A enologia de hoje encarrega-se de mostrar, dia após dia, que para se obter vinhos de “terroir”, que tenham personalidade individual, é primeiramente fundamental perceber o solo, a videira, as castas. Os enólogos mais bem preparados para os desafios de hoje e de amanhã são os que melhor compreendem a vinha, que têm vontade de a estudar, que passam boa parte dos dias a analisá-la antes de a vinificarem.
Durante demasiado tempo a viticultura foi o parente pobre da elaboração de vinho. Por um lado, acreditou-se numa espécie de vida eterna das melhores vinhas; por outro, os incentivos comunitários para reconversão de áreas de plantação levou a que muitos optassem por simplesmente arrancar plantas que nunca estudaram a fundo, optando por clones seguros de castas que raramente desiludem embora pouco – talvez mesmo nada – aportem de novo. A sistematização, que faz todo o sentido quando falamos de larga escala, levou a um certo endeusamento de enólogos, tidos como super-heróis pelos próprios produtores porque definiam num papel os pozinhos a usar na adega para alcançar aquele vinho perfeitinho, independentemente de tudo o resto. Química e mais química, modelo replicado aqui e acolá. Muitas asneiras foram cometidas e alguns excessos teriam sido perfeitamente evitáveis. Foi preciso o mercado internacional valorizar sobremaneira a diferenciação para que os enólogos começassem finalmente a perceber que há mais vinho para lá do Chardonnay e do Syrah. A própria receita portuguesa de acrescentar mais e mais Touriga Nacional nos blends é perigosa e pode motivar uma padronização desnecessária num território tão diverso. “Falta-nos muito em viticultura”, diz à Revista de Vinhos o protagonista desta edição, Domingos Soares Franco. “Temos que investir mais no campo”, alerta.
À medida que fui conhecendo melhor o setor, comecei a valorizar Domingos Soares Franco. Sabendo separar águas, o enólogo que faz milhões de litros de vinhos, constantes e de agrado imediato aos consumidores é, igualmente, um eterno desassossegado, procurando surpreender com algo de diferente no âmbito da coleção de vinhos que assina em nome próprio.
Prosseguindo o trabalho do pai e do tio, Domingos é dos mais estudiosos do comportamento de castas, portuguesas e internacionais, através do admirável campo ampelográfico da Quinta de Camarate. Algures em 2004 ou 2005, quando visitei pela primeira vez esse campo experimental, lembro-me de ter ficado impressionado com a quantidade de nomes que nunca ouvira falar, de variedades nacionais e internacionais. Domingos sabe que tem ali um tubo de ensaio permanente para perceber onde vale ou não a pena apostar, usando um misto de conhecimento técnico, lógica, experiência e muito sentido pragmático. Se plantar durante X tempo uma casta Y e a mesma não corresponder, desiste e testa outra.
Felizmente, Portugal tem assistido ao nascimento de muitos campos ampelográficos, em diferentes escalas, um pouco por todo o país. Melhor ainda, têm sido as empresas de maior escala, as mesmas que conseguem fazer milhões de litros de uma só referência, a dar esse passo.
O envolvimento no processo de instituições importantes como o Instituto Superior de Agronomia (ISA) ou a Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro (UTAD), a Porvid – Associação Portuguesa Para a Diversidade da Videira ou a Avid – Associação Para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense tem sido um contributo muito importante para se ir mais além. Mas, suficiente para as necessidades atuais e as que se avizinham no médio e longo prazo?
Expressões de “terroir”
Os enólogos mais bem preparados para os desafios de hoje e de amanhã são os que melhor compreendem a vinha, que têm vontade de a estudar, que passam boa parte dos dias a analisá-la antes de a vinificarem.
No Douro, Tiago Alves de Sousa empreende um trabalho notável de viticultura de precisão com o objetivo de manter para futuro a qualidade das vinhas mais antigas da Quinta da Gaivosa. As novas plantações mantêm a condução em Guyot duplo, por considerar mais resistente ao défice hídrico e ao escaldão, por proporcionar menor intervenção e bom equilíbrio entre a vegetação e a produção de uvas. A alta densidade de plantação, 8.000 pés por hectare, facilitará menos folhagem e menor perda de água, levando a que as raízes procurem mais profundidade, com isso aumentando a presença mineral do solo no carácter final do vinho. As castas continuam misturadas, como é normal nas vinhas velhas, mas cada parcela tem um grupo de variedades co-plantadas e organizadas por linhas ou micro-blocos, favorecendo, entre outros aspetos, uma maior resistência às doenças da vinha.
No Dão, Paulo Nunes continua a insistir na necessidade de fugir à quase ditadura da Touriga Nacional e do Encruzado. Tem investigado até à exaustão o gosto dos vinhos do passado, para descobrir as castas e os blends que eram alcançados. Não lhe preocupe que a cor dos ensaios seja um rubi bem claro, muito menos que a graduação alcoólica fique longe dos 14%. Pelo contrário, insiste que é essa a autêntica tradição da região.
Ainda por lá, Sónia Martins e João Paulo Gouveia usaram porta-enxertos do Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, em Nelas, e em 10 hectares de mata replantaram castas de outros tempos. Molvedro, Cidreiro, Douradinha… Estão a fazer várias microvinificações a cada vindima para perceberem o que vale cada uma e quais as variedades que justificam uma aposta efetiva.
No Alentejo, António Maçanita anda perplexo com o potencial de várias castas no sopé da Serra d´Ossa. Está a ter dificuldade em conter a compulsão de elaborar vinhos a partir de nomes tão pouco comerciais quanto Alicante Branco, Trincadeira das Pratas, Tinta Carvalha ou Moreto. A verdade é que provamos os vinhos e eles são verdadeiramente surpreendentes, distintos e, sobretudo, reafirmam todo o potencial do Alentejo para também proporcionar vinhos fora do “mainstream” pelo qual é reconhecido e valorizado pela generalidade de nós. Muitos outros exemplos poderia ter citado. A enologia de hoje encarrega-se de mostrar, dia após dia, que para se obter vinhos de “terroir”, que tenham personalidade individual, é primeiramente fundamental perceber o solo, a videira, as castas. Ou seja, o enólogo terá desde logo que assumir o desafio de também ser um viticólogo, um estudioso e especialista em vinhas.
Como aprender? Pesquisando, experimentando, indo mais vezes às vinhas e, claro, tendo a inteligência de falar mais vezes com os responsáveis de viticultura dos respetivos projetos. Aliás, está na hora dos verdadeiros viticólogos terem tempo de antena, comunicarem o trabalho que fazem, partilharem as preocupações que possuem e as soluções que a dado momento encontraram. O vinho não é um exclusivo dos enólogos, cada garrafa tem sempre muito de todos os que trabalham a vinha.
Vivemos um tempo de várias urgências, um tempo que por isso é bastante desafiante. Não nos esqueçamos, porém, da urgência da viticultura.