O mundo gastronómico de Quique Dacosta

Chefe espanhol sete estrelas, de Madrid a Londres.

Fotografia: Fotos D.R.
Miguel Pires

Miguel Pires

A grande maioria dos chefes de alta cozinha da atualidade fez um percurso mais ou menos comum: começaram por aprender o ofício em escolas de hotelaria, estagiaram e evoluíram em vários lugares até se afirmarem em posição de topo num restaurante de referência. Também há os que conseguiram encurtar o caminho, com formações curtas - muitas vezes depois de se formarem em outras áreas – e arriscaram instalar-se por conta própria com aclamado sucesso. Porém, o caso de Quique Dacosta é diferente. 


Ele é o exemplo do chefe autodidata, sem grandes estudos, que aos 14 anos, numas férias de escola, parte para o sul de Espanha com o sonho de ser DJ e acaba a lavar pratos na cozinha de um restaurante italiano. Até aqui nada de mais, é uma história como a de milhões de invisíveis, sem qualificações, que ocupam funções indiferenciadas na hotelaria. Só que este adolescente extremeño, ainda de ascendência portuguesa (o seu sobrenome vem de “da Costa”) viu-se gradualmente a realizar pequenas tarefas na cozinha e começou a descobrir a vocação. É então que, em 1989, vai parar ao El Poblet, na altura, um restaurante de cozinha espanhola tradicional, já com algum prestígio, situado em Denia, na província de Alicante, comunidade Valenciana. 


Neste lugar, Quique vai assumindo postos de maior responsabilidade até chegar a chefe de cozinha e tomar conta dos acontecimentos. Sem formação especifica, nem meios financeiros que lhe permitisse fazer uma pausa para estagiar em restaurantes estrelados, a aprendizagem é adquirida com a prática, devorando livros de chefes conceituados e visitando os tais grandes restaurantes de cozinha de Espanha, nomeadamente no País Basco e na Catalunha, do Arzak ao El Bulli – dormindo muitas vezes no carro, para poupar dinheiro. Aproveitando o momento efervescente da cozinha contemporânea espanhola, Quique retirou dos livros e desses momentos, não apenas conhecimento técnico, mas também uma nova forma, mais livre, de pensar a cozinha. A partir daí o “resto” foi trabalho, talento, capacidade de liderança, foco e visão. 


O percurso não foi fácil, levou o seu tempo. Porém, Quique Dacosta foi fazendo o seu caminho, adquiriu o restaurante (em 1999) e começou a destacar-se. Rapidamente deixou para trás os pratos adaptando de receitas dos livros de outros chefes, substituindo-os por outros, que resultavam de uma nova forma de pensar e da incorporação de novas técnicas de cozinha. Tudo isto passou a estar enquadrado numa sequência de pratos que obedecia a um pensamento estruturado influenciado pelos ventos que vinham de fora, mas, também, e cada vez mais, pelas suas reflexões de como trazer para a mesa de uma forma disruptiva o território onde estava inserido. Todo este trabalho viria a ser reconhecido: em 2002 ganhou a sua primeira estrela Michelin; em 2006 chegou a segunda; e em 2012 (já depois de rebatizar o restaurante com o seu nome – em 2009) alcançou a terceira estrela Michelin, o prémio máximo da carreira de um chef. 


Até 2009, Quique Dacosta esteve dedicado apenas ao seu restaurante gastronómico, mas com a operação estabilizada e a equipa bem oleada, o chef espanhol começou a expandir-se para outras latitudes, de uma forma cautelosa e progressiva. Atualmente, Quique Dacosta conta com quatro restaurantes na Comunidade Valenciana (mais um serviço de delivery) e um em Londres, sendo ainda responsável por todos os espaços de restauração do Hotel Ritz Madrid. Em termos de prémios de grande relevo, são 7 estrelas Michelin (distribuídos por 3 insígnias) e um restaurante entre os 20 melhores do mundo.


