Muxama, o "presunto" do mar

Uma memória coletiva cultural que o Algarve arrisca perder

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

Há quem lhe chame presunto do mar. Modo ancestral de conservar o atum, através da salga e secagem, a muxama concentra uma sapidez e textura únicas, representando um património gastronómico ímpar e uma força da Natureza. Apesar disso, corre risco de extinção em Portugal, existindo apenas um único produtor no Baixo Guadiana. Uma memória coletiva cultural que o Algarve arrisca perder.

 

Verdadeiro manjar, a muxama é conseguida a partir da parte mais nobre do atum e a menos gordurosa. Trata-se do lombo que depois é fatiado em tiras com alguma dimensão, salgadas e, de seguida, secas. Ao contrário de Espanha, que mantém a tradição incólume, Portugal deixou praticamente morrer este tesouro gastronómico que faz parte da nossa história, apesar de existir uma legião de fãs da iguaria. Tal como entregou de bandeja a arte da pesca do atum nas águas algarvias, aliás.

Um produto que era alimento de pescadores tornou-se num quase exótico achado que corre o risco de se extinguir no nosso país. Produzida a partir da peça lombar do atum, com uma consistência macia e travo salgado, só a palavra muxama (que deriva, tal como a arte de produção, de uma herança islâmica e que significava seco ou ‘musama’) dá para sonhar. É, não só, um petisco de truz, como simboliza a nossa história como povo. Se noutros tempos era alimento dos pescadores e das classes mais baixas, servindo para colocar como conduto no pão, hoje o seu valor gastronómico elevou a sua fasquia.

Por isso é algo triste que apenas exista hoje um produtor no Algarve, depois da última fábrica que se dedicava à semi-conservação e salga – as Conservas Dâmaso, em Vila Real de Santo António - ter sido adquirida pelos espanhóis. Esta empresa era a grande referência nacional. Fez renascer a cultura desta tradição mediterrânica típica da dieta algarvia que tem caído em desuso.

Com a morte do mentor Dâmaso do Nascimento - que fez um trabalho meritório na recuperação desta cultura algarvia, contrariando o seu esquecimento e produzindo sangacho, estupeta (pedaços de atum em salmoura), botarga (ovas de atum secas e prensadas), tarantelos (parte semigrodurosa do atum situada acima da ventresca, tanto secos como frescos) e muxama – esfumou-se grande parte desta memória.

Hoje, apenas a Sociedade Pescas Pelágicas (situada mesmo ao lado) se dedica à atividade. 

A muxama é feita de peças lombares de atum, seco e salgado, e no final ganha uma apetecível cor vermelho-escuro-acastanhada, parecida com a tonalidade do presunto, mas ao contrário deste não se fuma. Intensa, salgada, com notas leves de fumo (apesar de não o ter) e untuosidade, é um manjar dos deuses, cortada bem fininha.

A prática é secular, remontando a fenícios e gregos, adaptada depois pelos islâmicos como uma maneira de conservação do peixe, sobretudo para poder ser consumido no inverno quando não se podia pescar. A secagem permite a durabilidade do produto e a sua versatilidade é muito apelativa na cozinha.

Aproveitar ao máximo o atum e as suas diversas partes é uma verdadeira arte. E é a partir daqui que nasce cada petisco. Primeiro, faz-se um corte na cauda, para ver o degradé da cor e avaliar a gordura. Nada se perde, tal como com o porco em terra. Daí se comparar ao presunto. Há quem ainda o faça em casa para os amigos, de maneira a não deixar morrer esta bela tradição.

Segundo António Cabrita, à frente da Confraria do Atum, em tempos Vila Real de Santo António era o mercado mundial de referência desta arte, era a bolsa onde se aprendia a fazer, mas foi-se perdendo a tradição e hoje é raro surgir em terras algarvias. “Os espanhóis continuam a produzir na Isla Cristina, mas aqui falta empreendedorismo”, enfatiza. Os espanhóis possuem ainda a Associação de Produtores de Muxama da Andaluzia que salvaguarda o produto. Ou seja, não só promovem como acarinham a tradição.

De carne densa, macia e rosada, levemente adocicada, o atum-rabilho é, por si só, um mundo. Mas cada pedacinho é fonte inesgotável de verdadeiras iguarias. Portugal tem o privilégio de o poder pescar no Sotavento algarvio, mas as várias toneladas de atum capturadas têm por meta a exportação, sobretudo a lota de Tóquio. Nós ficamos quase a ver navios, apenas com cerca de 10% do atum-rabilho capturado. Ou seja, mesmo sendo o atum um peixe querido dos portugueses, que faz parte da sua cultura, praticamente só o comemos em conserva ou congelado. Fresco, só para alguns raríssimos sortudos. No fundo, nós que possuímos nas nossas águas este valioso tesourinho, ficamos um bocado de mãos a abanar. Globalização “oblige”.

