrou apenas o lado da dureza na boca. O perfil profundo dos aromas fechou muito bem com a perdiz com castanhas no tacho, mas a estrutura do Bairrada superou a do prato, falha na regra número 1 da harmonização vinho/alimento. Os taninos magníficos deste vinho encontraram respaldo nas coxas suculentas e untuosas da perdiz, mas ficaram granulados quando encararam a carne rugosa do peito, uma pena.


Por fim, o Quinta de Lemos Dona Louise 2005, grandioso vinho do Dão com muita vida ainda pela frente, já revelava notas florestais por detrás das groselhas e amoras negras muito maduras, das azeitonas pretas, das especiarias várias e do alcaçuz. Alicerces de taninos e frescura bem equilibrados pela concentração de fruta, embora tenham ficado totalmente expostos quando atacados pela acidez do escabeche. Tal como o Bairrada, este vinho estava a um nível estrutural acima da perdiz no tacho. 
Como vimos, fica patente que a ave de linda plumagem aceita vinhos tintos de corpo mediano, no máximo. Este incrível Dão faria par perfeito com um arroz de lebre com sangue ou uma chanfana de javali, mas aí já é tema para outra prova.