Quique Dacosta Restaurante - QDR (3 estrelas Michelin, 20º lugar do World 50 Best Restaurants )
É a origem, o centro nevrálgico de Quique Dacosta, o lugar onde o sonho acontece. Um 3 estrelas de caras. Situada à beira-mar, Denia é uma pequena localidade que vê a sua população multiplicar-se exponencialmente no período estival e ainda que o restaurante esteja algo afastado do centro, não está imune a este bulício do verão. Acontece que a agitação ameniza quando se cruza a entrada do QDR e o que fica é apenas aquele burburinho agradável que contagia quem passa um bom momento num ambiente sereno, mas vivido. Para tal, contribui, logo de início, a equipa de sala e o seu sentido hospitaleiro que sem salamaleques faz o cliente sentir-se de uma forma especial.
Uma vez instalados, estamos próximos do momento de iniciar o menu de temporada, que está dividido em 5/6 actos, num total de propostas que podem chegar às duas dezenas e meia. Os primeiros snacks são servidos ainda no exterior, ou na sumptuosa sala envidraçada criada em conjunto com a D. Pérignon. Após esse momento, passa-se ao interior da casa, decorada de forma distinta, mas discreta, de modo que a nossa atenção esteja focada na mesa, onde toda a ação se vai passar. 
Dependendo do cliente, no total, a experiência pode ultrapassar três horas. Contudo, o domínio impecável dos tempos de serviço, bem como o aspecto visual, o sabor e o fator surpresa de cada momento, já para não falar da harmonização de vinhos selecionada por José António Navarrete, deixa-nos de tal forma imerso que não se dá pelo tempo passar. Ao longo destes anos, vários são os pratos criados por Quique Dacosta que ainda são falados. Alguns marcaram presença em mais de que uma temporada - na forma original ou evoluída -, como a Cubalibre de foie; o bosque animado; la gallina de los huevos de oro (que mais tarde viriam a passar para o El Poblet, em Valência); a rosa; as cocochas al pig-pig, María (um bloody mary crocante); ou o trabalho incrível, mais recente, com as “salazones” – uma série de produtos do mar, como o atum ou ovas de diversos peixes curados como nunca se tinha visto antes. Porém, há um momento icónico no menu que marca presença desde sempre: a gamba vermelha de Denia fervida em água do mar, um instante de produto puro com um simbolismo muito especial para Dacosta, o da excelência do que o território de Denia lhe/nos dá. 
Meio a brincar, Dacosta gosta de dizer que sempre teve a sorte de atrair talento e parte do sucesso da sua cozinha, neste lugar, deve-o a Juanfra Valiente, seu braço direito e chefe de criatividade do QDR desde 2001, e, mais recentemente, também, à sua chefe executiva Carol Álvarez.
Carrer Rascassa, 1, 03700 Dénia, Alicante, Espanha
 
El Poblet (Valência 2 estrelas Estrelas Michelin) 
Aberto em 2012, em Valência, o El Poblet começou por retomar em ambiente citadino não apenas o nome original do primeiro espaço de Quique Dacosta, mas também os pratos mais emblemáticos das  temporadas anteriores em Denia, uma opção que trouxe ao restaurante a sua primeira estrela Michelin logo no ano da inauguração. Porém, algum tempo mais atarde, após a chegada do chef Luis Valls – que trabalhara com Quique - este foi ganhando o seu espaço conquistando o direito de apresentar uma proposta com a sua própria identidade, ainda que seguindo alguns princípios da cozinha do mestre.  
Deste modo, apoiando-se no território das hortas da região e da albufeira local, Valls apresenta no El Poblet uma cozinha valenciana moderna, criativa, de sabores bem marcados. Entre as suas criações mais recentes destaca-se um prato inspirado no romance "Cañas y Barro" de Blasco Ibáñez, em que a Albufera é representada por uma enguia envolta em folhas de acelga cozida num “papelote” de barro que é trazido à mesa e quebrado à frente do cliente, criando um certo aparato visual. 
A valorizar a proposta de Valls, que valeu ao restaurante a segunda estrela Michelin em 2019, está trabalho de sala liderado por Ana Botella, bem como a oferta vínica do escanção Hernán Menno, que privilegia vinhos de toda a Espanha, sem deixar de destacar algumas das preciosidades locais. 
C/ de Correus, 8, Andar G, 46002 Valência, Valência, Espanha

