O regresso do lúpulo

Cervejas

Fotografia: Fotos D.R.
Luís Alves

Luís Alves

O caminho é semelhante a outras culturas. De grande produção para apenas residual e quase insignificante. O lúpulo é uma dessas culturas agrícolas que sofreu uma grande mutação. Nos anos 60 e 70 do século passado produziam-se em Portugal quantidade suficiente para “lupular” toda a cerveja produzida em território nacional. Hoje o país tem focos residuais de produção. Em Bragança, em Braga e também em Santa Maria da Feira. A Revista de Vinhos foi conhecer este último caso, com a ajuda do produtor Gabriel Cardoso, um professor de química que quer trazer de novo a cultura do lúpulo à ordem do dia.

 

A pergunta inicial, para quem possa desconhecer este ingrediente da cerveja, é para que serve o lúpulo?
A base da cerveja, que depois pode ter outros ingredientes, é a mesma desde há muitos anos. Desde o século XVII, pelo menos: água, malte, lúpulo e leveduras. O lúpulo é o responsável por conferir amargor e aromas à cerveja. Mas a tarefa principal deste ingrediente é servir de conservante. Sem lúpulo, a cerveja ficaria doce e estragar-se-ia muito rapidamente.

Como decidiu produzir lúpulo?
Sou filho de lavradores. A minha família tem ligações à agricultura desde há várias gerações. Não é uma questão de moda ou experimentação. Gostamos disto e é no campo que estamos realmente bem. E em casa dos meus pais assinávamos a versão brasileira de uma revista americana. E lembro-me, ainda em miúdo, de ter visto um artigo sobre o cultivo do lúpulo. Ficou-me na memória. Depois segui outro percurso na minha vida profissional, sou professor de Química mas comecei a ver que estavam a nascer alguns cervejeiros artesanais na minha região e no resto do país. Achei que seria finalmente altura para experimentar essa cultura que tinha lido há tantos anos nessa revista em casa dos meus pais.

E foi fácil arrancar com esse plano?
Mais ou menos. Comecei a ler e a estudar sobre o assunto e percebi que em Portugal a produção quase se tinha extinguido. Existe uma ou duas plantações em Bragança e outra em Braga. Todas da mesma variedade, a Nugget. Importei então uns rizomas (caules subterrâneos) e fiz a minha primeira plantação, em Santa Maria da Feira. E logo nesse primeiro ano tive uns cones (flores). Mostrei-os ao Vítor [Silva, da Cerveja Vadia] e ele ficou entusiasmado por ver lúpulos de outras variedades que não a habitual e por ser de produção local.

E depois?
Propus-lhe fazer uma cerveja com os meus primeiros lúpulos. E ele aceitou.

Mas produz em grande quantidade?
Este ano tive uma produção de 80 kg, o que permite fazer dezenas de milhares de litros de cerveja. O lúpulo é uma “pena”. Pesa muito pouco. Não é como o malte. Este ano de cultivo que terminou (a colheita foi em setembro) plantei cerca de 2500 m2, com seguramente mais de meio milhar de plantas.

Como descreve a planta do lúpulo?
É uma cultura exigente que requer muito trabalho e muitos cuidados. Cresce em altura, com umas estruturas que chamamos “trepas”. No primeiro ano de cultivo tem uma produção residual mas no terceiro ano já chega a uma velocidade cruzeiro. No inverno toda a parte aérea morre e depois volta a crescer na primavera. Os rizomas, uma vez instalados no terreno, podem viver até 25 anos. Vão crescendo, conquistando espaço e ficando mais fortes.

 

O declínio da cultura em Portugal

Porque é que a área de cultivo diminui tão drasticamente em Portugal nos últimos 50 anos?
Acho que existem várias razões. Uma delas é o incontornável preço pago à produção. 30€/kg ou menos ainda não chega para pagar o trabalho. Depois o facto de ser uma cultura muito trabalhosa que num ano mau pode simplesmente ficar comprometida. A concorrência externa também aumentou ao longo do tempo e esse foi outro fator decisivo. Mas existem mais. O trabalho que a cultura dá não termina na colheita. Existe depois todo um processo de secagem dos cones, a compressão e ainda a colocação em vaco. E não fosse tudo isto suficiente, os cervejeiros não gostam de trabalhar com o lúpulo em flor porque entope os filtros das suas produções. Ou seja, existe ainda um passo extra para ter o produto terminado que é transformar os cones em pellets.

E foi isso que fez com a sua produção deste ano?
Exatamente. A quase totalidade dos meus 80 kg de lúpulo foram “pelletizados”, através de uma máquina alugada em Paços de Ferreira. Os cervejeiros gostam mais de trabalhar o produto assim e confere outra densidade de sabor à cerveja.

Para além da produção de lúpulo propriamente dita, os rizomas também poderão ser negócio?
A ideia é essa. A “Lúpulo Feirense”, marca que criei a propósito de tudo isto, tem servido como viveiro, ao apoiar pequenos produtores, caseiros ou mesmo alguns cervejeiros que queiram produzir o próprio lúpulo. Os rizomas desenvolvem-se muito facilmente e é possível destacar para vender. Acho que pode haver uma grande vantagem em termos lúpulo produzido em território português. Neste momento quase todo o lúpulo é importado. Mas por melhor guardado que seja, ao viajarem centenas de quilómetros perdem qualidades. Um lúpulo guardado ao fim de seis meses já só conserva 60 a 70 % das características iniciais.

E existe uma consciência à volta de tudo isto? Os cervejeiros estão recetivos?
Sim! Isto começou por ser uma ideia minha mas já extravasou esse plano pessoal. Com a produção de lúpulo veio o Festival da Cerveja, organizado em Santa Maria da Feira. Nasceu de uma proposta minha, com lúpulo oferecido por mim aos cervejeiros e em que os donos de bares da região aderiram, assim como o próprio município. Temos tido edições todos os anos desde 2016. A Cerveja Vadia, a propósito da comemoração dos 10 anos de existência, vai lançar uma cerveja com 10 lúpulos diferentes, todos produzidos pela Lúpulo Feirense e pela Lúpulo Maria. Ou seja, sim, existe uma consciência à volta de tudo isto.

E as colheitas? São uma espécie de vindima do lúpulo?
Sim, claro! Uma festa! Junto amigos e todos aqueles que queiram participar!
 

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