Peixe fresco, a poesia do oceano

O que leva os portugueses a escolher sempre os mesmos peixes se têm um tesouro inesgotável de escolhas?

Fotografia: Arquivo
Fátima Iken

Fátima Iken

Portugal é dos países que mais se podem regozijar de ter o mar aos pés. Um privilégio que nem sempre sabemos aproveitar da melhor forma. Há centenas de espécies piscícolas nas nossas águas, fonte inesgotável de prazer que nem sequer são conhecidas. Robalo, dourada e pescada, a par das sardinhas, são os peixes que aterram sempre nos pratos. Hábito? Inércia? Desconhecimento? O que leva os portugueses a escolher sempre os mesmos peixes se têm um tesouro inesgotável de escolhas? Somos reis na Europa mas ainda não sabemos apreciar e tratar o nosso peixe tão bem quanto deveríamos.

  
Respiramos mar. A nossa localização acabou por estabelecer uma ligação indelével com o Atlântico. Não será por acaso que temos dos mais elevados consumos per capita de peixe, uma média de 60 quilos, mais do que o dobro da média europeia. Mas será que comemos o peixe certo?

Fonte incomensurável de vida, o mar simboliza prazer e diversidade orgânica, espécie de jardim salgado e misterioso. Nada melhor do que observar a frescura de um peixe, o brilho do olhar, o prateado das suas escamas, as suas guelras e firmeza. 

Paleta infinita de sabor, de espécies que são matéria-prima de excelência, os produtos do mar são únicos e magníficos na sua delicadeza, frescura, sapidez e aroma. A sua textura, carne densa ou suave, macia e sápida, consoante a espécie, é um convite ao prazer de comer. Na cozinha, o mar atiça a criatividade, ponto de partida para inventar receitas onde sabor, expressividade e subtileza casam de forma perfeita. Cru, a la plancha, levemente cozido, grelhado, assado, ou frito, o peixe é bom de todas as maneiras.

Então por que raio só comemos quase sempre os mesmos e da mesma maneira? Esta realidade torna-se mais aflitiva quando se sabe que cada arrastão deita borda fora cerca de 800 a mil quilos de peixe, já que a legislação não permite que cheguem a terra espécies não certificadas que, assim, não conseguem entrar em lota e fazer o circuito comercial.

Das algas aos peixes e moluscos, passando pelas plantas e mariscos, o mar é pura poesia inspiradora para os cozinheiros que os preferem, geralmente, como forma de expressarem a sua arte subtil. O mesmo se aplica aos rios, onde de novo a água surte a sua liquidez mágica em espécies saborosas que no prato recrudescem.

João Oliveira, jovem chefe do restaurante Vista (inserido no Bela Vista Hotel &Spa), na Praia da Rocha, e detentor de uma estrela Michelin, é um dos que elege o peixe e marisco como matéria fundamental nas suas ementas. E para além de enfatizar a necessidade de se respeitar esta matéria-prima tão delicada - tanto no tempo de cocção como na manipulação e sustentabilidade – toca na ferida do problema.

Para o facto de encontramos normalmente nos restaurantes as mesmas espécies aponta o dedo à questão das mentalidades e o que culturalmente está incutido nos portugueses, a começar pelo funcionamento das lotas. “Se quiser peixe menos nobre é difícil de arranjar. O peixe ganha valor em lota e depende da procura. O peixe-galo rosa, por exemplo, com o qual trabalho muito, nem sequer vai para lota e se não entra nem sequer pode ser vendido no mercado”, confessa.
De facto, este ciclo acaba por ser uma pescadinha de rabo na boca, para utilizar uma metáfora alimentar sobre a matéria. O problema começa com a pesca, pois o pescador só pesca o que tem valor comercial e, se não entra no circuito, vai para o lixo.

Os restaurantes apresentam, assim, sempre as mesmas espécies. “Trabalho diretamente com barcos de pesca e conseguimos receber peixe fresco que é captura do dia, mas 98% das lotas têm sempre exatamente o mesmo peixe, seja Angeiras, Póvoa ou Aveiro, para dar apenas alguns exemplos”.

