O umbigo não convence quem questiona se vale a pena

De que forma conseguiremos atrair a atenção de novos públicos para o tema vinho sem termos que recorrer a vídeos palermas nos Tik Tok e Instagram desta vida?


Como evitar a tentação de entrar na espiral de um circuito fechado? De que forma conseguiremos atrair a atenção de novos públicos para o tema vinho sem termos que recorrer a vídeos palermas nos Tik Tok e Instagram desta vida? Como poderemos reabilitar com sucesso o conceito de blogue ou agregar mais ouvintes a um podcast? Saberemos apresentar, de modo apelativo, castas, regiões e vinhos numa sessão presencial com potenciais ou inexperientes consumidores?

 

“Espelho meu, espelho meu”. Todos nos lembramos da historiazinha da Branca de Neve e da malvada da madrasta, uma com uma beldade e inocência naturais de princesinha, outra armada em giraça, mas pirosa e malvada. Convivemos com o conto infantil desde que somos gente, recordamos de cor a historieta que vai sendo transmitida de geração em geração, todavia talvez desconheçamos a origem da trama. Branca de Neve será um conto da tradição oral alemã transposto para livro pelos irmãos Grimm. A tal publicação, publicada entre 1817 e 1822, chamava-se “Contos de Fada para Crianças e Adultos” e há quem suspeite que no caso da Branca de Neve haja um suporte histórico real: a da condessa alemã Margaretha von Waldeck que, no séc. XVI, era desprezada pela madrasta, Katharina de Hatzfeld.
Por demasiadas vezes olhámo-nos para o espelho, como que à espera que o dito nos diga que somos os maiores, os melhores, quem sabe até os mais bonitos. No setor do vinho e no setor da gastronomia, por cumplicidade da generalidade dos agentes ou por simples presunção pessoal, há egos insuflados sem qualquer razoabilidade. Um chefe de cozinha, por aparecer na televisão ou ganhar uma estrela Michelin para o restaurante em que oficia, tem que passar a ser tratado como um famoso ator de cinema? Um sommelier de um restaurante em alta tem que ser apaparicado ao nível de uma estrela pop? Um enólogo talentoso terá que ter sempre o aplauso da crítica? E o crítico que possua algum reconhecimento considerar-se-á o deus supremo sobre os demais a pretexto de quê?
Neste 2024 que agora se inicia completarei 20 anos de ligação profissional ao vinho. Tenho sido um privilegiado ao longo deste tempo por estar a trabalhar numa área especializada que aprendi a gostar, que possui grandes histórias e que tem protagonistas manifestamente interessantes. Tenho conhecido alguma coisa, contactado com realidades díspares, questionado e avaliado o que é o que parece ser e o que aparenta ser mas, afinal, nem sempre o é. Porém, se me questionarem acerca do principal senão de tudo terei que identificar, em bom português, a cagança. Porquê? Porque é mais frequentemente do que seria desejável e tem tanto de absurda como de desnecessária.
O ego, empolado pelos próprios ou massajado por terceiros, não deve ser confundido com autoconfiança. Pior, o ego frequentemente tolda-nos o raciocínio, desfoca-nos do essencial, deturpa-nos a lucidez. 
O foco e o pensamento assertivo sobre o que realmente importa serão fundamentais para encarar os desafios deste e dos próximos anos. Face a um clima de incerteza generalizado –
político, social e económico – é crucial que todos os protagonistas do vinho e da gastronomia reflitam seriamente acerca das estratégias a adotar a diferentes níveis.

Desafios extra espelho

A restauração vive uma bolha que já provou não necessitar de grandes avisos prévios para rebentar. Os sucessivos espaços que vão abrindo nas principais cidades continuam a carecer, em muitos casos, de efetiva sustentabilidade económica e de um rumo antecipadamente definido. O turismo corre bem, muitíssimo bem, mas as principais cidades começam a ficar seriamente descaracterizadas, incluindo em termos gastronómicos. Da nouvelle cuisine fomos à cozinha molecular, houve o movimento minimalista e a cozinha criativa e de autor, passamos para a propalação da horta biológica nas traseiras dos restaurantes… Porém, talvez nos estejamos a esquecer de um detalhe: a perpetuação e a preservação do receituário tradicional português, que é incomparavelmente mais rico do que o pastel de nata ou o bacalhau com natas versões A, B ou C. Mais do que um vídeo para redes sociais ou um conjunto de fotografias para galerias de imagem, os chefes de cozinha e os proprietários de restaurantes portugueses deveriam ter, enquanto desígnio coletivo, a obsessão de preservar e de explorar ainda melhor o notável receituário tradicional e popular do País que é, acima de tudo, um património cultural. Eles, os que nos visitam, já deram todas as mostras que validarão a opção.
A par disso, a atração e formação de profissionais. Em matéria de serviço chega a ser confrangedor a experiência de cliente na esmagadora maioria da restauração portuguesa. Como formar e atrair profissionais que queiram fazer carreira?
No vinho começa a incomodar a aparente falta de consciencialização de muitos operadores face aos estudos internacionais já amplamente difundidos. Está visto que o comportamento das novas gerações de consumidores implicará uma decréscimo significativo de quantitativos de produção e, muito provavelmente, boa parte das vinhas europeias acabarão por deixar de ser economicamente viáveis. Achar-se-á que a Ásia voltará a ser a salvação? Bom, se o mundo do vinho conseguir colocar todos os indianos a consumir talvez, mas tenho muitas dúvidas.
Há uma outra dimensão de responsabilização que não pode ser despicienda, a de quem comunica o vinho. Englobo aqui um conjunto distinto de intervenientes que contactam com frequência com o público – jornalistas, críticos, formadores e wine educators, sommeliers. 
Na primeira frente de missão incumbe-nos perceber de que forma podemos chegar com sucesso às novas gerações. A agressividade do combate anti-álcool que hoje assistimos à escala global obriga-nos a adotar estratégias de comunicação e de formação de públicos que sejam mais eficazes e, sobretudo, compreensíveis pelo comum dos mortais. Com demasiada facilidade caímos na tentação de nos fecharmos num circuito que julgamos ser vasto apesar de, frequentemente, ser quase apenas nosso. Lá abordamos constantemente vinhos que serão inacessíveis aos potenciais jovens consumidores, persistindo em linguagem incapaz de suscitar curiosidade. Se é verdade que o gosto se aprimora e evolui ao longo da vida, não menos verdade é que a não conquista de um consumidor para o vinho é invalidar, ou pelo menos protelar para tempo incerto, um ativista da causa. E, sim, não se trata de advogar o consumo pelo consumo, trata-se de preparar novas gerações para a apreciação consciente e minimamente informada de um produto que é muito mais do que uma bebida – é um património civilizacional.
Como evitar a tentação de entrar na espiral de um circuito fechado? De que forma conseguiremos atrair a atenção de novos públicos para o tema vinho sem termos que recorrer a vídeos palermas nos Tik Tok e Instagram desta vida? Como poderemos reabilitar com sucesso o conceito de blogue ou agregar mais ouvintes a um podcast? Saberemos apresentar, de modo apelativo, castas, regiões e vinhos numa sessão presencial com potenciais ou inexperientes consumidores?
Este conjunto de desafios, e outros mais há, é não só atual como nos obriga a uma proatividade extra espelho. É que o umbigo não convence quem questiona se vale a pena. 


 

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