Se nada de verdadeiramente significativo for feito, dentro de alguns anos o Vinho Madeira poderá ficar confrontado com a escassez de uva.
E se esse momento chegar compra-se uva excedentária no continente? Entra aqui o Porto Santo…
Respire fundo, caro leitor. Não me vou meter em questões de foro político, bem mais escaldantes nestes meses do que o clima subtropical do arquipélago da Madeira. Partilharei, isso sim, uma reflexão resultante de algumas das mais recentes conversas que mantive com protagonistas regionais que não são decisores políticos – uns são viticultores, outros agentes económicos.
O Vinho Madeira poderá confrontar-se a médio prazo com um drama: a escassez de uva. Na ilha da Madeira, áreas historicamente privilegiadas para vinha, junto ao mar e voltadas a sul, estão a desaparecer. Os proprietários dessas quase sempre pequeníssimas parcelas acabam por vender os metros quadrados de cultivo a investidores imobiliários, que procuram exatamente essas geografias para construir, sobretudo, empreendimentos turísticos. A situação começa a ser hoje particularmente sensível no Estreito de Câmara de Lobos.
A pressão imobiliária não afeta somente a vinha. As culturas da banana e da cana de açúcar também acabam, frequentemente, desinstaladas. Ou seja, as peças de xadrez vão mudando de posição mas todos sabemos que o tabuleiro é finito.
Há cerca de 500 hectares de vinha a produzir na ilha da Madeira. Micro parcelas, semelhantes a singelos jardins, trabalhados nos tempos livres pelos proprietários – é essa a esmagadora maioria dos casos. Nos declives mais acentuados, o trabalho da apanha é particularmente ingrato, obrigando a vindimar de joelhos na terra, cacho a cacho. E, claro, escusado será referir que estamos a falar de uma viticultura manual, de uma certa forma artesanal.
Tal como sucede noutras regiões do país há falta mão de obra. Uma boa parte dos proprietários está envelhecida e os vindouros não querem saber da agricultura. Por isso, entre vender ou deixar ao abandono, percebe-se facilmente qual a opção a tomar.
A costa norte da ilha, menos sujeita ao forcing imobiliário, tem visto nascer algumas das mais interessantes áreas de vinha. Menos quente e mais fresca, tem sido a base dos vinhos DOP Madeirenses, tranquilos que após uma primeira fase de ensaios dão mostras da real potencialidade que poderão ter, essencialmente a partir do momento em que as principais casas de Vinho Madeira decidiram dar-lhe uma oportunidade.
Porém, muitas dessas uvas não são interessantes para Vinho Madeira por não conseguirem atingir, nesses locais mais frios, os índices de maturação e de álcool potencial desejáveis. Acresce a tudo isto que, ao contrário do que por vezes imaginamos, o plantio da ilha da Madeira não é maioritariamente constituído por castas brancas mas, em quase 85%, por Tinta Negra.
A variedade, durante vários anos tida como menor, foi a salvação do Vinho Madeira no pós-filoxera e tem sido o alicerce da produção desde então. Para lá de ser a base dos Madeira de entrada de gama, se pensada para voos mais altos pode originar vinhos monumentais – alguém questiona o Henriques & Henriques Tinta Negra 50 Anos?
Se tiver que ser…
Em 2023, aquando da cerimónia “TOP 10 Vinhos Portugueses”, que distinguiu, entre outros vinhos, o Blandy´s Frasqueira Bual 1972, João Ghira, responsável de mercados da Madeira Wine Company, lançou o alerta da absoluta necessidade de preservar o património de vinhas da ilha, sob pena de deixar de ser possível elaborar vinhos como aquele Bual.
Humberto Jardim, administrador e master blender da Henriques & Henriques, recorda amiúde o elevado rendimento de uma casta como a Tinta Negra (que pode atingir as 15 toneladas/hectare) para sublinhar quão importante ela é para a sustentabilidade do negócio. Juan Teixeira, administrador e master blender da Justino´s, vai ainda mais longe, exortando o Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM) a libertar restrições de plantio de castas como a Tinta Negra, o Sercial ou o Verdelho.
Apesar de o consumo de vinhos fortificados estar em queda no mundo, o preço do Vinho Madeira tem conseguido subir paulatinamente nos últimos anos e, pela natureza do vinho em si, é crucial existirem stocks significativos a envelhecer para as categorias especiais. Em simultâneo, os DOP Madeirenses vão caminhando de forma tímida mas segura e apresentam outro tipo de potencial.
Se nada de verdadeiramente significativo for feito, dentro de alguns anos o Vinho Madeira poderá ficar confrontado com a escassez de uva. E se esse momento chegar compra-se uva excedentária no continente?
Entra aqui o Porto Santo. Durante vários anos, a uva daquela ilha foi absorvida pelas casas tradicionais do Madeira. Nas décadas mais recentes isso deixou de acontecer na habitual proporção. O plantio estava centralizado na zona hoje dominada pela pista do aeroporto, obra de meados do séc. XX que provocou que muitas vinhas simplesmente desaparecessem. Somam-se 15 hectares no total, maioritariamente plantadas com as castas Listrão (Palomino Fino, em Jerez, Listan Blanco, nas Canárias, Malvasia Rei, no continente) e Caracol (que tudo indica ser a mesma casta que o Cedrés, nas Canárias). Variedades tidas como menores ou quase proscritas, até o sommelier Nuno Faria e o enólogo António Maçanita terem criado o projeto Profetas & Villões, que deixou um arquipélago boquiaberto pela positiva.
Se o mais cinzentão dos cenários abater-se sobre a ilha da Madeira, a vinha de Porto Santo poderá ser uma tábua de salvação. Há ali potencial de crescimento, alguns dos viticultores são ainda jovens e, mais relevante, passaram a acreditar no próprio trabalho. Havendo o problema da escassez de água, uma estratégia agregadora e verdadeiramente pensada de desenvolvimento da viticultura do Porto Santo poderá revelar-se surpreendente e um acréscimo de valia, não apenas para os DOP Madeirenses mas também para o Vinho Madeira.
Obviamente, até lá importa refletir e encontrar equilíbrios e continuar a valorizar quem produz uva para que o continue a fazer. Se a uva branca da ilha da Madeira para Vinho Madeira está a ser paga em torno dos 2,20€/kg. e a tinta a 1,20€/kg, a uva da ilha de Porto Santo com interesse para o Vinho Madeira ascende aos mais de 3,50€/kg. Os valores médios para vinhos DOP Madeirenses são mais elevados: 2,50€/kg, 2,20€/kg. e 4,00€/kg, respetivamente.
Será que daqui a uns anos, à saída da praia de Porto Santo, ainda haverá quem nos queira vender um cacho de uvas? Se for por um bem maior ficaremos certamente saciados com outra qualquer coisa.