Nas harmonizações, o grande erro de principiante é ser-se tentado a achar que a melhor harmonização será entre o nosso vinho e a nossa comida de eleição.
René Descartes, na obra de referência o “Discurso do Método”, menciona que “não existe no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspeto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem”. Atrevo-me a discordar deste grande filósofo francês e dizer que entendo que mais do que o bom senso, que algumas, poucas, pessoas gostariam de ter um pouco mais, o bom gosto é a coisa mais bem distribuída do mundo.
Neste atributo, sim. Não conheço ninguém que não entenda que tem bom gosto sendo, contudo, comum colocar-se em causa o (mau) gosto dos outros. Faço mea culpa quando teço (ou tecia) considerações sobre os trajes apresentados por alguns estilistas nas suas coleções. Terei, efetivamente, mais “bom gosto” no vestuário do que esses profissionais, muitos deles com instrução superior nessa área? Todas estas considerações de “filosofia barata” devem-se à reflexão que pretendo expor sobre a dificuldade de se chegar a um consenso acerca do que é uma boa harmonização gastronómica, exatamente porque todos temos gostos diferentes, mas também devido a alguns (pre)conceitos.
Quando vamos almoçar ou jantar com um grupo de amigos e existe opção livre de escolha é comum cada um optar por um prato diferente. Ninguém coloca em causa o bom ou mau gosto dos parceiros, compreendendo e respeitando que cada um tenha um gosto distinto. Existem vários motivos para isso, sendo os hábitos culturais e a fisiologia individual os principais. Um habitante do sul da Índia foi educado e habituado a comer comida mais picante do que um do norte daquele país. Os “super provadores”, indivíduos que representam cerca de 25% da população e que têm mais papilas gustativas, têm maior sensibilidade para o sabor amargo do que os restantes mortais, sendo por isso habitual que prefiram comida menos amarga, a não ser que tenham sido expostos a esse hábito durante a vida.
Se na escolha de um prato já verificámos que existem grandes diferenças, mais ainda haverá quando falamos em harmonizações gastronómicas entre vinho e comida. Neste caso não são só os alimentos em si mas também o vinho e o equilíbrio que pode ser percecionado de maneira diferente por cada pessoa. Contudo, apesar destas diferenças individuais, existem alguns critérios pelos quais é avaliada a qualidade de uma harmonização.
Estes requisitos são definidos não em função do gosto pessoal, mas depois de estudos efetuados e provas empíricas que demonstram que são universais. Infelizmente, essas regras não são aplicadas com regularidade em avaliações gastronómicas, mesmo por pretensos críticos, muitas das vezes até por serem desconhecidas.
O grande erro de principiante é ser-se tentado a achar que a melhor harmonização será entre o nosso vinho e a nossa comida de eleição. Ninguém cai nessa armadilha se o seu vinho preferido for um Porto Vintage novo e a sua comida de eleição for um peixe cozido. Compreenderá rapidamente que o vinho “esmaga” a comida. Este é um dos princípios básicos que está bem apreendido; a necessidade da intensidade e textura da comida e do vinho serem semelhantes. Porém, quando a nuance é menor, tenho visto participantes, em sessões de harmonizações gastronómicas, a considerar que a melhor harmonização é a que conjuga o seu vinho preferido ao seu prato preferido.
Mente aberta e predisposição para experimentar
Se o leitor não está convencido, vou dar um exemplo confrontando um mito. Tradicionalmente associa-se o queijo Serra da Estrela ao Porto Vintage novo. Que me perdoem os apaixonados por esta combinação mas, no meu entendimento, o único motivo para tal associação fazer parte da tradição nacional do século XXI é por se harmonizar “o melhor queijo português” ao “melhor vinho português”. Ou seja, estamos perante um exemplo cultural, não individualizado, do vinho preferido ser associado ao queijo preferido. Numa franja de população, na qual me incluo, quando esta harmonização é feita fica um sabor metálico no final. Emotivamente, gosto muito de combinar Porto Vintage novo e queijo da Serra – não me deixem de convidar quando tiverem estes dois magníficos produtos… Todavia, assumo que se trata do resultado de uma emoção e não de uma harmonização tecnicamente correta.
Tecnicamente será mais adequado combinar um queijo da Serra com um Porto Reserva Tawny. Neste caso, os taninos do vinho são bastante mais suaves, não confrontando o queijo. Por outro lado, o Porto Reserva Tawny não apresenta fruta vermelha tão intensa como o Porto Vintage, estando mais presentes aromas complexos de evolução, que se associam melhor com o leite de ovelha utilizado e o método de confeção do queijo da Serra. Não se trata de um casamento real, como o Porto Vintage com o queijo da Serra, mas é certamente uma estória “de amor” ao estilo da Cinderela!
Por falar em amor, uma máxima que utilizo para as harmonizações gastronómicas é que a conjugação do vinho com a comida tem de ser melhor do que qualquer um dos produtos individualmente. Exatamente como no amor, quando duas pessoas se juntam devem tornar-se melhores do que qualquer uma delas individualmente!
Com estas considerações espero ter aumentado a vontade do leitor em combinar mais vezes o seu alimento preferido e o vinho, fazendo experiências sem preconceitos, desejando que não tenha tido o efeito oposto, o de achar que não é capaz de o fazer.
As harmonizações gastronómicas são, efetivamente, um assunto complexo, em que foi feita uma abordagem com o propósito de se questionar, aprofundar o seu conhecimento e, acima de tudo, retirar prazer. Não se preocupe se o resultado das suas experiências não for unânime. Afinal, como diz o ditado, gostos não se discutem.