Após intensas jornadas de provas, exames e avaliações, foi declarado o vencedor do Concurso ASI do Melhor Sommelier da Europa, África e Médio Oriente 2024.
Realizado sob a égide da Association de la Sommellerie Internationale (ASI), órgão regulador global sem fins lucrativos da sommellerie, de entre os 41 participantes do concurso - entre os quais o português Marc Pinto - foi declarado vencedor o estónio Mikk Parre.
Um dos mais respeitados profissionais bálticos, com diversos prémios conquistados ao longo da ultima década, Mikk Parre é responsável de vinhos do Bombay Group, em Talin.
O evento final do concurso, que decorreu em Belgrado, capital da República Sérvia, teve lugar no Teatro Nacional, tendo-se defrontado três concorrentes de diferentes nacionalidades.
O lote de semifinalistas era composto por Suvad Zlatic, da Áustria, o belga Antoine Lehebel, o luso descendente dinamarquês Jonathan Gouveia, Mikk Parre da Estónia, a gaulesa Pascaline Lepeltier, o alemão Florian Richter, o grego Eleftherios Hanialidis, o transalpino Francesco Cosci, Martynas Pravilonis da Lituânia, o neerlandês Lukas Wiegman, o norueguês Francesco Marzola e o polaco Tomasz Żak.
No arranque da final, os 12 semifinalistas perfilaram-se no palco e um por um, os nomes dos candidatos foram caindo, até restarem apenas três concorrentes: a francesa Pascaline Lepeltier, o lituano Martynas Pravilonis e Mikk Parre, da Estónia.
A fase final da competição demonstrou logo nos quartos de final a intensa pressão a que os sommeliers são sujeitos. Provas técnicas de vinhos e outras bebidas, rotinas de serviço e exames escritos contam-se entre os items a que os concorrentes devem responder, sob o olhar rigoroso do júri do concurso. Não é para menos, quando este painel de avaliação é composto por nomes de peso, como o italiano Paolo Basso.
No conjunto, a prova final consistiu em sete tarefas. Os finalistas foram sujeitos a situações reais de serviço em cada uma das três mesas postas no palco - ambiente, diga-se, contranatura e até hostil para os concorrentes, pois, para além de estes não estarem ambientados com a "sala" e a localização dos 'instrumentos' de trabalho, era palpável a tensão emanada da plateia. Pequenos deslizes, como deixar escorregar uma garrafa, um erro de classificação ou o descontrolo do tempo disponível, são amplificados no silêncio da sala.
Os diversos membros do júri faziam os seus pedidos, desde aperitivos, sugestões de harmonização e digestivos, confrontando os concorrentes com questões práticas do serviço ou relacionadas com os vinhos e bebidas servidas - desde a bebida em si até à região de origem, castas, solos ou enologia - e avaliados em tempo real.
Provas cegas de vinhos e de outras bebidas que os concorrentes eram convidados a descrever e identificar, bem como comentar o método de produção, foram nova etapa da final. Em seguida, houve que colocar os copos das bebidas sobre um mapa e relacioná-las com as respectivas sub-regiões de origem.
Outra das tarefas consistia em analisar e corrigir eventuais erros e inconsistências de uma carta de vinhos. Tudo, acrescente-se, rigorosamente cronometrado. No fundo, resumiu-se a quem conseguiu controlar melhor os nervos e cometer menos erros.
Isso foi visível na tarefa final, a sétima, colocada aos três finalistas, a única levada a cabo em simultâneo: contrarrelógio, deviam responder por escrito às questões colocadas sobre 10 temas do mundo do vinho e espirituosos exibidos na tela do palco durante 15 segundos e apresentá-las ao público. Ao jeito de um concurso televisivo, algumas falhas foram inevitáveis, influenciando o resultado final. Refira-se que muitas destas questões foram levantadas nas diversas masterclasses que antecederam a grande final.
William Wouters - o belga mais bairradino de Portugal, presidente da ASI e também membro do júri da grande final - traçou as linhas gerais da competição e os desafios que se colocam aos próximos concursos regionais, que ditarão os melhores sommeliers das Américas e Ásia Pacífico em 2025.
