Numa altura em que o desperdício alimentar está na ordem do dia, já pensou no que pode fazer para mitigar o problema? A questão coloca-se cada vez mais, sabendo que cada pessoa desperdiça, por ano, cerca de 180 quilos de comida. E há tantas formas de contornar a situação. Aproveitar sobras de um prato para reconstruir outro é uma saída airosa da questão. A Revista de Vinhos deixa algumas dicas.
Quantas vezes abrimos o frigorífico e destapamos caixas com restos sem saber o que lhes fazer? Muitas vezes ficam ali, até ao momento em que, num ato de comiseração culposo, despachamos tudo para o lixo. Mas esses restos podem tornar-se ouro, numa perspetiva de aproveitamento. Perder alimentos que não são consumidos tornou-se cada vez mais imperdoável. O desperdício começa, dentro da cadeia alimentar, já na produção, mas no seu consumo causa igualmente impacto ambiental, na diminuição da biodiversidade, reservas de água e contribui para o aumento das emissões de gases com efeito de estufa.
O desperdício começa, assim, logo em nossa casa, responsabilizando-nos, e urge repensar procedimentos e hábitos automáticos que cada vez menos fazem sentido e são até indecorosos. Em Portugal, desperdiça-se, anualmente, cerca de um milhão de toneladas de alimentos, algo assustador, sendo que um terço é da responsabilidade do consumidor. Ou seja, cada pessoa desperdiça, por ano, cerca de 180 quilos de comida. Só os agregados familiares desperdiçam 324 mil toneladas e 20% da comida é deitada fora ainda antes de chegar aos consumidores. Um desperdício que no conjunto da União Europeia chega quase aos 100 milhões de toneladas. Dá que pensar.
Para contornar o assunto, a Associação Portuguesa de Nutricionistas criou, até, um livro de receitas, em formato ebook, para a reutilização de aproveitamentos. ”Estamos a atravessar uma crise originada pelos grandes meios financeiros internacionais e que se transformou numa crise económica e social, num país já de si com dificuldades de desenvolvimento. Em termos práticos: uma parte muito grande das famílias portuguesas não tem dinheiro suficiente para pagar as despesas.
Mas não pode faltar o básico – a alimentação”, sublinha Isabel do Carmo, da APN.
Neste sentido, um grupo dos melhores nutricionistas do país elaborou um conjunto de receitas compostas por alimentos ricos nutricionalmente, saborosos e simples de preparar que pode ser consultado online. É só mesmo visitar o portal e ter acesso direto a esse receituário num ebook. A Revista de Vinhos recolheu, igualmente, uma série de ideias e métodos para usar melhor as nossas sobras, em casa, bem como dicas para evitar desperdício.
Aliás, uma das principais caraterísticas da cozinha portuguesa é mesmo essa. Não será por acaso que temos tantos pratos feitos com pão, com sangue, ou com entranhas de animais, suas partes consideradas menos nobres (chispes, orelha, língua, caras ou línguas de bacalhau, enésimas partes do atum), picados e recheios. Somos, por isso, um dos países do mundo com uma das mais emblemáticas filosofias alimentares de sustentabilidade.
Só que nos últimos anos parece que nos esquecemos de tudo isso. Compramos por impulso e sem planeamento, cozinhamos sem imaginação quando chegamos cansados a casa, ou fazemos ainda pior: encomenda-se fora ou descongela-se pratos, já confecionados e sensaborões, no micro-ondas.
Para evitar que as sobras vão parar ao lixo, o melhor é pensar com antecedência no que se pode inventar dali. O receituário da cozinha tradicional tem imensas sugestões, já que não faltam purés, empadas, empadões, pastéis ou sopas. Isso reflete-se na bolsa porque o que se previa para uma refeição pode desdobrar-se em várias. Apenas com um pouco de imaginação.
Foi disso mesmo que fomos à procura. De imaginação e criatividade para contornar o problema, de como dar nova vida às sobras que temos em casa. ”As pessoas das faixas etárias mais jovens, dos 40 para baixo, são os que mais desperdiçam, apesar de cozinharem pouco em casa e comerem muitos pratos já confecionados. A maioria não se preocupa em reaproveitar porque não tem essa cultura”, conta Ricardo Lanção, professor de Gestão de Alimentos e Bebidas no ISLA-IPGT/Gaia, que nos deixa alguns exemplos de como aproveitar sobras, de forma fácil e imaginativa. E é já na cozinha-laboratório desta instituição que estamos a preparar algum receituário, dentro desta filosofia do aproveitamento, que se tenta incutir nos mais novos, abrindo horizontes na área do desperdício alimentar.
