Foi nas roças de S. Tomé e Príncipe que estas duas raparigas encontraram a inspiração para criar um chocolate único. Com um conceito “do grão à barra” (“bean to bar”) que obriga a deixar respirar o “terroir” e a chegar a uma espécie de chocolate “de garagem”, revela-se o caráter do produto e do território onde nasce. Uma versão “do prado ao prato” em matéria de chocolate, se quisermos. Tomoko Suga, uma japonesa de Quioto, que veio para Portugal investigar sobre fado e gastronomia (mas gostou tanto que acabou por ficar), e Susana Tavares, uma portuguesa de Viana do Castelo, mal sabiam que o zénite lhes iria permitir um encontro, em Aveiro, que os deuses quiseram acabar em chocolate.
O resultado é um produto singular no mercado português, completamente natural e feito ao ritmo lento da respiração do cacau, que pede o domínio da arte de torrar, moer e temperar chocolate.
Na “Feitoria do Cacao”, tudo se faz ao ritmo do coração. Depois de selecionados os grãos do cacau ainda cru, são elas mesmas que os torram, separam as cascas, moem e temperam o chocolate, chegando também a embalá-lo. Como dizia Álvaro de Campos, “não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. Sobretudo se forem feitos à mão. Ainda melhor: a quatro mãos.
O poder do cacau começa logo no aroma. Um odor adocicado que nos faz abrir as narinas e fechar os olhos mal se entra na “Feitoria do Cacao”, em Aveiro. Não será por acaso que os cientistas descobriram que comer chocolate potencia as mesmas sensações de estar apaixonado e suscita uma descarga de serotonina e endorfinas. E depois do prazer há sempre uma substância química presente: o triptofano, que o chocolate possui. Ou seja, o prazer vicia o cérebro e já não há nada a fazer. Fundamental para experienciar estes momentos é que o chocolate em causa seja de grande qualidade, da produção à confeção.
A filosofia de produção é totalmente “craft” e em pequenas quantidades, o que permite alcançar um produto final com uma sapidez única, o que não passou ao lado dos “Academy Chococlate Awards” de 2019 que premiaram cinco produtos da Feitoria.O chocolate de leite Nicarágua 57% conseguiu a medalha de prata. Com prémios de bronze foram ainda distinguidos o chocolate de leite Tanzânia 60%, com leite de ovelha, que já era o mais premiado da coleção, e o de chocolate branco 45% com leite dos Açores que se estreou nos medalhados da competição.
Como produtoras que controlam todos os processos num circuito fechado, conseguem estar atentas aos ínfimos detalhes e respeitar a natureza de cada grão. Para além disso, têm uma relação direta com as cooperativas e produtores de cacau com garantia de melhores preços e ótima matéria-prima em zonas normalmente de pobreza extrema e que assim vêem remunerado o seu trabalho de forma justa.
Nicarágua, Costa Rica, Tanzânia, Colômbia, S. Tomé, Peru ou Ilhas Salomão são alguns dos lugares de onde são originários os grãos que compram, sendo assim a origem, variedade e ano de colheita fundamentais para conferir personalidade ao chocolate final, assim sempre fresco. Todas as variedades possuem mais de 50% de cacau.
Esta forma artesanal e quase “tailor made” no modo de confecionar estabelece parâmetros onde o sabor, a textura e o aroma se conjugam de forma harmoniosa.
Tal como num vinho, em que a baga e o seu local de nascimento obrigam a diferentes procedimentos, o mestre chocolateiro, tal qual o enólogo, só tem de deixar respirar a Natureza da melhor maneira para um final feliz. E falamos de produtos com alto teor de flavonóides e anti-oxidantes, ambos com fermentações.
Ou seja, em lugar de adquirirem, como a grande maioria, a pasta de cacau já feita, vão à origem para obter os melhores grãos de cacau diretamente ao produtor, sem intermediários e com preços equitativos. De seguida, elas mesmas controlam toda a produção: torram, moem numa mó de pedra e temperam. A formação foi também essencial. Ambas frequentaram um curso de Chocolate Maker e outro de Professional Chocolatier, na Escola Profissional das Artes do Chocolate, em Vancouver, no Canadá.
