Sendo que o pão-de-ló está iminentemente ligado à época da Páscoa, não deixa de ser curioso que exista um bolo judaico alusivo ao Pesach feito de pó de amêndoas e açúcar.
A “Páscoa” mais não é que o “Pesach”, palavra hebraica que significa “passar além”, simbolicamente relacionado com o “passar além da escravidão à liberdade”. Daí comermos o nosso pão-de-ló exatamente na Páscoa, no primeiro mês lunar judaico do calendário sagrado, correspondendo a parte de março e abril, onde famílias e amigos se reúnem em torno da mesa de Pesach, seguindo-se um típico ritual de preparação integrando orações e uma culinária característica da ocasião.
A presença de judeus no século XV em Portugal resultou da sua expulsão de Espanha, sendo então aqui acolhidos por D. João II. Mais tarde, D. Manuel decretou, contudo, a conversão forçada e assim surgem os cristãos novos ou marranos. Só que alguns, apesar de integrados, permaneciam fiéis à sua religião, inventando formas de esconder a convicção religiosa. Deixaram, obviamente, as suas tradições em Portugal.
Cada convento efetuou mutações consoante a criatividade e especificidade de cada região. E o resultado está à vista.
Pão de ló de Margaride
Começamos pelo Pão de ló de Margaride. Fabricado numa casa de azulejos verde-garrafa, bem no centro de Felgueiras, lá entrar é como mergulhar noutra dimensão e recuar dois séculos, já que o lugar onde se faz este delicioso pão-de-ló é exatamente o mesmo do século XIX.
O herdeiro desta história imemorial é hoje Guilherme Lickford, que começa por partir os ovos, seguindo a tradição, para que a receita se conserve no segredo dos deuses, pois não se encontra escrita. Podemos, contudo, chegar facilmente à sua fórmula de maneira muito aproximada e é isso mesmo que aqui deixamos.
“Optamos por conservar os procedimentos artesanais, mantendo quase tudo como se fazia de forma original”, conta-nos Guilherme Lickford, enquanto revela que a primeira mulher a fazer este bolo se chamava Clara. Seria ela a ama de Leonor Rosa, enjeitada numa roda do Porto, a transmitir a receita, muito provavelmente oriunda de um convento. Certo é que Leonor Rosa seria a grande obreira da fama do doce, sua grande impulsionadora, chegando à honra máxima de ser “Doceira da Casa Real”.
(O artigo integral sobre o pão de ló de Margaride foi publicado na edição 353 da Revista de Vinhos).
Receita da autoria de Leonor de Sousa Bastos
Para 1kg
Ingredientes:
22 ovos (19 gemas e três claras)
325 gramas de açúcar
150 gramas de farinha
Preparação:
1/ Bata 19 gemas com o açúcar, juntando três claras, durante cerca de 40 minutos, até a massa fazer bolhas (“abrir”). Junte com cuidado a farinha peneirada e incorpore bem.
2/ Leve a formas forradas a papel e antes untadas com manteiga e meta no forno cerca de 40 minutos a 220 graus.
Pão de ló de Ovar
O pão de ló de Ovar não deixa ninguém indiferente. Humidamente sedutor, tem vários segredos, mas o principal é mesmo o ponto de cozedura. Cru é que não lhe podemos chamar, como erradamente se faz. Até custa saber que, em tempos, este pão-de-ló se chamasse “brôa”, devido ao seu formato original. Nesse tempo, era cozido lentamente num forno de lenha e duas pinhas a arder eram a única forma de iluminar a superfície para saber se estava pronto.
No século XIX são várias as famílias vareiras que se dedicam à confeção do doce e a capital do país deixou-se convencer pelo pão de ló que os fragateiros ovarenses levavam, assim, para Lisboa na época das quadras festivas, como Páscoa e Natal. Pão-de-ló Cruz, Guida, São João, Casa das Festas ou Flor de Liz e os estabelecimentos Pão-de-ló Cardoso, Casinha do Pão-de-ló e a mais antiga, São Luiz, dedicaram-se à sua produção artesanal.
A casa São Luiz conta já com 239 anos de história tecidos com um dos maiores segredos: o amor à arte. Maria de São Luiz é, hoje, a herdeira deste património criado ao longo de 12 gerações, pois é um dos mais antigos pães de ló de que há menção escrita.
Tanto o formato, como a maneira de o fazer, e até o papel que o envolve, obedecem a regras indeléveis. O papel deverá formar oito dobras em formato de quatro machos equidistantes e recortados em forma de ziguezague. Também a maneira de o comer exige procedimentos específicos. Se habitualmente usa uma faca para o abrir, saiba que está errado. “O pão de ló deve ser aberto com dois garfos de forma a não abater”, explica Maria São Luiz. Também não se deve, igualmente, comer à colher, mas com um garfo.