“Os mais velhos têm essa preocupação de aproveitar, mas os mais novos não, pelo que é necessário incutir nos mais jovens essa filosofia, uma das razões porque na escola sublinhamos essa necessidade. Damos luzes de como evitar o despedício, aproveitando os alimentos que sobram. Repensar o desperdício em contexto domiciliário e dos hábitos alimentares é fundamental, pelo que tentamos encontrar soluções e ensinar a aplicá-las”, enfatiza.
Enquanto transforma sobras de arroz branco numa quiche ou num rolo, a que agrega apenas proteína, como ovos ou cogumelos, prepara já a calda do que irá conferir sabor e consistência a um risotto, feito com cascas e restos de legumes, cujo destino seria o lixo. Quem diria que aquilo que estava predestinado, a priori, a ser deitado fora poderia exsudar um aroma tão aprazível?
Igualmente em Famalicão, com a professora Raquel Azevedo, coordenadora do programa Eco Escolas, Ricardo dinamiza numa iniciativa da escola secundária Camilo Castelo Branco, o“Less is more”, no mercado local, que permite, todas as semanas, sugerir dicas para que os mais novos e as pessoas em geral cozinhem neste sentido de evitar o desperdício alimentar, algo cada vez mais premente.
”Começar em casa é dar o primeiro passo, uma solução simples para evitar o desperdício e criar ferramentas para as pessoas encontrarem soluções no quotidiano. Temos muita coisa em casa que podemos aproveitar, da rama da cenoura às folhas dos brócolos, dos restos de arroz à fruta que parece já passada”, afirma, enquanto faz uma calda com cascas de fruta que resultará num belo crumble. “Um terço da produção alimentar mundial vai para o lixo. Portugal, por ano, deita fora cerca de 180 quilos de desperdício alimentar por ano. E o maior desperdício ocorre em contexto do agregado familiar. É preciso sensibilizar as pessoas para estes aspetos e mudar posturas” - conclui.
Transformar “o velho” “em novo” com imaginação
Restos de peixe ou carne, de hortaliças, legumes, batatas, arroz, ou mesmo as próprias cascas de alimentos podem ser utilizados em caldos, sopas ou molhos. Vitaminas, fibras e diversos micronutrientes são encontrados em maiores quantidades na pele de frutas e verduras. Nutricionalmente falando é, portanto, uma pena não consumi-los. Por exemplo, um punhado de cascas de batata cobre metade das necessidades diárias de fibras de um adulto. E a fibra tem vários efeitos benéficos na saúde: sacia (limitando assim os lanches entre as refeições) e evita picos de açúcar no sangue (que nos levam a querer consumir ainda mais alimentos doces), entre outros. Em relação às cascas, deverá ser dada preferência à agricultura biológica para evitar pesticidas.
O desperdício começa logo na falta de planeamento. Sem uma lista de ingredientes, compra-se sempre demasiado ou os ingredientes errados. Por isso, antes de ir ao mercado, organize uma lista.
Evitar o princípio de fazer comida a mais pode ser outro bom começo. Mas se isso acontecer, use a imaginação. Faça um concurso de ideias e sugestões de menus entre a família. Pode ser divertido e agregar o clã.
As sobras podem parecer um fardo, inicialmente, mas permitem cozinhar de forma rápida e simples, até original, poupando tempo e dinheiro. No fundo, trata-se de fazer novo com o velho (a tal roupa velha...) e tentar criar um prato que seja completamente diferente do original e onde o prazer comande.
Com ossos e restos de vegetais (talos de couve ou brócolos, de cenouras e alhos franceses costumam ir para o lixo) podemos fazer um caldo ou aproveitar num guisado que aquecerá uma noite de inverno. As carcaças de frango são ideais para fazer caldo, ou ossos e espinhas de peixe. Especialmente porque as carcaças de aves e espinhas de peixe também são excelentes para a saúde, pois contêm cálcio, magnésio, potássio, fósforo, entre outros e são bons para fazer um caldo que pode ser bebido ou usado para cozinhar macarrão ou arroz. Também deve ser notado que todos esses ossos de animais contêm glucosamina, uma substância muito importante para a saúde de nossa cartilagem e articulações. Um caldo caseiro não tem nada em comum com um cubo de caldo, muitas vezes muito salgado e cheio de aditivos.
É, sobretudo, necessário ser criativo para reutilizar sobras ou partes menos nobres dos produtos e, acima de tudo, será preciso ousar. Até com simples tomate-cereja, alecrim e restos de ricotta se podem fazer umas divinais bruschettas ou uma calzone, por exemplo.