A compasso do ritmo do coração
Descemos as escadas até ao lugar onde acontece a magia. É aqui que se despejam os grãos dos sacos de juta e no ar um aroma agridoce de chocolate deixa-nos já tontos. Vêm diretamente dos territórios dos cacaueiros que produzem numa faixa de 20º de latitude da linha do Equador, duas vezes por ano. A transformação dos grãos em pó é um processo complexo que comporta diversas etapas: fermentação, secagem e torrefação, descasque e moagem.
O fruto do cacaueiro, uma grande cápsula, mede 15 cm de comprimento e 10 cm de largura e contem 30 a 40 grãos que originarão o cacau (Theobroma cacau).
A árvore perenófila é linda e cresce em ambientes quentes e húmidos, em densas florestas e solos argilo-arenosos.
Apesar de derreter em segundos na nossa boca, também a produção tem muito que se lhe diga. É intensiva e artesanal, já que as diversas etapas exigem procedimentos manuais ao longo de todo o processo. Depois da colheita das favas, coloca-se a fruta com a sua polpa em caixas de madeira para o processo de fermentação. Este processo pode durar de dois a cinco dias, dependendo do produtor. A colheita é manual, pois os frutos não amadurecem ao mesmo tempo. Além disso, deve ser feita cuidadosamente para evitar danos na camada externa do caule.
Os frutos ou favas são cuidadosamente colhidos maduros, sendo a sua maturação determinada em função da cor e pelo ruído que o fruto faz ao ser levemente sacudido.
Em seguida, os frutos são abertos e as sementes selecionadas. Segue-se então a etapa de fermentação dos grãos, com a consequente formação de numerosos compostos que determinam o sabor e o aroma (bouquet) posterior. Como vemos, algo de muito similar com o vinho ou o chá ou café.
Depois, ocorre a fase da secagem, na maioria das vezes feita ao sol. Contudo, em climas mais húmidos exige-se a colocação em estruturas com circulação forçada de ar quente acionadas por ventiladores. As sementes perdem, desta forma, quase toda a humidade, o que resulta na redução de mais da metade de seu peso.
São esses grãos que temos agora à nossa frente e que as mãos de Susana selecionam, a olho clínico, de forma a evitar os que estão partidos. De seguida, vão para um forno ser torrados. “Jogamos com as características de cada grão, da região de onde vem, do território, para aplicar tempos e temperaturas. Todos os dias se descobrem novas coisas sobre este mundo”, conta Susana.
A chamada “curva da torra” parece simples, mas não é. Esta fase é de grande importância já que o procedimento de torra influi no sabor e aroma, devendo ser efetuada de forma delicada para não retirar algumas notas aromáticas importantes. Mais uma etapa se segue: a de descascar os grãos, na Winnower, que parte os grãos e, através do ar, aspira as cascas.
Segue-se a moagem nos moinhos de pedra de granito, “a hora mágica”, segundo defende Susana. “É nesta altura que se revela a alteração de texturas, o encanto de ver a matéria-prima a transformar-se. Acontece a magia, quando o cacau verdadeiramente se transforma em chocolate”, diz-nos. Acrescenta-se um pouco de açúcar demerara, do Paquistão, menos processado, cor de caramelo. “Fizemos várias provas de açúcar e escolhemos este. Podemos colocar ou não, depende do cacau e da quantidade adicionada”. Depois de moído o chocolate, é aquecido e exposto à circulação de ar, para desaparecerem os ácidos voláteis, operação que pode durar até 48 horas.
Como metade é gordura (manteiga de cacau), vai-se tornando uma pasta aveludada.