(O artigo integral sobre o pão de ló de Margaride foi publicado na edição 365 da Revista de Vinhos).
Receita (não pertence à Casa São Luiz, já que essa é segredo)
Ingredientes:
8 ovos (dois inteiros e seis gemas)
1 pitada de sal fino
125 gr. de açúcar
70 gr. de farinha de trigo sem fermento
Papel para forrar a forma
Preparação:
1/ Pré-aquecer o forno a 185ºC. Numa taça juntar os ovos e as gemas. Começar a bater com a batedeira e juntar o açúcar e o sal lentamente durante mais ou menos 15 minutos, até a massa duplicar de volume.
2/ Adicionar lentamente a farinha, mexendo à mão, com pancada certa. Forrar a forma com manteiga.
3/ Colocar a massa e deixar cozer por 45 minutos em forno brando. Retirar e deixar arrefecer durante 15 minutos dentro da forma de barro. Ter atenção ao tempo, para não se perder o interior mais cremoso - o designado "pito”. Deve apenas sair quando apresentar uma côdea tostadinha.
Pão de ló de Alfeizerão
Há males que vêm por bem. Um possível erro no tempo da cozedura, criaria um célebre pão de ló numa localidade do Oeste. Falamos de Alfeizerão, onde nasce um doce etéreo, humedecido no seu interior, que seduz de imediato os incautos.
A especificidade deste doce resulta, assim, do saber fazer a que a massa obriga, da colocação na forma e do tempo ideal de cozedura, sempre em formas de cobre. “Coze a uma temperatura muito alta e durante pouco tempo”. O momento de retirar o pão de ló é fulcral e deixa todos nervosos. “A parte mais difícil é o momento de desenformar” – alerta Helena Castro, proprietária da Casa do Pão de Ló de Alfeizerão.
Nem Gordson Ramsay, que já aqui esteve nesta mesma cozinha a tentar fazer pão de ló, conseguiu a façanha, quando gravava o programa Uncharted Portugal para o canal National Geographic.
Quando falamos de pão de ló, a imagem de freiras, em secreta e concentrada labuta, nas cozinhas de mosteiros evoca-se de forma quase automática. Segundo reza a história, o mesmo se aplica ao doce de Alfeizeirão cuja origem teria estado no mosteiro cisterciense de Coz, situado nas imediações de Alcobaça.
O enredo empola-se com uma visita extemporânea de D. Carlos ter causado algum nervosismo na serviçal, que executou a feitura do bolo para a sobremesa do almoço e o tempo de cozedura não seria respeitado. O resultado foi que o doce abateu e terá ficado húmido no seu interior. Mas ao contrário do que seria de esperar, o monarca ficou rendido a esta textura e consta que o elegeu como preferido.
Como na maior parte dos casos, o receituário monástico seria então continuado pela sociedade civil, sua herdeira em boa hora, e o “erro” no tempo da cozedura continuou a ser praticado para conseguir a mesma textura, fazendo escola na região.
“Este é um exemplo de empreendedorismo feminino de uma mulher”, conta Helena Castro acerca da Casa do Pão de Ló de Alfeizerão.
Tudo terá começado em 1910, quando o pároco João Matos Vieira - que tinha vindo de Portalegre e se apercebeu da potencialidade do receituário – convocou a irmã para a sua confeção, depois de ter a receita nas mãos.
Adília de seu nome, decidiu arriscar o negócio junto à estrada nacional e com a ajuda de duas sobrinhas, Ema e Elisa, foi de vento em popa na celebridade do doce. Até aos dias de hoje.
Há cerca de 30 anos, Helena, professora de Filosofia, aventurou-se a pegar no negócio que corria o risco de terminar caso não fosse esse gesto. “Resistiu 100 anos. Irá resistir outros 100”, afirma, convicta.
(O artigo integral sobre o pão de ló de Margaride foi publicado na edição 425 da Revista de Vinhos).
Ingredientes:
8 ovos (6 gemas e dois ovos)
140 g de farinha com fermento
130 g de açúcar
Meio cálice de aguardente
Uma pitada de sal
Preparação:
1/ Batem-se os ovos com o açúcar, o sal e a aguardente (a maior parte dos ovos não leva a clara) até obter um creme esbranquiçado.
2/ Junta-se a farinha e continua-se a bater.
3/ Coloca-se a massa na forma untada, forrada a papel vegetal, e leva-se ao forno a 200 graus, colocando um papel pardo por cima da forma, durante oito a dez minutos.
4/ O bolo deve ficar fofo e húmido no interior.