Os arrastões deitam fora cerca de 30 a 40% do pescado, pelo que não poderá ser vendido em lota. Mas o chefe João Oliveira conseguiu que novas três espécies conseguissem entrar no circuito – o peixe-galo rosa, taralhão ou as cintas, bem como o salmonete negro de fundo, depois de um trabalho que envolveu a DocaPesca, Universidade do Algarve e Ministério do Mar, que entraram em sintonia para que as espécies tivessem um número de série e passassem a fazer o circuito de lota. Um exemplo a seguir.

João Oliveira chama ainda a atenção para a sazonalidade das espécies e o problema das alterações climáticas que estão a influenciar diferentes comportamentos. “O robalo já deveria ter aparecido há mais de mês e meio, mas só agora surge, as águas estão mais quentes o que altera o tempo da desova. De igual modo, o pregado só surgiu agora”. O Algarve, pelo enquadramento de massas de água frias atlânticas e quentes de influência mediterrânea, consegue ter muito mais espécies, cerca de 80%, do que o norte, o que permite diversificar no prato este ecletismo piscícola.

Pedro Bastos, mentor da Nutrifresco, especialista na aquisição, transformação e fornecimento de produtos frescos do mar, é um verdadeiro apaixonado pelo peixe português, distribuindo por terra o que o oceano tem de melhor. Os chefes com estrelas Michelin são dos seus principais clientes.

Mas também tem o mérito de divulgar as várias espécies menos conhecidas em Portugal e no mundo. O peixe está-lhe na alma, já que cresceu praticamente no mercado de Albufeira e conhece aquilo que o mar oferece como gente grande. Aos 6 anos, já ia à lota de Sagres com o pai. Por isso, é bem capaz de ser das pessoas que mais sabe de peixe em Portugal. Deixou Engenharia Bioquímica para criar a Nutrifresco, onde estamos agora, em Albufeira. Trabalha com cerca de 200 espécies de peixe e é um dos grandes mentores da valorização das chamadas espécies mais humildes, como o taralhão, pé de burro, boga ou o ferro de engomar, desafiando os chefes de cozinha a tirar melhor partido do seu sabor, enfatizando outro tipo de pescado e combatendo preconceitos. “Fomos os primeiros a valorizar a importância da diversidade do nosso peixe e a lutar contra o esquecimento das várias espécies”, diz-nos.

Pedro Bastos já conseguiu inverter a situação e salvar várias espécies deste procedimento, levando a que fossem registadas. “Se não estiverem catalogados têm de os deitar fora ou são multados”, alerta. Safio, pata-roxa, tamboril, charroco, enguia, raia, tramelga, ruivo, salmonetes, cherne, sargo, espadarte, goraz, linguado, azevia, faneca, espada-preto, carapua, sardinha, cavala, alabote, abrótea,bodião, boga,choupa, corvina, ferreira, pargo, rascasso, alecrim, cantarilho, judia, moreia, salema, xarroco, dobradiça, espadim, imperador, lírio, cavala, merma, mucharra, raia, roncador, sarda, sargo, tintureira, xaputa, são apenas algumas das cerca de 150 espécies que povoam as nossas costas.

Provavelmente, nunca os provou nem sabe que existem, apesar de Portugal pescar cerca de 150 toneladas por ano. O país detém a terceira maior Zona Económica Exclusiva (ZEE) da União Europeia. Confrontamo-nos com problemas como a pesca excessiva, o excesso de peixe capturado e a destruição de habitats. Igualmente os peixes capturados com tamanho inferior ao da norma são deitados fora porque não podem ser vendidos. O mar parecia inesgotável, mas muitas espécies arriscam a desaparecer, o que coloca em risco a sustentatibildade, pelo que esta fragilidade exige novas regras internacionais de controlo.
 
“Escalar o peixe é um crime”

Para além desta generosidade com que o Atlântico nos bafeja, possuimos uma história e património invejável na ligação do homem com o mar. Não é por acaso que somos tão ictiófagos. É que desde tempos imemoriais o peixe faz parte da nossa alimentação, sobretudo porque não tinhamos dinheiro para comprar carne. O bacalhau é um dos nossos símbolos identitários, bem como a sardinha, sobretudo por essa razão. E no que ao bacalhau diz respeito, fomos pescá-lo bem longe da nossa costa, mas assim o adotamos.

