Nos últimos anos verificou-se um interesse crescente nos vinhos feitos em barro. E Portugal é um dos dois países onde existe uma herança substancial de produção de vinho na talha, juntamente com a Geórgia e os vinhos qvevri.
Com as tendências a imporem o uso de aço inoxidável e pequenas barricas de carvalho, o mundo do vinho ficou um pouco enviesado. As formas mais antigas de envelhecimento do vinho, como os cascos de carvalho de grande dimensão (foudres, fuder ou botti), foram dilaceradas por motosserras e removidas das adegas, enquanto as cubas de cimento declaradas obsoletas.
Mas o cenário está a mudar, à medida que os viticultores tornam-se curiosos. Os grandes recipientes em carvalho são agora desejados por muitos, trazendo experimentação com outros materiais, incluindo cimento e barro. Agora é bastante comum entrar numa grande adega encontrar cubas ovais em cimento e algumas ânforas de terracota. Se perguntar porquê aos produtores, eles falarão sobre textura, sobre como alguns terroirs e castas parecem exprimir-se melhor nesses recipientes e que é como ter muitos tachos e panelas diferentes na cozinha – escolher a ferramenta certa para a receita adequada.
O Alentejo tem uma tradição ininterrupta de produzir vinhos em ânforas de argila chamadas talha. Nos últimos dois anos, a região fomentou o Dia do Vinho de Talha, comemorando o renascimento dessa tradição muito antiga. Pude participar no último, a 16 de novembro de 2019, logo após o Dia de São Martinho (11 de novembro). Historicamente, este é o primeiro dia em que os produtores abrem as talhas com o vinho do ano anterior.
David Rego, diretor de exportação da Herdade do Rocim, anfitrião do evento, deu-me boleia, a mim e a um colega, de Lisboa. Explicou que o ano passado receberam 1200 participantes e rebentaram pelas costuras (estavam à espera de 400 convidados). Restringiram as entradas para 1200 pessoas este ano e foi lotação esgotada. Estiveram presentes 42 produtores, 27 de Portugal e os restantes da Geórgia, Itália, França, Espanha, Arménia, África do Sul e Austrália.
Fazer vinho na talha
Na forma típica de usar a talha no Alentejo (onde é já denominação de origem) estas são revestidas com pez, uma mistura de resina de pinheiro e cera de abelha. Tradicionalmente, todo o produtor tem a sua própria receita para o pez. A parte superior da talha não está selada: em vez disso, há uma camada de azeite em cima do vinho e é colocado um pano sobre a abertura para impedir a entrada de insetos.
O Rocim começou a engarrafar vinhos de talha há sete anos; Rego recorda que na época todos se riam deles. Agora têm 26 talhas agora e gostariam de mais. “É difícil consegui-las”, diz. “É realmente necessário procurar alguém que tenha uma talha que não esteja a utilizar”. Os vinhos de talha representam atualmente 10% do seu volume de negócios.
Susana Esteban começou a trabalhar com talhas em 2017. Possui três, com capacidade para 700 litros cada. Os seus vinhos de talha provém de uma vinha em field blend de 85 anos em São Mamede, Portalegre. Esta enóloga prensa as uvas, decanta e depois fermenta na talha, controlando a temperatura. “Para mim, é importante preservar a identidade da vinha”, diz, “mas com a elegância da ânfora”.
A marca José de Sousa, da José Maria de Fonseca, é campeã dos vinhos de talha. Na sua adega guardam 114 talhas. Para o vinho tinto, as uvas são colhidas manualmente, esmagadas levemente e desengaçadas manualmente e depois fermentadas em talhas (capacidade típica de 1600 litros), com aproximadamente um terço do engaço. A temperatura de fermentação é mantida em torno dos 28ºC por aspersão de água na superfície do barro, quatro vezes por dia. Há uma maceração pós-fermentativa até novembro e, em seguida, o vinho é prensado e volta para as talhas por cerca de 16 meses, protegido por uma camada de azeite. Dois terços do lote final são de talha, aos quais é adicionado vinho amadurecido em barris de 500 litros de castanho.
Zorah é um produtor da Arménia. As ânforas aqui são feitas à mão, todas diferentes e todas muito antigas. O seu Karasi é feito 100% de Areni Noir, fermentado em cimento e envelhecido um ano em ânfora. O vinho de topo Yeraz (sonho, em arménio) provém de vinhas muito antigas, plantadas há 150 anos, a 1600 m de altitude. É fermentado em cimento e envelhecido dois anos em ânforas. Os vinhos são depois loteados em grandes cascos de madeira e regressam às ânforas por mais um ano. Ambos os vinhos são magníficos.
A Cantina del Malandrino possui uma pequena vinha de 2,5 hectares no Etna, na Sicília. Engarrafam os seus vinhos ânfora por ânfora. Um vinho Franco Giara 7.2 é feito da variedade Nerello Mascalese de anos muito frios e passa oito meses em ânfora. Já o vinho Malandrino vem de Nerello Mascalese com 12 meses de ânfora. Ambos fantásticos.
A Herdade do Rocim produz uma grande variedade de vinhos de ânfora, mas particularmente impressionante é o Fresh From Amphora Nat Cool, engarrafado em garrafas de litro, que faz parte da colaboração com Dirk Niepoort.
Por fim, a XXVI Talhas é um novo projeto (2018) com Ricardo Santos no comando, sediado na Vidigueira. No projeto, assumiram a adega de Mestre Daniel (Daniel Tabaquinho dos Santos), que tem 26 talhas (entre 300 a 1200 litros) que estavam em desuso há 30 anos (desde a morte do Mestre Daniel em 1985). Os primeiros vinhos lançados são muito bons. O futuro do vinho de talha parece brilhante!