Mas, lançando um olhar clínico sobre a sommellerie nacional, considera que "em Portugal é preciso que os profissionais tenham uma visão de mundo real; não basta ler livros e estudar, é necessário que andem pelo mundo e tomem contacto com outras realidades", reflete. Por outro lado, prossegue, "o mercado português é muito enviesado e limitado à produção nacional", o que dificulta o acesso ao que se faz lá fora. E aconselha os sommeliers portugueses a formarem grupos de estudo com profissionais de outras nacionalidades, como fazem, por exemplo, belgas, alemão e neerlandeses, ou os concorrentes dos países bálticos; e que definam planos de estudo bem estruturados, com calendários e objetivos realistas, de preferência com apoio de um mentor. Até porque, chegados ao momento final da prova, são os detalhes e, por vezes, as emoções ou atitudes, que ditam o resultado final.
Chega a ser estonteante a intensidade da bateria de provas que são literalmente disparadas sobre os concorrentes até alcançarem a final, demonstrando assinalável sangue frio e enorme resiliência, no sentido de darem resposta às solicitações.
O treino e estudo a que estes sommeliers se submetem é impressionante, como nos contou o concorrente dinamarquês, Jonathan Gouveia (cujo pai é de origem madeirense): "Sempre que entro numa competição inicio um novo ciclo de estudos". Este inclui "o estudo de mapas de países e regiões para que tenha sempre presente a imagem visual dessas origens".
Cada participante emprega diferentes tácticas de abordagem ao concurso, sendo que o objectivo primordial é, em suma, somar o maior número de pontos. Como exemplo, o teste escrito dos quartos de final compreendia nada menos que 28 páginas, contou o concorrente do Zimbabwe, Tawanda Marume. Refira-se que cada candidato faz-se acompanhar de uma delegação, mais ou menos numerosa, que de certa forma espelha o empenho e a importância que cada país reserva ao candidato e, bem assim, ao prémio final e, em última instância, à profissão. Como nos confidenciou um delegado europeu, os países nórdicos são os que levam as maiores comitivas, o que tem, na sua perspetiva, reflexos no número de concorrentes presentes na final. E traçou uma analogia com os Jogos Olímpicos, em que as delegações mais fortes são, naturalmente, as mais medalhadas.
Olivier Poussier, responsável técnico pelo Comité de Concursos da ASI, afirmou que “o nível dos concorrentes continua a melhorar a cada ano. O que mais impressiona é a qualidade daqueles que não chegam às semifinais e à fase final. A diferença entre os principais concorrentes e aqueles que não conseguem chegar às meias-finais é menor do que no passado. A diferença entre um finalista e um semifinalista é muito ténue".
Recorde-se que a edição de 2026 do concurso do Melhor Sommelier do Mundo decorrerá em Lisboa. Segundo Tiago Paula, presidente da Associação dos Escanções de Portugal, há muito trabalho pela frente na preparação não só da logística do evento, mas também no que concerne à própria sommellerie nacional. Em Portugal, a prova deverá receber mais de 70 candidatos de todo o mundo e será uma oportunidade para mostrar o país e os seus vinhos a um vasto conjunto de operadores e profissionais ligados à indústria.
Mas o evento serviu para dar a conhecer o que se faz noutras latitudes, desde uma prova de Vinhos Verdes conduzida por Sarah Ahmed, a masterclasses de vinhos da Áustria, Sake japonês, ou vinhos de Bordéus - bem como, claro, a descoberta dos vinhos e da viticultura sérvios.
Sérvia, entre o legado jugoslavo e o futuro europeu
A primeira sensação com que nos deparamos depois de aterrar no aeroporto Nikola Tesla, em Belgrado, é a intensa atividade de reabilitação e recuperação da capital da República Sérvia, com vista a apresentar uma metrópole viva e dinâmica, a postos para receber a Expo 2027.
Com efeito, dentro de pouco mais de dois anos, a cidade acolherá este grande certame internacional, cuja organização conquistou sob o lema 'Play for Humanity'. De acordo com os seus responsáveis, o tema pretende destacar "a importância vital da contínua reinterpretação e reimaginação do mundo que nos rodeia através do prisma da brincadeira e dos jogos como método de descoberta, criação, observação analítica e superação dos limites do conhecido".