O resultado é que não há praticamente atum-rabilho nas bancas dos mercados portugueses. E, se há, vem muitas vezes de Espanha, por isso também a muxama. O mais grave é que já poucas pessoas o sabem cortar, esventrar e dissecar com mestria.

Uma tradição cultural e artesanal em risco

Por cá, de facto, o único produtor português de muxama é Benjamim Carvalho, da Sociedade Pescas Pelágicas, em Vila real de Santo António, que se dedica ainda à conservação e transformação de sardinha, cavala, biqueirão, bem como ainda ao atum e espadarte fumados e marinados em vinagre. 

“Há dois tipos de conserva, uma mais barata, do lombo mais abaixo e outra especial, mesmo do lombo que é a muxama. Tudo depende do tratamento do tempo de sal e de seca. É tudo artesanal e natural, não tem nada de aditivos nem conservantes”, conta-nos Benjamim Carvalho. A produção segue métodos artesanais, tentando assim preservar esta memória gastronómica algarvia.

Com uma faca quilométrica, à medida de um gigante que pode chegar aos 140 quilos, começamos a descobrir o marmoreado apetecível da barriga, o carmim suculento do lombo, as matizes de cores que debruam a sua carne. O atum é descabeçado por corte e torção, dando-se a seguir dois cortes longitudinais na parte dorsal e na parte ventral de modo a separar o total das massas musculares, destacando duas peças que se chamam os troncos e que apresentam um aspeto triangular. 

Esta operação era, em tempos, feita por esquartejadores aos quais, na região, se dava o nome de ronquedores. No fundo, tal como uma vitela, as várias partes são utilizadas para fins gastronómicos singulares.

O tronco do atum sofre depois três cortes: um profundo, ao longo de toda a peça, para separação do músculo mais escuro (o sangacho); um segundo, não tão profundo (até meio da massa muscular), que permite abrir, mas sem separar, a massa muscular; e um terceiro, mais profundo, que vai de ponta a ponta da massa muscular e paralelo com os dois primeiros e que separa uma tira muscular com o comprimento do tronco. Este último é o da muxama.

A seguir, o atum é seccionado em quatro partes que os japoneses também apreciam e por isso detêm eles a pesca do atum no Algarve, praticamente: duas da barriga (toro), onde há mais gordura e a carne é mais branca, e duas do dorso, cuja carne é rosa intenso. Devido à grande apetência do peixe pelos japoneses, os cortes ganham hoje nomes nipónicos. O sunazuri, por exemplo, mais não é do que a famosa ventresca.

Quanto à muxama, depois de cortado o lombo, segue-se a salga, feita em mesas próprias, que consiste apenas em envolver cada tira em sal, e empilhando-as em camadas alternadas com sal, de maneira a ficarem completamente cobertas. Os lombos de atum são colocados em grandes recipientes com sal, durante um dia e depois deste primeiro estágio segue-se o processo de prensagem. Esta fase é igualmente importante, dependendo o resultado final do know how do prensador. Coloca-se uma prancha sobre estas camadas alternadas e sobre ela pesos que podem ir até à meia tonelada. Aos pesos chama-se “pedras de Borba” e podem ter, cada uma, cerca de 25 kg.

Esta fase de prensagem dura aproximadamente dois dias e o momento preciso em que se decide parar a prensagem é um dos segredos, segundo os conhecedores.

Após estas duas fases de salga e prensagem, o atum é lavado em várias águas para retirar o excesso de sal, passando-se à secagem, que decorre inicialmente em recinto fechado. Hoje é feito com ar forçado (durante dois dias no Inverno e um dia no Verão) e sob temperatura e ambiente controlados, segundo as normas que a lei exige, com uma humidade relativa de 60% e uma temperatura constante de 14ºC. 

A secagem deve ser homogénea e no final de dez a doze dias estará pronta. No passado era feito de forma artesanal, ao ar livre, dura cerca de 15 dias no Inverno e uma semana no verão, mas à sombra.

Versatilidade gastronómica

Usar este produto na cozinha é uma das formas que os chefes têm de preservar a memória e tirar partido da sua versatilidade. Um dos que o faz no Algarve é Leonel Pereira, chefe do Checkin, restaurante em Faro. “É uma pena que cada vez se produza menos entre nós, mas uso sempre como referência nos meus pratos”, explica.

