Açúcar residual e açúcar adicionado em vinhos tintos

Muitos consumidores adoram tintos com um pouco de doçura. Os especialistas sabem que alguns gramas de açúcar podem aumentar as vendas. Adicionar açúcar poderá ser considerado um embuste?

Um tópico que pode despertar fortes desagravos no setor vitivinícola são os níveis de açúcar nos vinhos tintos. Embora nos sintamos confortáveis com diferentes níveis de doçura em vinhos brancos e espumantes, já nos tintos esta é uma questão bastante difícil. O sentimento generalizado é que ter um pouco de açúcar nos vinhos tintos é um embuste e não deveria ser permitido. Até certo ponto, partilho desse ponto de vista. 
Um recente debate rodeou as propostas de Stéphane Gabard, presidente do Syndicat Viticole des AOC Bordeaux et Bordeaux Supérieur, de uma nova AOC para tintos mais leves e doces de Bordéus rotulados como ‘Clairet’. A sugestão de que fosse permitida a adição de até 7 g/L antes do engarrafamento foi vista com alarme em alguns setores: será que Bordéus vai começar a produzir tintos doces para tentar reconquistar quota de mercado a algumas das mais populares marcas de novos produtores mundiais? Mas, no grande esquema das coisas, 7 g/L de açúcar não é assim tanto. É suficiente para realçar a fruta do vinho, sem torná-la obviamente doce.


Por que razão somos mais tolerantes com a doçura nos brancos? Alguns vinhos brancos muito sérios têm mais do que vestígios de açúcar. Na classificação alemã VDP Grosses Gewachs para os Riesling, estes famosos vinhos são considerados secos, mas é-lhes permitido conter até 9 g/L de açúcar residual. Embora o Chardonnay seja geralmente seco, o Riesling geralmente carrega alguma doçura, e isso não é criticado da mesma forma que a doçura nos vinhos tintos. O equilíbrio entre acidez e açúcar é tal que uma compensa o outro e, normalmente, brancos como os Riesling apresentam níveis de acidez mais elevados do que os vinhos tintos. Se tiverem doçura, geralmente provém de açúcares naturais e a fermentação é interrompida em determinado ponto que permita manter o nível de doçura desejado. Os tintos são invariavelmente fermentados até à secura e depois o açúcar é adicionado posteriormente sob a forma de mosto concentrado: talvez seja isso o que muitos desaprovam.
São poucos os vinhos que não contêm açúcar. É normal que os açúcares não fermentescíveis que as leveduras não podem desdobrar estejam presentes até 2 g/L em vinhos sem adição de açúcar. Embora não possamos realmente sentir o sabor da doçura em níveis tão baixos, esse valor afetará a textura dos vinhos. Uma das razões pelas quais a Brettanomyces é considerada um problema em tintos texturados como os Pinot Noir é porque essa levedura nociva pode consumir alguns dos açúcares não fermentescíveis e, portanto, mesmo antes que os aromas provenientes da Brettanomyces sejam detetáveis, muitas vezes há um leve endurecimento da textura.


O objetivo de ajustar os níveis de açúcar nos vinhos tintos comerciais não é necessariamente tornar o vinho mais doce. Os consumidores evitariam-nos. Tal é feito porque pequenos ajustamentos nos níveis de açúcar podem tornar os vinhos mais suaves e sedosos, além de enfatizar a fruta. Apenas um toque de doçura pode dar corpo ao vinho e fazer com que os taninos pareçam menos adstringentes. É necessário um provador experiente para ir além da perceção da doçura da fruta e chegar à perceção da doçura real num vinho tinto comercial com, digamos, 6 g/L. de açúcar residual.


E apesar do clamor sobre as propostas de Bordéus para permitir alguma doçura pós-fermentativa, se começarmos a olhar abaixo da superfície, descobriremos que não é incomum encontrar vinhos tintos com doçura adicionada.
O monopólio SAQ do estado de Quebec, no Canadá, elenca os níveis de açúcar residual de todos os vinhos, o que torna a leitura interessante. Incluí os níveis de álcool [N.D.E.- sob a forma de etanol e/ou glicerol], porque podem igualmente  adicionar perceção de doçura ao vinho. É por isso que aos vinhos com baixo teor de álcool ou sem álcool costuma-se adicionar açúcar para preencher a lacuna no palato deixada pela remoção do álcool.

- Caymus Cabernet Sauvignon 2021: 11 g/L de açúcar residual e 14.4% álcool

- Caymus Special Selection Cabernet Sauvignon 2019: 6.3 g/L de açúcar residual e 15.9% álcool

- Austin Hope Paso Robles Cabernet Sauvignon 2020: 7.9 g/L de açúcar residual e 15% álcool

- Daou Vineyards Cabernet Sauvignon Paso Robles 2022: 4.7 g/L de açúcar residual e 14.5% álcool

- Apothic Red: 16 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- Ravenswood Vintners Blend Zinfandel: 7 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- De Loach Heritage Reserve Zinfandel 2020: 12 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- Barefoot Zinfandel: 8.3 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- Hardy’s VR Merlot: 9.8 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- YellowTail Big Bold Red: 16 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

- The Prisoner 2021: 7.1 g/L de açúcar residual e 15.2% álcool

- Casa Santos Lima Lab Lisboa: 8.2 g/L de açúcar residual e 13% álcool

- Always on Friday Pinot Noir 2020 Lisboa: 15 g/L de açúcar residual e 13% álcool

- DFJ Vinhos Consensus 2016: 11 g/L de açúcar residual e 13.5% álcool

 

Esta é apenas uma pequena seleção dos tintos que analisei. A razão de ser destes teores de açúcar é que muitos consumidores adoram tintos com um pouco de doçura. Nick Oakley, que dirige uma agência britânica especializada em tintos portugueses e espanhóis, ajudou a lotear um tinto português para o retalhista britânico Laithwaites, que se tornou um best-seller. Inicialmente era de 14 g/L e agora está em 12 g/L. “Alguns gramas de açúcar podem aumentar as vendas”, diz. O mosto de uva concentrado é adicionado no engarrafamento e o vinho é esterilizado com Velcorin (DMDC, ou dimetil dicarbonato, E242) para estabilização microbiana. Esta operação, a filtração esterilizante ou a pasteurização, são essenciais para prevenir refermentações.


Mas seria errado dar a impressão de que em todos os vinhos tintos comerciais são acrescentados açúcares. Alguns são engarrafados em seco. Porém, adicionar açúcar é um nível de intervenção com o qual algumas pessoas não estão confortáveis, especialmente quando não há forma de saber na frente ou verso do rótulo que um vinho não é completamente seco e foi ajustado desta forma.
 

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