“A nossa intenção é sempre realçar as caraterísticas de cada grão e de cada território. O chocolate é produzido em micro-lotes, sem qualquer tipo de adição de edulcorantes ou corantes, daí o sabor ser tão íntegro e diferente. Isto obriga a um processo mais lento de produção”, enfatiza Tomoko. Pronto para a fase da maturação, onde vai ganhar complexidade e passar por um processo de evolução. “Com o tempo, o chocolate vai alterando o sabor. Algum cacau com o tempo fica melhor, com os taninos mais redondos, mais integrados. Tal como o vinho”, realça Tomoko. Finalmente, é tempo de temperar, outra fase do processo artesanal de forma a conseguir um produto final macio, seguindo-se a moldagem, etapa na qual o chocolate ainda pastoso é colocado em formas para que adquira o formato desejado. Depois os chocolates são esfriados até ficarem sólidos.
Negro, de leite dos Açores, branco, com chá verde ou flor de sal
Ouvir o chocolate é um passo essencial. Caso não faça aquele ruído seco e forte ao partir esqueça. Também a observação é importante. Deve ser liso e brilhante. Ao tacto, macio e sem qualquer tipo de grumos ou grãos à superfície. A sua textura e sabor na boca, bem como o seu aroma algo frutado, são outras das operações que se exigem na apreciação da sua qualidade. Isso mesmo se sente nestes chocolates.
A preocupação é sempre a qualidade e respeitar a natureza de cada cacau. Por isso produzem cerca de 30 mil barras anualmente e estão presnetes em apenas 40 lojas a nível nacional, exportando ainda para vários países do mundo. No portefólio, vários são os tipos de chocolate que pode ser negro ou de leite – sendo o leite originário dos Açores. Há ainda um chocolate de Matcha, o Bianchino, de café e canela, um 100% negro das Ilhas Salomão, o chocolate de leite Tanzânia com 60% de leite de ovelha, o branco e ainda o de leite com café da Colômbia, o da Nicarágua, com nibs (fragmentos de cacao torrados e triturados), o de S. Tomé com flor de sal de Aveiro, e do Peru Marañon que cresce a 1000 metros de altitude, um chocolate tão especial quanto raro.
O mundo das harmonizações e degustações de chocolate com vinho, chá ou café é sedutor. As notas do chocolate que podem ir da flor de laranjeira ao sândalo, da uva moscatel ao café ou frutos secos e mesmo mostarda, são pontos de partida para viagens plenas de sensualidade e prazer.
Como não há bela sem senão, é um facto que as calorias são muitas. Mas são tantas as compensações do chocolate para a saúde que ninguém se importa de arredondar um bocadinho. É rico em flavonóides e catequinas (como o chá verde), tendo, assim, efeitos cardioprotetores, positivos para o sistema circulatório, estimulantes cerebrais, entre outros. A epicatequina (EC) causa o incremento da capacidade antioxidante ,reduz o LDL e sobe HDL estimula a comunicação neuronal. Curiosamente, é também similar ao chá no que concerne a produção.
Prefira o chocolate negro, não só porque tem 112 mg. de magnésio (o de leite possui apenas 60 mg. por 100 gramas), como possui mais antioxidantes e duas vezes mais cacau. E, como tem menos açúcar, engorda menos. Para além disso, comer chocolate alivia o stress e a ansiedade, pela presença de metilxantinas (cafeína e teobromina) criando uma sensação de bem-estar e aumento de feniletilamina, uma substância do grupo das endorfinas. É ainda rico em minerais como manganês, potássio, vitaminas do complexo B, ferro e cobre.
Os maias e aztecas veneravam o chocolate e consideravam-na a bebida dos deuses, expressão que se reflete na palavra latina emprestada do grego “Theobroma”. Durante a civilização maia, a partir de suas sementes, era feita uma bebida amarga chamada xocoatl, geralmente temperada com baunilha e pimenta. O xocoatl, acreditava-se, combatia o cansaço, além de ser afrodisíaco. Devido ao seu intrínseco valor, os grãos eram usados como moeda, sendo que 100 favas valiam um escravo. Podemos aquilatar, desta forma, o valor dos grãos de cacau... Com todas estas razões anímicas e químicas para comer chocolate puro, nada como experimentar estes da “Feitoria do Cacao”. O único problema é parar.
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