Herdada da Calada - A Évora clássica

Fotografia: Ricardo Garrido
Célia Lourenço

Célia Lourenço

Os vinhos da Herdade da Calada são verdadeiros clássicos da região de Évora, redondos, com algum calor, expressivos no estilo. Também têm uma certa discrição e não nasceram para ser exuberantes. Têm uma tranquilidade e uma atitude absolutamente reveladoras.

 

Há uns tempos, numa formação sobre vinhos do Alentejo, alguém me perguntava porque é que os vinhos de Évora são os mais clássicos. A resposta parece tão óbvia quanto interessante parece a pergunta…


Évora é uma das oito sub-regiões do Alentejo vitivinícola e é, sem dúvida, a que tem a história mais rica. No século XV é criado, por exemplo, o cargo público de “guarda das vinhas de Évora” em documento assinado por D. João II, sendo este um dado bem interessante para perceber a que ponto essas vinhas eram importantes. E, se não quisermos aprofundar mais testemunhos históricos, temos já aqui uma visão clara de quão antiga é a história do vinho em Évora. Também não seria, certamente, por estar na base de produção de vinhos menores que as vinhas tinham de ser guardadas. Ou seja, neste pequeno pormenor de uma história de muitos séculos, temos os indícios necessários para a resposta que procuramos. Os vinhos de Évora tornaram-se clássicos porque o tempo foi demonstrando qualidade, um estilo consistente e uma personalidade que resistiu a modas.


Visitamos um produtor cuja história recente acompanhou, e acompanha, a enorme evolução dos vinhos alentejanos dos últimos anos, sentindo-se sempre que não procura protagonismo. A discrição é, talvez, um dos trunfos, seguindo um caminho próprio, um percurso que respeita o passado e que encontra formas de se reinventar. Estamos a falar da Herdade da Calada, cujos vinhos espelham muito bem o classicismo de Évora.


A propriedade remonta ao séc. XIX (1854) e os primeiros proprietários foram os descendentes do Duque de Lencastre. Atravessa todo o séc. XX, passando por alterações, melhoramentos e diferentes donos. Já em 2000, a construção da adega é um marco na herdade, enquanto os vinhos começam a ser reconhecidos comercialmente. Rótulos como Herdade da Calada, Vale da Calada, Caladessa e Baron de B., este último título do então proprietário alemão, sucedem-se a cada colheita, ainda nos primeiros anos de 2000. Nessa altura, os vinhos tinham a assinatura de Paulo Laureano, cujo nome é uma referência na enologia nacional, e no Alentejo em particular.


E chegamos a 2007, ano de grandes mudanças para a Calada. A herdade é vendida a um casal, ela portuguesa, ele francês, que se encanta com a beleza do lugar. D. Maria, como carinhosa e familiarmente é tratada por todos, e Jean-Claude Penauille são os produtores da Herdade da Calada que iniciaram, também, a oferta hoteleira na propriedade. No mesmo ano, a enologia passa para Eduardo Cardeal.

 

A tranquilidade dos vinhos 

 

A Herdade da Calada tem 420 hectares, que se estendem por uma paisagem profundamente relaxante: vinhas, montado, cereais, olival e uma barragem que magnetiza quem por lá passa. 
Com 18 castas diferentes, numa área de 35 ha, a vinha distribui-se por cinco blocos, em solos argilo-arenosos. A vinha mais velha terá à volta de 50 anos e toda a viticultura caminha no sentido da obtenção de vinhos orgânicos. Aliás, a adega, que funciona exclusivamente por gravidade, faz prestação de serviços para clientes externos somente na vinificação de vinhos orgânicos.


A produção anual ronda as 220.000 garrafas, das quais mais de 80% se destinam a mercados externos. A Herdade da Calada produz também azeite, a partir dos seus 110 ha de olival, e carne, com 130 vacas. 
Eduardo Cardeal, como já dissemos, é o enólogo e diretor de produção vitivinícola desta nova fase da Herdade da Calada. Fala com empenho de todo o projeto e percebe-se a enorme ligação àquelas terras, mesmo sendo alguém que nasceu, cresceu e se formou em Trás-os-Montes. De todas as variedades de uva que existem na Calada, elege algumas pelos resultados que tem vindo a obter. A Tinta Caiada, por exemplo, que está na base do lote do Caladessa, é uma casta que evolui e envelhece de forma muito elegante, com particular interesse para os vinhos da casa. Já a Touriga Franca, de uma vinha com sete anos, é uma casta que tem entusiasmado o enólogo, dizendo-nos mesmo que a considera a variedade ideal para o Alentejo, porque alia a maturação a um teor baixo de açúcar. Desta forma, teve já direito a protagonismo no Herdade da Calada Touriga Franca 2015. Esta é a primeira edição deste varietal, com 2.000 garrafas e um estágio de 12 meses em carvalho francês. É um vinho que, além de uma elegância particular, se distingue por uma leveza aparente muito original e por uma cor radiosa, que se aproxima de tons violeta.