Finalmente, quando se fala de aproveitar, deve-se referir a necessidade de armazenar com segurança o que sobra, uma das técnicas essenciais, evitando que os alimentos se estraguem. Passa por escolher o recipiente certo (hermético) evitando contaminações e refrigerar as sobras após a refeição, assim que elas arrefecerem. Deverá, nesse sentido, deitar fora qualquer sobra de comida cozinhada que tenha estado à temperatura ambiente por mais de duas horas.
As sobras podem manter-se por dois a três dias no frigorífico. Mantenha-as numa zona específica para que não as esqueça. O melhor será depois aquecer as sobras o suficiente para atingir uma temperatura segura (74° C) e mexer uniformemente.
Não deixe descongelar no exterior, algo propício a criar bactérias. Descongele sempre as sobras no frigorífico, forno ou micro-ondas. Ovos, leguminosas, pães, massas, cebolas ou batatas são menos perecíveis e mais acessíveis, pelo que é uma boa aposta de compra.
Reutilizar as sobras não quer dizer reaquecer o mesmo prato, mas sim transformar o que resta numa uma nova refeição, experiência que até se pode tornar algo emocionante. Com alguma astúcia, pode transformar-se um frigorífico cheio de tupperwares numa mina de ouro, em vez de um saco sem fundo. Por isso, logo à noite, comece já a treinar e reinvente, reutilizando.
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DICAS
1. Reserve um dia por semana para comer as sobras. Tente também incluir outros alimentos que provavelmente expirarão em breve.
2. Faça menus por antecipação: evita-se assim os desperdícios e as compras compulsivas.
3. Agregue a família na sugestão de pratos feitos com sobras, tanto nas ideias como na execução.
4. Faça uma lista de compras com um plano mental para a semana e evite tentações não pensadas.
5. Coma frutos e legumes da estação: são mais saborosos, mais frescos e mais baratos.
6. Refrigere as sobras no espaço de duas horas.
7. Não deixe descongelar no exterior, algo propício a criar bactérias. Descongele sempre as sobras no frigorífico, forno ou micro-ondas.
8. Coma as sobras dentro de três dias, no máximo.
9. Mantenha as sobras nas prateleiras superiores do frigorífico.
10. Nunca coloque sobras que estão muito quentes diretamente no frigorífico ou no congelador.
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RECEITAS
Quiche com base de arroz e cogumelos
Ingredientes:
Base de arroz
• 400 gr. arroz cozido
• 2 ovos
• 100 gr. queijo ralado
Para o recheio
• 200 gr. cogumelos
• 100 gr. queijo ralado
• 50 ml azeite
• 200 ml natas
• 4 ovos
• Sal e pimenta q.b.
Preparação:
1. Num recipiente coloca-se o arroz cozido, os ovos batidos e o queijo e envolve-se até ficar bem ligado.
2. Tempera-se com sal e pimenta.
3. Forra-se uma tarteira com a massa de arroz, e leva-se ao forno a 180ºC durante 15 min.
4. Laminam-se os cogumelos, salteiam-se num fio de azeite e temperam-se com sal e pimenta.
5. Partem-se os ovos, mistura-se com as natas, temperando.
6. Colocam-se os cogumelos na base de arroz já cozida e adiciona-se as natas com os ovos.
7. Finaliza-se com queijo ralado.
8. Leve a quiche ao forno a 180ºC durante 20 min.
Risotto com arroz carolino com grelos cenoura e cogumelos
Ingredientes:
• 200 gr. arroz carolino
• 750 ml caldo de legumes
• 1 molho grelos
• 100 gr. cenouras
• 3 dentes de alho
• 50 ml azeite
• 50 ml vinho branco
• 40 gr. queijo ralado
• 20 gr. manteiga
• Sal q.b.
Preparação:
1. Lavam-se muito bem os grelos e salteiam-se em azeite.
2. Numa panela coloca-se o azeite e deixa-se aquecer.
3. Adiciona-se a cebola picada e deixa-se suar um pouco, seguidamente adiciona-se o arroz e vitrifica-se (fritar o arroz), refresca-se com o vinho e deixa-se o álcool evaporar.
4. Adiciona-se uma concha de caldo de legumes na panela. Deixe o arroz absorver o líquido e, em seguida, adicione uma outra concha de caldo. Aos poucos, despeje o caldo restante, até que todo o caldo anterior tenha sido absorvido.
5. Retira-se a panela do lume e adiciona-se a manteiga e o queijo ralado.
6. Retificam-se os temperos.
7. Deixa-se descansar um minuto para o arroz ficar cremoso.
8. Adicionam-se os grelos, a cenoura em cubos pequenos e os cogumelos.
9. Servir de imediato.