A não ser que Dona Antónia ressuscite, que o Barão de Forrester emerja das profundezas do rio para mediar conflitos ou que o Vale da Vilariça se desloque para o Vale de Mendiz, não antevejo solução imediata para o Douro.
O Douro, esse mesmo que tanto debatemos, esse tal que ora se ama ora se reprova, é único. Aliás, será porventura mais do que isso. É visceral, magnético, contemplativo. Porém, algum dia terá paz?
Se em casa onde não há pão todos ralham com razão, esta vindima veio colocar a nu um conjunto de pilares em que a região tem estado assente e que são, como se suspeitava, bem mais frágeis do que a rocha mãe que suporta as vinhas e bem mais sinuosos do que os socalcos esculpidos por gerações de saudáveis loucos, onde a palavra desistir jamais constou do dicionário.
O ano que vivenciamos, com fartura de stocks pré-vindima e uma vindima ainda mais farta em uvas do que a anterior, com pré-avisos de não aceitação de uvas e ameaças de protestos na rua, fez transbordar o copo. A não ser que Dona Antónia ressuscite, que o Barão de Forrester emerja das profundezas do rio para mediar conflitos ou que o Vale da Vilariça se desloque para o Vale de Mendiz, não antevejo solução imediata para o Douro.
O Douro e o Vinho do Porto passaram a temas diários de discussões acaloradas, de debates acessos, uns mais razoáveis do que outros, alguns até na fronteira do insulto gratuito. E não havendo solução imediata que seja do agrado de todos, não seria de colocar o Douro (e o Vinho do Porto) no divã de um gabinete de crise para uma verdadeira reflexão, qual consultório de psicologia?
O Douro foi durante vários anos exclusivamente do Porto. Por ironia do destino, o DOC está a salvá-lo e estima-se que possa igualá-lo, como negócio, na transição da década. Mas também o Douro DOC padece de um certo quê de esquizofrenia, na medida em que lhe exige que a par da excelência dos tintos seja igualmente soberbo em brancos, rosés e espumantes. Não será pedir demais?
O Douro, enquanto ser coletivo, corre o risco de tornar-se num alado e individualizado, onde cada um segue o seu caminho, a sua agenda. Alguma vez haverá negociações sérias com todos os protagonistas para se arrepiar caminho e tomar decisões estruturais, daquelas que não mudam consoante a direção do vento?
O Douro, o do Vinho do Porto e dos DOC, é um poema demasiado bonito que jamais deverá ser transformado numa novela. Obriga a um certo decoro e a muito respeitinho, quanto mais não seja por aqueles que um dia o tornaram possível e o sonharam viável.
Se for necessário arrancar vinha para o manter precioso, por que não? Se for necessário retirar do negócio - seja do negócio da vinha ou do negócio do comércio - aqueles que o empurram para a valeta, por que não?
O Douro merece mais exclusividade e menor arbitrariedade, um compromisso sincero e efetivo que leve a que todos os agentes - os da vinha e os do comércio - dêem o melhor de si para manter vivos os pergaminhos da mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo.
A cada regresso ao Douro - e são algumas dezenas/ano - não fico insensível ao que presencio. Entendo o desespero de muitos viticultores, dos que deixaram uvas por vindimar e dos queu deitaram ao lixo milhares de euros em uvas que o mercado ditou não serem viáveis. Mas, admitamos, alguns dos que agora ameaçam cortes de estradas são os mesmos que promovem trocas e baldrocas de cartões de benefício para Vinho do Porto, tal e qual a criançada faz com os cromos no recreio da escola. Pior. Não é difícil ouvi-los nos cafés das aldeias vinhateiras a gabarolar-se dessas artimanhas, levando uva Z a ser tida por Y, uva W a ser vendida a X. Não é bonito, meus senhores.
Admito que não haveria um Douro como hoje se não houvesse um quinteto forte de grandes empresas exportadoras de Vinho do Porto. Todavia, como português sinto-me sempre constrangido quando vejo os nomes deles nos rótulos de garrafas de Portos de 3,00 €, vendidos nas prateleiras de supermercados daqui e de tantos outros lados do mundo. É com Vinho do Porto a esse preço e com esse nível discutível de qualidade que se convence alguém a tornar-se consumidor desta tipologia de vinhos, hoje das mais seriamente afetadas pela quebra de consumo? Talvez não seja caso para tanto, mas sinto vergonha alheia ao ver o mais famoso vinho do meu País a continuar a ser tratado dessa forma, a esse preço, só porque é preciso cumprir os desígnios de uma folha de Excel de um qualquer exercício trimestral. Olhe-se para o tombo gigante de Jerez e veja-se bem agora o discurso e a atitude que estão a tentar implementar. E se as categorias especiais estão em franco crescimento, em nome de quê manter gamas de entrada que por muito volume que façam só trazem fraca reputação? Sim, não deveria haver uma garrafa de Vinho do Porto a ser comercializada no mundo abaixo de 10,00€.
Se as agruras atuais do Douro são estruturalmente mais graves no comparativo direto com as restantes regiões, a principal culpa deverá ser atribuída não ao mercado mundial do vinho ou às tendências de consumo mas a todos os que operam na região - micro, médios, grandes e gigantes, vinhateiros, produtores ou comerciantes. Não se fintem regras nem se jogue tanto nos bastidores. Não se politize o que não é político. Não se ignore o que for justo. Não se esconda o que deva ser denunciado.
O Douro, e muito em particular o Vinho do Porto, merecem muito mais. De todos. Será preferível cortar a direito ou seguir na hipocrisia dos paninhos quentes? Pior que uma má decisão é não decidir de todo.
Felizmente, o enoturismo
Numa coisa, porém, a bota começa a bater com a perdigota.
No enoturismo, o Douro vivencia muito mais do que trânsito marítimo e rodoviário de monta-cargas de turistas. É hoje uma região que possui uma diversidade notável de conceitos de turismo associado ao vinho, com preços ao nível, por vezes até acima, dos que se praticam nas grandes regiões vitícolas internacionais. É possível dormir com conforto, almoçar e jantar bem em restaurantes tradicionais e em restaurantes de autor, ter acesso a grandes vinhos, experienciar spas, piqueniques na vinha, experiências nas adegas…
Americanos, brasileiros, germânicos, franceses, espanhóis, nórdicos ou asiáticos, é um regalo vê-los a passear tranquilamente pelos locais mais recônditos da região, a ler um livro junto à piscina de uma quinta, em passeios a bicicleta ou a pé. Reservar um fim de semana no Douro, numa unidade de qualidade média, média-alta ou premium, obriga a uma calendarização prévia tamanha é a procura, isto apesar de a oferta ter melhorado em quantidade e qualidade. E isso é muito bom.
Com uma invejável tranquilidade, eles, os que o visitam, respiram e contemplam o Douro e, melhor ainda, ajudam a tentar fixar algumas populações e alguma da escassa mão de obra que vai resistindo a outras tentações.