Uma outra casta tinta com a qual percebemos haver uma relação especial é o Alfrocheiro que, segundo as palavras de Eduardo Cardeal, se exprime na Calada de uma forma muito bonita, com notas de terra, tijolo molhado e acidez vibrante.
Nas brancas, Arinto e Alvarinho estão a dar ótimos resultados, estando a Calada, neste caso, a seguir um caminho que muitos outros produtores do Alentejo também seguem – escolher estas castas pelos atributos de frescura e acidez, tão necessários para encontrar equilíbrio em terras tão quentes. Ambas entram no lote do Caladessa branco, juntamente com Fernão Pires, enquanto para o Baron de B. é usado apenas Antão Vaz. Interessa registar a evolução que este vinho tem tido em termos de estilo. Com a primeira colheita em 2001, sempre foi um daqueles brancos a que nos habituámos a chamar “de inverno”. Fermentado em madeira nova, com peso e corpo, longe de qualquer imagem de leveza. O 2015 fermentou em carvalho francês em barricas de 300 litros, metade das quais usadas. Ou seja, continuando a ser um vinho intencionalmente encorpado, a madeira marca-o menos e segue um perfil que cada vez mais os consumidores preferem.


A vindima de 2017 foi a primeira que se fez à noite, começando às 3h e terminando às 11h, afirmando-se como a melhor forma de contornar o calor, tanto para as pessoas que vindimam manualmente, como para as uvas, que chegam à adega em condições perfeitas.

 

Vinhos que evoluem

Maria recebe-nos de forma genuinamente simpática e acolhedora. Mas as tarefas continuam e apenas a cumprimentamos quando chegamos, conseguindo tê-la mais algum tempo por companhia quando nos mostrou os vinhos. Ali trabalha-se. A herdade não para, recebem-se hóspedes, a adega cumpre a função após a vindima, preparam-se encomendas, atende-se o telefone.
Maria e Eduardo Cardeal prepararam não só as colheitas mais recentes e as novidades, como o Touriga Franca que já referimos, como também quiseram mostrar-nos vinhos mais antigos. Foi assim que, após o Baron de B. Reserva 2014, recuámos a 2005 e a 2001.


O 2014 é o resultado de vinhas com mais de 30 anos, com estágio de 18 meses em barrica de carvalho francês. Se já falámos de classicismo, aqui estamos perante um ótimo exemplo de um tinto alentejano clássico, a partir da também clássica trilogia de castas: Alicante Bouschet, Aragonês e Trincadeira. É um vinho concentrado, vigoroso e aromático, com um estilo mais maduro associado a uma frescura vegetal muito apelativa. Apesar da juventude, com a madeira bem presente, os taninos não ferem, sentindo-se redondo. Quanto ao 2005, a cor está mais aberta, com laivos granada, todo ele evoluído, com notas de outono, folhas molhadas, algum chocolate preto e sugestões de figo. A acidez segue toda a prova e mostra-se fundamental para o carácter que este vinho ainda apresenta. Por fim, o 2001 é um vinho que precisa arejamento generoso antes de ser bebido. O nariz parece um pouco cansado e apresenta também um perfil mais maduro, com passas e notas que associamos a vinhos velhos. E, se os aromas parecem revelar um vinho bastante mais evoluído, a boca vem mostrar potência, taninos e acidez, ainda algumas notas verdes e uma vibração muito saudável e surpreendente.


Para terminar, provámos o Herdade da Calada Grande Reserva 1999 para ficarmos a perceber a relação que estes vinhos têm com o tempo. E ainda bem que assim foi porque este vinho com 18 anos tem uma elegância e sobriedade marcantes, com aromas bonitos de cogumelos e ameixa passa, uma textura discreta e aveludada. Tem idade, é alentejano e isso sente-se. E é bom que assim seja. Todo esse carácter foi trabalhado pelo tempo da melhor forma, com generosidade e rigor.


Os vinhos da Herdade da Calada são verdadeiros clássicos da região de Évora, redondos, com algum calor, expressivos no estilo. Também têm uma certa discrição e não nasceram para ser exuberantes. Têm uma tranquilidade e uma atitude absolutamente reveladoras da sua personalidade.
 

Artigo publicado na edição nº 338, de Janeiro de 2018, da Revista de Vinhos.