Imposto pela modéstia da tradição, nenhum enólogo ou adega confessa a prática de utilização de alternativas à barrica.
Imposto pela modéstia da tradição, nenhum enólogo ou adega confessa a prática de utilização de alternativas à barrica. Talvez nos vinhos baratos. Não me atrevo a perguntar-lhes se as utilizam como melhorador de grandes vinhos porque, possivelmente, obrigá-los-ia a mentir.
Existem, entre outras, algumas práticas mais ou menos secretas na enologia, como os aromatizantes artificiais e as aparas de carvalho. No entanto, vou citar os chamados “alternativos”, eufemismo aplicado à substituição da barrica de carvalho por aparas, aduelas ou ‘chips’ de diferentes tamanhos de carvalho introduzido em cubas de aço inox ou cimento. Em Espanha e nos restantes países europeus, a utilização de aparas destinava-se, inicialmente, a vinhos baratos para reduzir os custos de produção e o tempo de estágio. No entanto, descobri que esta prática, apesar do baixo custo, também é utilizada em vinhos de gama alta quando se trata de respeitar a fruta harmonizada com a cremosidade dos tostados aportados pela madeira. Pecado ou fraude?
Por isso pus-me a provar às cegas uma amostra de um vinho de qualidade que estagiou seis meses em barricas “premium” e outra amostra que passou quatro meses com ‘chips’ de carvalho de alta qualidade colocados em cubas de inox. O resultado foi favorável ao “alternativo”. O vinho com seis meses em barrica denotava a presença amadeirada (tons de carpintaria) do carvalho sem fusão com o vinho, com aroma de fruta menos perceptível e falta de micro oxigenação devido à curta permanência em barrica. A outra amostra, com quatro meses em cuba com ‘chips’ de carvalho, vinho e madeira, foram percebida como muito integrada, sem perda do potencial de fruta, até com maior elegância e complexidade, ligeira cremosidade do carvalho, mas inevitavelmente auxiliada por micro oxigenação enológica.
Esta experiência faz-me suspeitar que, na produção de vinhos de gama alta, é utilizado no lote final uma parte em barrica e outra parte com ‘chips’ de carvalho. Uma prática, não para reduzir custos, mas como melhoria, evitando o enfraquecimento da força frutada do vinho devido à permanência em recipientes de madeira. É conhecida essa luta para amenizar o sabor da madeira pela utilização de barrica de 500 litros, tinajas, foudres e, em geral, barricas de vários usos. Mas apenas como um retrato “legal”, ao qual devemos acrescentar o retrato “secreto” dos “alternativos”.
A utilização de produtos enológicos alternativos é segredo aberto no Novo Mundo e está autorizada, tanto em Espanha, como no resto da Europa. Mas quem poderá citar no rótulo: “dois meses de maceração de aparas de carvalho” em vez de “seis meses em carvalho”? Possivelmente ninguém, no momento.
E digo por um momento ante a metodologia do Novo Mundo, que não se importa de explicar que o vinho tem aparas ou foi macerado em ‘chips’. Ainda me lembro de uma visita em 1996 à adega australiana de Wol Blass quando, junto ao tegão de recepção das uvas, empilhavam-se sacos de aparas que eram despejadosm um a um, ao mesmo tempo que os cachos. Abordei a enóloga Cherie Carmen para lhe perguntar quais as vantagens desta prática e ela respondeu com naturalidade: “Permite-nos reduzir consideravelmente o tempo de estágio em barricas em favor da manutenção da fruta, regulando melhor o sabor do carvalho”. Uma explicação credível, uma vez que as uvas se destinavam a um vinho “premium”. A Penfold's contava então com 45.000 barricas para 57 milhões de garrafas, enquanto a riojana Faustino tinha o mesmo número de barricas para apenas seis milhões de garrafas. Era evidente que não era barrica tudo o que brilhava na filosofia ‘aussie’.
Barricas, sobrecusto desnecessário?
Por pura dedução, e tendo em conta que a seleção da matéria-prima, a origem do carvalho, a secagem e as diferentes tostas da madeira são as mesmas, tanto para os ‘chips’ e aduelas de carvalho com para o fabrico de barricas, não existem elementos que demonstrem que um vinho estagiado em barrica seja melhor que o carvalho colocado na cuba de aço inox. Se a diferença a favor da barrica está na lenta micro oxigenação, existem hoje procedimentos técnicos para regular mecanicamente esse trabalho com mais rigor. Alguns questionam a possibilidade de o vinho envelhecer da mesma forma que o vinho estagiado em carvalho. No entanto, esta contingência está encomendada, não ao tempo do estágio em barricas, mas ao pH do vinho e à eficiente micro oxigenação do mesmo. As moléculas odoríferas do carvalho são transmitidas ao vinho da mesma forma, seja com ‘chips’ introduzidos na cuba de inox com inteligência e conhecimento, seja com aduelas.
É evidente que, imposto pela modéstia da tradição, nenhum enólogo ou adega confessa esta prática. Talvez nos vinhos baratos. Não me atrevo a perguntar-lhes se também o utilizam como melhorador de grandes vinhos porque, possivelmente, obrigá-los-ia a mentir, embora nenhum deles ataque este procedimento. Será que este segredo deve-se mais à difícil justificação dos preços elevados de um vinho de qualidade com estas práticas infinitamente mais baratas do que à irreverência do procedimento? Um quilo de alternativos de madeira de elevada qualidade (iguais às barricas mais sumptuosas) na dosagem de 3 g./L. custa 8€ para 333 litros de vinho, mais ou menos a capacidade de uma barrica. Basta fazer um cálculo simples para observar que a diferença de custos é abismal, sem ter em conta a substituição das barricas, as perdas por evaporação, a maior ocupação de espaço dos recipientes de madeira na adega, o cuidado permanente da tanoaria e o perigo de acidentes durante as movimentações. Tudo isto aumenta desnecessariamente o preço do vinho.
Em tempos idos, a madeira esteve presente em todos os aspetos das nossas vidas. No vinho, a utilização destes recipientes era fundamental para o armazenamento e transporte.
Hoje, porém, existem outros materiais que o substituem. Portanto, não será um luxo desnecessário, até imoral porque afeta a sustentabilidade e pelo seu valor ecológico, que uma das melhores madeiras do mundo como o carvalho seja utilizada apenas para “dar sabor” ao vinho, construindo um recipiente semi-artesanal como a barrica? O estágio na vertente micro oxigenadora não é o pretexto, como resulta explicado. A barrica é o único vasilhame histórico que ainda sobrevive. Nas próximas décadas, veremos as barricas apenas como peças de museu? A sofisticação dos alternativos parece anunciar o início do seu fim.