É um facto que atualmente a pesca artesanal está em extinção, mas estas artes de pesca, redes e anzol preservam-se ainda em alguns redutos tradicionais do país. São um tesouro e, por isso mesmo, deveriam ser mais protegidas. Os barcos de arte xávega, pesca artesanal com barcos saveiros, tipo meia-lua, estão em extinção, por exemplo. Este tipo de pesca remonta ao século XVII e ainda sobrevive para além de Espinho, em Ovar, no Furadouro, Mira, Torreira, Vieira, Pedrógão, Costa da Caparica e Sesimbra, apesar de infelizmente ser cada vez mais rara.

Mas são inúmeras as comunidades de pesca artesanal que ainda tentam sobreviver ao longo do litoral, símbolo da nossa cultura. Os pescadores são, aliás, grandes cozinheiros. Dominam a arte da caldeirada, sabem amanhar, marinar, grelhar e guisar com mestria.

Com todas estas matérias-primas de excelência que o mar nos proporciona (para não falar dos mariscos e moluscos), os criadores na cozinha excitam a sua imaginação sobretudo com peixe e com o peixe conseguem exprimir-se. 

Cabe sobretudo aos chefes de cozinha dar a conhecer novas espécies desconhecidas e trabalhá-las de forma atrativa, caso contrário não saimos do rame-rame dos peixes habituais, sem evoluir, correndo, ao mesmo tempo, o risco de esgotar alguns recursos naturais. Caso se decida diversificar, alivia-se a pressão exagerada sobre algumas espécies.

Os chefes de cozinha, normalmente sentem-se mais desafiados com peixe do que com carne e conseguem, por vezes, pura poesia do oceano no prato. É uma matéria-prima exigente e delicada, por isso desafiadora e causdadora de mais dificuldade na confeção. O ponto de cocção é aqui da maior importância. O nível de humidade faz com que coza rapidamente e por isso na grelha bastam dois minutos e as cozeduras a baixa temperatura não ultrapassam os 50 a 60º. Por vezes, o melhor é mesmo saboreá-los, crus, na sua excelsa frescura marítima. 

O tempo e as técnicas para atingir a perfeição do ponto de cozedura são essenciais. A altura de retirar o peixe (pela força de inércia continua a sua cocção alguns instantes depois de retirado do fogo) é, assim, fulcral. E tudo se pode aproveitar, das mílharas à pele, do fígado à espinha...

Rui Silvestre, à frente do restaurante Vistas, em Vila Nova de Cacela, espaço que integra o Monte Rei Golf & Country Club, é outro jovem chefe com uma nova estrela Michelin e, igualmente, só trabalha com peixe e marisco. Aliás, foi o mais jovem chefe a receber uma estrela, em 2015, (quando estava ainda no restaurante Bon Bon, no Carvoeiro). “Saber escolher um peixe, perceber a frescura do produto, a pesca sustentável e a sazonalidade, variando as espécies, é o primeiro desafio quando se cozinha peixe, tendo em atenção que com a pesca massiva há espécies que correm risco de desaparecer”, afirma.

É o caso do salmonete ou dos lagostins, por exemplo, condenando muita gente que procura peixe fora das suas épocas, apesar de advogar que já muito tem mudado, mas o que falta ainda alterar relaciona-se com uma questão cultural. “O governo já impôs legislação que proíbe algumas capturas durante algum tempo e algo está a mudar. Há 20 anos, só se trabalhava com robalo, por exemplo, e hoje em dia já é diferente, mesmo assim. O movimento criado há anos por Bertílio Gomes, de usar cavala e outros peixes considerados menos nobres em ‘fine dining’, foi muito importante. Mas tudo depende da consciência de cada um”, enfatiza.O respeito pelo produto e sua cocção, evitando a sua desidratação, é dos principais conselhos que deixa. “Todos os peixes são bons para cozinhar, até o peixe-aranha é espetacular, desde que respeite a sua textura. Deve manipular-se o menos possível e ser rápido na confeção, observar a sua resistência”. Escalar o peixe, na sua opinião, é outro dos erros crassos dos portugueses. “É um crime. Deve sempre grelhar-se o peixe inteiro”, defende.