Mercat Bar (Valência)
Foi o primeiro espaço de Quique Dacosta em Valência, um bar de tapas modernas, aberto em 2010. Na altura, a oferta baseava-se na reinterpretação de pratos da cozinha popular local. Hoje, passados 13 anos, o conceito evoluiu e alberga, igualmente, outras cozinhas do mundo, cruzando influências sem abandonar a perspectiva local e os produtos da região. Ceviche de corvina thai, espetada de frango com molho kimchi, ou arroz à banda de peixe e marisco são algumas das propostas a considerar. A barra (ou seja, o balcão) funciona também como uma vermuteria, onde é possível praticar um dos desportos preferidos de nuestros hermanos: beber e “picar” algo – como gildas, anchovas, ou batatas bravas - antes da refeição.
Carrer de Joaquín Costa, 27, 46005 Valencia, Espanha


Vuelve Carolina (Valência)
Numa espécie de ponte conceptual entre o Mercat Bar e o El Poblet, integra-se o conceito do Vuelve Carolina. Também aqui se apresenta uma volta ao mundo, mas numa óptica mais criativa e recorrendo a técnicas de cozinha contemporânea mais elaboradas - algumas herdadas de pratos desenvolvidos no QDR. Ou seja, o conceito está mais próximo da ideia de um restaurante gastronómico já com um certo requinte, embora num ambiente descontraído. Se não lhe apetecer escolher à carta, deixe-se levar por um dos menus que pode incluir, entre outras propostas, uma salada com tártaro de atum picante; um alho francês com enguia fumada e molho bernaise; um pão bao de panceta de porco e pickles; ou um arroz meloso de peixe e aioli de tomate. 
Para acompanhar a refeição, a equipa de Quique Dacosta propõe uma série de cocktails, entre eles, um que leva jerez palo cortado, gengibre, ginger beer e lima, a que foi dado o curioso nome, de “Um inglês perdido em Jerez”. 
C/ de Correus, 8, 46002 Valência, Valência, Espanha
 
Llisa Negra (Valência)
Situado a menos de 100 metros do Vuelve Carolina e El Poblet, o Llisa Negra é um conceito gastronómico inaugurado em finais de 2018 que procura explorar o sabor e a pureza do produto, através da grelha, da brasa e do fogo direto. Aqui, num espaço requintado, com a cozinha à vista, separada da sala apenas por um vidro, o cliente pode observar toda a confecção e arte de cozinhar no fogo. Os produtos são os de topo, da região, mas igualmente de uma área geográfica mais abrangente, da Costa Brava à Andaluzia, no caso de peixes e mariscos, e da Galiza ou da Extremadura, no caso das carnes, por exemplo. Também não faltam, claro, os arrozes e paellas cozinhadas diretamente no fogo. Nas entradas, vamos encontrar pratos como uma salada de tomate valenciano, uma beringela com lombo de atum na brasa, um tártaro de vaca ou o de ventresca de atum, entre outros. Também, vale a pena explorar os produtos curados no sal e no fumo e, nos mariscos, além de uma boa variedade de ostras e crustáceos (consoante a época), confecionada de uma forma mais simples, aconselha-se vivamente a lagosta do mediterrâneo aberta e gratinada ou o luxurioso “frit” de lagosta com batata e ovos fritos, elaborado e servido no recipiente da paella. Do mar pode vir ainda uma raia ou um tamboril inteiro na brasa ou para os adeptos da carne não vai faltar uma presa ibérica ou um chuletón de vaca velha rubia galega para saciar o apetite. Carta de vinhos clássica com boas opções.  
C/ de Pascual i Genís, 10, 46002, Valencia, Espanha