Este esforço desenvolvimentista, que visa aproximar o país dos seus congéneres da Europa Ocidental e da adesão do país à União Europeia, tem igualmente reflexos na produção vitivinícola sérvia.
Entre os rios Sava e Danúbio, a Nova Belgrado assume-se como uma metrópole moderna, rasgada pelas avenidas amplas e compridas, em que edifícios novos vão substituindo os resquícios de uma certa urbanidade edificada no tempo em que a cidade era a capital da Jugoslávia. Hoje, o betão e o tijolo dão lugar ao aço e ao vidro, nesta visão europeísta da cidade.
Ao lado, atravessando o Sava, a 'velha" e lindíssima Belgrado ostenta muito do orgulho nacionalista sérvio, que remonta a uma época imperialista, em que o país sonhava instaurar a Grande Sérvia - o que levou, em grande parte, à deflagração da Primeira Grande Guerra, em 1914.
Histórias à parte, foi percorrendo cerca de três horas de caminho, dos quais boa parte pela autoestrada Milos, o Grande (figura histórica reverenciada por ter conseguido autonomizar a Sérvia do então Império Otomano no séc. XIX), que chegamos à região de Kosjeric, nas montanhas Divcibare e Krivaja e às destilarias Stara Sokolova e Zaric Distillery.
A 550 metros de altitude, por entre vastas zonas florestais de carvalhos antigos, pinheiros, cedros e bétulas, manchados de cores outonais e salpicados pelos primeiros nevões do ano, nestes produtores da ancestral aguardente - Rakija -, observamos também o contraste entre a tradição e a modernidade, o mesmo é dizer as contradições entre modelos antigos de produção de vinhos e destilados e a assumpção das novas técnicas de destilação e estágio, enologia e viticultura.
Em Stara Sokolova, que significa Velho Falcão na lingua nativa, fundada em 1897, Radisav Bogdanovic elabora aguardentes vínicas de dupla destilação com quatro anos de estágio em barrica de carvalho local, dito 'sessele', que se destaca pela menor porosidade.
Para além disso, adquire frutas a produtores locais para fazer aguardentes de ameixa, alperce, marmelo ou pêra, num total de cerca de 200.000 litros anuais. Há também uma aguardente de ameixa estagiada em madeira, que considera a verdadeira 'Sljivovica' o que, traduzido, significa rakija de ameixa.
Por sua vez, a destilaria Zaric, em Kosjeric, fundada em 1946, conta com 250 produtores de fruta, famílias locais, que fornecem a destilaria. Segundo Milos Jovovic, 'master distiller', o método tradicional de dupla destilação em cobre está reservado às Sljivovica, aguardentes de ameixa, ficando as restantes a cargo de um moderno destilador de coluna que combina cobre e aço inox.
A destilaria possui equipamento próprio para desmineralizar a água utilizada para reduzir o grau do destilado, que sai do alambique ou coluna a 77% TAV. Segundo a legislação local, é permitido reduzir apenas um grau de álcool por mês até ao TAV com que é engarrafado, que, consoante as versões, pode ir de 35 a 50%.
Todos os destilados passam um mínimo de três anos em inox e, no caso da aguardente de ameixa, o mínimo da casa são sete anos em madeira (grandes tonéis de 10 e 20 mil litros datados de 1946), podendo chegar aos 14 anos de estágio. No entanto, a cada cinco anos, as aguardentes são mudadas para outros vasilhames. Para além desta, marmelo, framboesa (25 kgs. de fruto dito natural, pois não resulta de qualquer cruzamento, para elaborar um litro de aguardente), cereja, pêra ou alperce são outros destilados produzidos na casa.
A Zaric produz anualmente cerca de 200.000 litros de aguardente, possuindo capacidade para chegar aos 500.000 litros. Para além disto, guardam aguardentes de genebra (que não gin...) de 1982, a serem lançadas brevemente. Como se vê, por aquelas bandas, os destilados são assunto sério...