O consumo de peixe, em Portugal como nas outras sociedades europeias, está associado a motivações de ordem religiosa. O cristianismo impunha, como penitência, jejuns e a abstinência da carne e das gorduras animais numa boa parte do ano, o que tornava obrigatório o recurso ao peixe para escapar a uma alimentação inteiramente vegetal. As zonas costeiras eram abastecidas por peixe fresco, o que não sucedia nas zonas interiores – onde algum ainda chegava às escassas elites –, apesar de se recorrer ao peixe de água doce. Havia que o importar, como sucedia com a sardinha, abundante em toda a costa, mais acessível e transportada salgada, mas que não chegava para as necessidades da procura. Igualmente, o bacalhau, uma vez curado adequadamente, teria uma maior capacidade de conservação. Além disso, há um grande aproveitamento do seu corpo: das cabeças à língua, das caras aos sames ou fígado.

Outros pequenos peixes, como o carapau, seco pelos pescadores, ou o polvo eram igualmente secos para conservação.

“As pessoas só gostam de salmonetes, robalos e douradas. É preciso educar”

Outro apaixonado por peixe e pelos oceanos, contra ventos e marés, e que se assume como um “amante do mar” é Alexandre Silva, à frente dos restaurantes Loco e Fogo e igualmente detentor de uma estrela Michelin. “O mar sempre me fascinou, sou um amante do mar, da pesca e de tudo o que de lá vem, até tempestades”, conta.

Sobre o facto de os portugueses acabarem por consumir quase sempre as mesmas espécies de peixe quando possuem uma panóplia imensa e eclética à sua disposição, Alexandre sublinha que se trata de “uma questão cultural e snob”. “Só dão valor ao robalo, douradas e salmonetes. Existem muitos outros peixes tão bons ou melhores. Mas as próprias pescas são orientadas para o que o cliente consome. A DocaPesca tem imensos projetos para colocar as pessoas a consumir outro tipo de peixe, mas tem sido em vão. É preciso educar”.

Alexandre põe o dedo na ferida e foca o problema mais grave: é que “as pessoas preferem comer um robalo de aquacultura que vem da Grécia, e que demora sete dias para chegar à mesa, do que um carapau fresquíssimo e muito mais rico. É cultural”. Como erro mais comum em que se incorre na hora de confecionar peixe, aponta o dedo ao tempo necessário de descanso após abate e defende algo que nunca nos passou pela cabeça. “Cozinhar o peixe demasiado fresco é um erro. Também não comemos carne de porco acabada de abater. Os peixes azuis dão melhor para cozinhar quase vivos mas, por exemplo, um pargo de seis quilos precisa de uns dias pendurado no frio para a carne poder descansar”.

De facto, quem vai ao Fogo ou ao Loco vê sempre peixes diferentes. Isto porque Alexandre Silva está alerta para o problema e vai ele mesmo à lota fazer leilões. “Compro o melhor e o mais fresco. Por vezes, são os clássicos, mas é preciso sensibilizar e quebrar preconceitos acerca de alguns peixes”. De facto, as pessoas não conhecem e desconfiam, rejeitando. Mas o melhor é mesmo experimentar. Há tantos sabores e texturas diferentes que será um desperdício provarmos sempre o mesmo. “A maioria das pessoas abomina pescada porque nunca comeu pescada de anzol fresca, com a carne firme. É um peixe de uma qualidade extrema”, enfatiza. E como peixes seus preferidos, na hora de comer, aponta o carapau dourado, os salmonetes, a anchova e o lírio. 

De facto, há muitas razões para consumir pescado: é um alimento de fácil digestibilidade, o que o torna adequado a todos os escalões etários, tendo baixos níveis de colesterol. As suas proteínas têm todos os aminoácidos essenciais, sendo de realçar os níveis de lisina, a riqueza extrema em vitamina A, vitamina D (fundamental na absorção do cálcio e do fósforo) e vitamina E (efeito antioxidante). 

Distinguem-se ainda de outros alimentos pela exclusividade de uma gordura muito saudável devido à presença de ácidos gordos polinsaturados do tipo Omega 3 de cadeia longa que, para além da sua importância nutricional, são também muito benéficos na prevenção. Alguns autores sustentam mesmo que o desenvolvimento do cérebro humano e a diferenciação de outros primatas só foi possível graças ao consumo de pescado. Saudável e saboroso, o pescado tem vindo a conquistar um lugar de topo numa escala de elevada reputação gastronómica e os chefes de cozinha acabam por ser os poetas que lhes dão outra segunda vida. Da próxima vez que for a um restaurante, arrisque e deixe-se levar pela descoberta. Isto se a ementa o permitir, claro.