Nascida numa pequena aldeia na Serra de Santo António, no centro de Portugal, Helena Loureiro lidera hoje dois restaurantes em Montreal, no Canadá, onde rejeita qualquer tipo de gastronomia que não seja a tradicional portuguesa. Antes da pandemia, as suas equipas perfaziam quase a centena e meia de trabalhadores. Mantém ainda assim a mesma energia e garra de há 30 anos, quando saiu de Portugal pela primeira vez. E tem também um dos restaurantes mais curiosos do mundo, com uma vista dinâmica sobre a cidade de Montreal, num prédio rotativo.
A entrevista começa já tarde em Portugal mas bem cedo no Canadá. Não é um problema para Helena Loureiro que conversa com a Revista de Vinhos já a partir de um dos seus dois restaurantes. A energia e o ritmo são entusiasmantes e transbordam qualquer barreira digital. E fazem entender o que estava na cabeça da muito jovem Helena, com apenas 21 anos, na Serra de Santo António, há três décadas. “Terminada a escola, percebi que a minha aldeia seria pequena para as minhas ambições”, começa por dizer a chefe. “O meu sonho era viajar, conhecer o mundo. Ficava fascinada quando via Nova Iorque nos filmes. Queria conhecer”. E foi exatamente isso que fez. Já lá vamos. Para já, interessa perceber que a gastronomia já era um denominador comum desde os 11 anos, idade em que começou a trabalhar no restaurante “Rosa”, nas grutas de Santo António. O restaurante era da família e lá trabalhavam a avó Maria Benvinda, a tia e ainda uma prima. Foi lá onde deu os primeiros “pontapés nas cebolas” e onde também admirou o trabalho da avó, uma “excelente cozinheira”.
Terminados os estudos e recolhida alguma experiência de trabalho em Portugal, foi tempo de cumprir sonhos. “Conheci finalmente a Nova Iorque que tanto desejava conhecer. E depois fui ao Canadá, onde tinha uma prima que vivia em Montreal. Visitei várias cidades do país mas foi em Montreal que me senti melhor por ter um espírito europeu forte”, recorda a chefe que demorou pouco até se inscrever no Instituto de Hotelaria do Québec. Profissionalizou-se, fez alguns estágios, sempre em restaurantes portugueses e depois foi mãe. “Eu faço tudo muito rápido. Tive dois filhos no mesmo ano, separados por apenas 11 meses. E aí tive de tomar uma decisão para conseguir conciliar a vida familiar com a vida profissional. E comecei a trabalhar na cozinha de um jardim-escola. O equilíbrio perfeito”, conta Helena Loureiro pois era lá onde estavam os seus filhos. Foi fazer uma substituição por doença e recorda-se bem da primeira tarefa que lhe incumbida. “Tive de fazer uma salada. Mas quando chegou o momento de a temperar, não havia nada ou quase nada. Então usei umas gotas de limão e ainda um vinagrete que estava lá. A salada foi um sucesso. As pessoas no jardim-escola ficaram encantadas. Costumo até dizer que foi aquele tempero o responsável pelo meu emprego durante 12 anos, o tempo total que lá trabalhei”, recorda, entre risos, a portuguesa.
Primeiro restaurante em nome próprio
A ambição de Helena mantinha-se intocada. E para isso era preciso trabalhar no duro. Continuava na cantina do jardim-escola mas fazia part-times à noite em restaurantes portugueses e começava a ter pequenas participações em programas televisivos no Canadá. Em 2003 cumpriu um objetivo grande: abrir o primeiro restaurante em nome próprio: o Portus Calle. 12 anos depois, mudou de morada, para o centro e agora chama-se Portus 360, “com a melhor vista da cidade”, descreve Helena Loureiro. “Estamos num prédio rotativo e os clientes têm a oportunidade única de numa 1h30 percorreram toda a panorâmica a 360º da cidade, sem saírem da sua mesa e dos seus lugares. Em 2012 abriu ainda um segundo restaurante, o “Helena”, no centro da cidade e ainda uma loja de produtos gourmet que trabalhava o mercado da saudade, “O Cantinho de Lisboa”. Vendia um pouco de tudo, de louça tradicional a azeite. Em novembro último teve uma oferta irrecusável pela loja e vendeu-a.
A firmeza de pensamento de Helena fá-la pensar que, apesar das dificuldades que 2020 tem colocado ao mundo, com a pandemia, existe uma boa onda no Canadá. “A gastronomia portuguesa continua na moda. Temos de ser inteligentes e aproveitar isso. E está na moda graças a um longo trabalho de pessoas, como eu e como muitas outas, antes e depois de mim, que trabalharam bem estas nossas tradições”, afirma a chefe que alerta que “não devemos ceder a tendências que podem prejudicar-nos como a visão economicista, onde os melhores produtos, frescos e tradicionais, dão lugar a outros mais baratos”. A cozinha de Helena é tradicional, com inovações, mas sempre portuguesa. “Temos tradicionalismo em pratos como a caldeirada, o peixe assado ou o polvo grelhado, este último incontornável e muito procurado. Mas temos também muita inovação”, descreve. A inovação vem da vontade de fazer diferente mas também do gosto dos clientes, porque não “podemos mais colocar uma posta de bacalhau com espinhas no prato”. E numa cozinha tipicamente portuguesa e num país tipicamente de emigração portuguesa, são muitos os clientes portugueses? “Para minha tristeza, eu diria que 5% dos meus clientes totais”, revela Helena que acrescenta serem de segunda geração, jovens ainda, que trazem pessoas de outras nacionalidades para mostraram a gastronomia lusa. “O português típico, emigrante de primeira geração, só vem ao restaurante em dias de festa. Não muito mais do que isso”, conta. A grande fatia de clientes são canadianos, italianos e gregos.
O peixe…com cabeça
Helena Loureiro leva a sério a tradição lusa. Os seus dois restaurantes são portugueses e tudo o que lá é vendido é fielmente português. “Por exemplo, nunca vendi uma garrafa de vinho que não fosse portuguesa. Tenho 123 marcas, representativas de todas as regiões de Portugal, e tenho uma boa relação com muitos produtores nacionais”, conta, com orgulho para depois finalizar: “Nos meus restaurantes ou se bebe vinho português ou se bebe água. E é água nacional, também!”.
Esta ‘teimosia’ de Helena já lhe custou, pelo menos, um bom susto. “Um dia, estava na cozinha, e comecei a ouvir gritos da sala. Imaginei o pior. Que algum cliente se tinha queimado ou magoado seriamente. Saí acelerada da cozinha e quando cheguei vi uma cliente apavorada a olhar para o prato. Tinha pedido uma dourada no forno e o peixe veio inteiro, com a cabeça”, algo que não é comum no Canadá onde o peixe vem quase sempre arranjado. E aconteceu-lhe semelhante quando num dos muitos programas de televisão que fez levou um polvo inteiro. Quando abri a minha caixa de entrada, ao final do dia, devia ter uns 700 e-mails por ler. Entre pessoas em choque, dúvidas, repúdio, etc.”, recorda a chefe.
Esse trabalho de teimosia mantém Helena motivada, mais de três décadas depois de ter pisado solo canadiano. Por estes dias, enfrenta dificuldades como todo o setor da restauração no mundo. Mas não tem dúvidas sobre o futuro. “Continuo altamente motivada. O meu dia é cheio de imprevistos e eu adoro isso. A falta de rotinas. E o saber que não ‘tenho de ir trabalhar’. Vou porque adoro a minha profissão”, afirma.