Arrós (Londres)
Quique Dacosta já tinha feito um ou outro pop-up no estrangeiro, mas esta é a sua primeira aventura com um restaurante próprio fora de Espanha - e logo na competitiva cidade de Londres. Como o nome do lugar indica, as especialidades da casa aberta em 2019, são os arrozes, o produto fetiche de Valência e do chef espanhol, preparados no fogo, numa cozinha à vista, como no Lisa Negra. São 14 as opções nesse campo, da paella valenciana, aos arrozes de vegetais ou de presa ibérica passando pelo o arroz de carabineiro, dourada e lula, o de enguia grelhada e confit de pato, ou o de santola - todos preparados através do método tradicional valenciano, que deixa uma base crocante deliciosa no fundo, o “socarrat”. Tudo isto é para ser apreciado num ambiente urbano, elegante e sofisticado, com decoração do famoso arquiteto de interiores Lázaro Rosa Violán (o mesmo do Jncquoi e Rocco, em Lisboa). 
Mas nem só de arrozes vive este endereço londrino do chef extremeño. Dacosta trouxe ainda para a capital inglesa a sua identidade criativa e toda uma série de produtos e pratos com um forte cunho mediterrânico, a que juntou outros inspirados no imaginário inglês, como é exemplo o Robalo Wellington. Em termos líquidos, as opções passam sobretudo pela boa lista de cocktails e pela ampla carta de vinhos.
64 Eastcastle St, Londres W1W 8NQ, Inglaterra

 
Deessa (2 estrelas Michelin, Madrid)
Nasceu com o objetivo assumido de ser um 3 estrelas Michelin, o que parece ser uma ambição desmedida, tendo em conta que pouco mais de 8% dos cerca de 16 700 restaurantes dos diversos guias vermelhos que se publicam pelo mundo, possuem essa distinção máxima. Porém, quando se aliam o Ritz, o Mandarin Oriental e Quique Dacosta, três marcas que têm algo a dizer sobre a luxo, alta cozinha e estrelas, o céu parece ser o limite. Inaugurado em 2021, o Deessa, ainda “só” alcançou duas estrelas, mas não espantará ninguém se a terceira vier a caminho. Em termos gastronómicos, nestes primeiros anos o restaurante tem disponibilizado dois menus, um de clássicos do chef e outro  contemporâneo, com propostas como a sopa de ervilhas lágrima com lírio maturado e granizado de iogurte; ou uma seleção de caviar e diferentes ovas de peixes frescos curados - ou seja, pratos ou momentos inspirados numa conjugação entre o mundo de Quique Dacosta, o de um lugar mítico como o Hotel Ritz, num contexto citadino de Madrid. 
Além do restaurante gastronómico, Quique Dacosta é responsável também pelos outros espaços de restauração do hotel. No Palm Court, apresenta uma carta de pratos icónicos do Ritz e da cozinha francesa com uma linguagem actual, além de um menu mais ligeiro disponível o dia inteiro, ou um “chá da tarde”, um clássico do universo Mandarin Oriental. No mesmo espaço, fica o Champagne Bar, onde são servidas porções de degustação de mariscos a acompanhar o melhor antidepressivo mousseuse do mundo; e outro clássico explorado por Quique é o Ritz Garden, no jardim do hotel, onde aposta na cozinha mais familiar do seu universo: arrozes e paella à valenciana, peixes e carnes na brasa. Faz parte ainda da operação do chef espanhol o bar de cocktails Pictura, o serviço de pequenos-almoços do hotel e a parte de eventos e celebrações. Para quem começou uma carreira na cozinha a lavar pratos, não está mal. 
Pl. de la Lealtad, 5, 28014 Madrid, Espanha