O facto de ter vindo a desaparecer do léxico gastronómico nacional prende-se com a falta de proteção do produto. Simplesmente cru, em tártaro, é também divinal ou em lombo levemente corado. Por isso é tão procurado para sushi e sashimi... mas o mais importante será não perder a tradição de escrutinar todas as suas partes e degustá-las com tempo.

Nesta receita de Leonel Pereira, que deixamos aqui, a conjugação da muxama, abacate, coentros, sésamo, cebola roxa e aipo surpreende pela frescura, a que se adiciona o exotismo do leite de tigre. 

Para além do prazer que esta espécie de “porco do mar” proporciona, ainda por cima é saudável. A carne deste peixe azul é uma das melhores formas de obter a célebre gordura ómega-3 e uma excelente fonte de vitaminas e minerais essenciais, com destaque especial para a vitamina B3 (niacina) e selénio.

A versatilidade e potencial do atum é imensa. Para além da muxama, a estupeta é outro prato tradicional do sotavento algarvio. Com as aparas da muxama, restam tiras de atum que são salgadas em salmoura (salga húmida), processo que nunca é inferior a 25 dias. Depois desta maturação feita em sal, as tiras de atum são desfiadas em bocados pequenos, depois lavados em três ou quatro águas e espremidos. É um prato fresco e apetecível, com cebola, pimento verde e tomate, e temperada com pimenta, azeite e vinagre, convidativo para o verão e sempre presente nos casamentos, sobretudo noutros tempos

A barriga, ou ventresca, é outro "delicatessen" do atum. Grelhadas ou conservadas são uma delícia. O ventre é realmente uma parte sumptuosa do atum, nobre e saborosa peça, mais propriamente um músculo com gordura interstícia que garante uns belos filetinhos com cremosidade, delicadeza e sabor soberbos.

É o chamado “o-toro”, denominação japonesa quase reverencial, dada a uma carne quase branca, com gordura tão fina e untuosa que o corte corresponde a um similar aquático do wagyu.

Os mormos, originários da peça mais delicada do atum, com massa muscular e alguma matéria gorda equilibradas, situada entre a cabeça e o lombo, é outro pitéu bastante saboroso que poucos restaurantes confecionam já, sendo que a peça mais comum é o bife de atum. Mas no Sotavento algarvio ainda se vão encontrando alguns que o preparam à maneira.

Outra especialidade são os tarantelos (faixa do lombo acima da barriga). Podem cozinhar-se em fresco, no forno ou salgar, e ainda os espinhaços, em caldeirada com batata-doce, por exemplo.

De igual modo as ovas - "caviar dos pobres" – são outra das especialidades. A botarga é um exemplo de como pode ser um soberbo petisco, sendo as ovas massajadas para se tornarem mais compactas, secas, curadas com sal e revestidas com cera de abelhas para conservação.

O atum-rabilho é, como vemos, um mundo de delícias e processos culturais de aproveitamento que não podemos deixar perder. E quanto à muxama, um dos seus emblemas, corre já o risco de desaparecer e deixar de ser produzida na terra que a viu nascer.
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Checkin Faro by Leonel Pereira
Avenida da República
Passeio da Rainha 40
8000-079 Faro
T. 968 070 776
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Ceviche de atum “rabilho”, abacate e muxama 

Base 4 pax.

Ingredientes

400 grs. de lombo atum 
400 grs. de abacate
10 grs. sementes sésamo branco e negro 
20 grs. coentros
50 grs. de aipo rama 
1 malagueta pequena
4 limas 
2 dentes de alho
150 ml. de caldo de peixe 
1 cebola roxa pequena 
60 grs. de muxama
Flor de sal q.b.

Preparação 

1. Cortar o atum em pequenos cubos. Reservar.
2. Descascar os abacates e obter um puré no processador com sumo de lima, 1 dente de alho, malagueta e coentros. Temperar e reservar. 
3. Para o leite de tigre: triturar o caldo e o peixe juntamente com as aparas previamente cozidas. Adicionar, alho, malagueta, sumo de lima, coentros, aipo e gelo. Passar em passador fino e acertar o sal.  
4. Laminar a muxama muito fina e reservar. 
5. Colocar o atum anteriormente cortado a marinar no molho (leite de tigre) durante 5 a 10 m. Com a cebola em juliana e folhas de coentros. 
6. Torrar ligeiramente o sésamo.  
7. Empratar a gosto, intercalado com o abacate, muxama e salpicar com as sementes de sésamo e amores-perfeitos.