O segredo, explica André Barbosa, enólogo da Poças Júnior e “guardião” da receita do sável fumado ‘à moda da Poças’, reside sobretudo na salmoura. E, claro, na qualidade do peixe, bem como no serrim utilizado para fumar o sável. E, já agora, na barrica, que isto de fumar peixe pede vasilhame condigno.
É quase inexplicável o prazer que dá ter diante dos nossos olhos um exemplar de sável tão fresco e bonito, com o prateado característico, os seus 4,5 kgs., pescado na Foz do Sousa - de onde, esclarece André Barbosa, será originária a receita. Tanta beleza que até nos faz duvidar da lenda sobre a criação do sável. Esta reza que, sensível aos lamentos pela fealdade e menosprezo da sua fisionomia angulosa, o criador decide tornar o sável mais atraente e virar-lhe as espinhas para o interior – e assim terá ganho a característica distintiva das espinhas finas e abundantes. Este peixe gordo, de nome científico Alosa alosa, migra do mar para a desova no rio (anádroma) e, por isso, as fêmeas são os espécimes mais procurados, pois podem ter um bónus: as deliciosas e tão cobiçadas ovas.
Lenda ou não, a realidade é que o sável possui uma espinha central, também chamada pente, que os mais exímios conseguem retirar, cirurgicamente, de uma só vez, reduzindo o aborrecimento que constituem as espinhas. Para as amolecer, métodos como o escabeche ou a salmoura são fundamentais.
Mas já lá vamos. Primeiro, o achamento. Conta Pedro Poças Pintão, diretor comercial da Poças Júnior, que “esta tradição do sável fumado já vem de há muitos anos das casas do Vinho do Porto. O meu pai (Manuel Poças Pintão) falava muito dela e eu próprio já tinha provado algumas vezes. Entretanto fizemos obras no nosso armazém e surgiu-nos esta barrica de sável, que nem conhecia, e pensamos que estava chegado o momento de recuperar a tradição”. Baseada no universo do Vinho do Porto, em que “os barqueiros e tanoeiros tinham acesso ao peixe e às barricas, seria uma forma prática de conservação”, refere.
Entretanto, a tradição foi desaparecendo. Por um lado, “a população de sável tende a diminuir”; ao mesmo tempo, “os tanoeiros são cada vez menos; o barco rabelo, enquanto meio de transporte, também – nos anos 30 eram 300 os inscritos, mas na década de 60 já assistimos ao seu declínio”. Por isso, “toda esta transformação da indústria” levou à decadência da prática, resume Pedro Pintão. A Poças tem desenvolvido “um esforço para recuperar um pouco deste imaginário, não só desta receita mas também de outros produtos, como o vinho quinado (lançado há quatro anos atrás) e, há dois anos, o vermute”. E, quem sabe, num futuro próximo, será possível conhecer ‘in loco’, no próprio armazém da Poças, a técnica de fumagem do sável na pipa…
A pipa encontrada nos armazéns da Poças obedece a critérios rigorosos: desde logo a dimensão, uma meia-pipa de 225 litros. Sem fundo, para que, quando apoiada em quatro pés ou calços de madeira, possa ficar a uma pequena distância do chão e, assim, deixar passar o ar; um tampo, aberto, com uma grelha de arames, onde o peixe é pendurado para fumar; uma abertura a meio, para observar o interior e aferir do andamento da fumagem quando necessário.
O serrim utilizado para a fumagem é de duas consistências (em pó e lascado), retirado da parte interior das pipas de Vinho do Porto, o que confere a componente aromática à operação. Este serrim é inserido numa malha de arame em forma de charuto, com cerca de 30 cms. de comprimento, e colocada sobre uma base de metal, chamada fogacho. Neste instrumento era criado, alimentado e sustido pelo tanoeiro o fogo que, no interior da pipa, gerava o calor necessário para trabalhar as aduelas. No chão, a parte de baixo do fogacho é preenchida com o restante serrim, que irá queimar gradual e lentamente, sem nunca fazer chama.
Salmoura e película aderente
Agora que conhecemos a técnica de fumagem, vamos tratar da salmoura e da preparação do peixe. A receita obriga a filetar o sável e retirar o pente, algo que André Barbosa faz com grande mestria.
A preparação da salmoura (ver abaixo) exige sal grosso, açúcar mascavado, raspa de limão e funcho. O açúcar forma uma película protetora que confere rigidez à salmoura e derrete com o calor. E convém estar munido de bastante película aderente, que irá prender e ligar a salmoura à carne do sável, para garantir que este não lasque e que a salmoura envolve bem o filete.
O objetivo da salmoura, que desidrata o peixe, visa sobretudo amolecer as espinhas mais finas, para que estas não se sintam. Mas confere textura e aromaticidade ao preparado final, antecipa André Barbosa, que reconhece ter feito um exaustivo “trabalho de pesquisa para ver como a receita era feita e poder recriá-la na Poças”.
Nesta receita, o peixe fica em salmoura por um período de 48 horas e é fumado durante 12 horas. Durante o processo de fumagem que pudemos assistir na Poças, vêem-nos à mente imagens dos longos períodos que barqueiros e tanoeiros passavam no rio, ainda livre de barragens e eclusas, reconfortados pelo morrão da brasa perene que bruxuleava no interior da pipa e pela expectativa de um delicioso sável, muito provavelmente acompanhado pelo vinho fino do Douro.
Depois de concluída a operação e com o peixe já cortado em pequenas porções, “temos como resultado final um prato em que, à gordura e textura do peixe e das ovas, é acrescentado o fumo, mas também uma nota caramelizada do açúcar, cortada pela frescura do limão e a aromaticidade do funcho”, resume André Barbosa. Caso pretende servir em posta ou filete, pode acompanhar com batata a murro e grelos salteados. Pode também servir em tosta, com abacate e ovo escalfado.
No capítulo das harmonizações, André Barbosa selecionou dois brancos. É preciso não esquecer que, neste particular, jogam papel crucial o elevado teor de iodo do sável e a composição média de gordura, que ronda os 12%. Assim, para o peixe propriamente dito, o enólogo escolheu o Branco da Ribeira da Poças, pois “é um vinho com acidez crocante que suporta a gordura do peixe e tem um ténue fumo do estágio em barrica que liga muito bem”. Para as ovas, “que têm uma textura mais pastosa mas ganharam o aroma da barrica”, escolheu o Poças 10 Anos Branco, que “aguenta a maior concentração e textura das ovas” e “limpa o palato” mas, em simultâneo, oferece “nuances de ligação com os aromas do Vinho do Porto”. Como nem todos terão as condições essenciais necessárias para replicar esta receita em casa, deixamos uma alternativa, que poderá preparar no forno. O sucesso é garantido e, no final, uma certeza – quando provar, vai ficar a ver barcos rabelos…